Em um ano marcado por ondas de calor intenso e outros eventos extremos relacionados às mudanças climáticas, os colegiados especializados em direito público do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgaram vários casos com impacto relevante na questão ambiental.
Em outubro, ao analisar o Tema 1.204 dos recursos repetitivos, a Primeira Seção definiu que as obrigações ambientais têm natureza propter rem, de modo que elas podem ser exigidas do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores ou de ambos, “ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente”.
Segundo a relatora, ministra Assusete Magalhães, esse entendimento já estava consolidado na Súmula 623, que se baseou na jurisprudência do STJ segundo a qual a obrigação de reparação dos danos ambientais é propter rem, uma vez que a Lei 8.171/1991 vigora para todos os proprietários rurais, ainda que não sejam eles os responsáveis por desmatamentos anteriores.
No mesmo mês, o colegiado fixou a tese de que “a validade das multas administrativas por infração ambiental, previstas na Lei 9.605/1998, independe da prévia aplicação da penalidade de advertência”.
Para a relatora do Tema 1.159, ministra Regina Helena Costa, deve-se adotar, na interpretação das normas ambientais, a perspectiva da máxima proteção ao meio ambiente. Na sua avaliação, a aplicação direta da multa nos casos mais graves incentiva o cumprimento voluntário das leis e dos regulamentos ambientais, pois a punição financeira é mais eficaz para desencorajar a prática de novas agressões ao meio ambiente.
Multas do Ibama após intimação por edital
Em novembro, a Segunda Turma decidiu pela validade do processo administrativo que levou à aplicação de multa ambiental pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) após a intimação do infrator, por edital, para apresentação de alegações finais.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o procedimento de notificação por edital foi adotado pelo Ibama em 183 mil processos administrativos, que correspondem a 84% das autuações por infrações ao meio ambiente, com total superior a R$ 29 bilhões em multas.
Sobre a atuação do Ibama, a Segunda Turma decidiu, em junho, que a autarquia tem competência para aplicar multa pela degradação de falésia na Praia da Pipa, no município de Tibau do Sul (RN), em razão da construção de uma casa de luxo no local.
Para o colegiado, o fato de haver autorização do município para edificação na área não afasta a competência fiscalizatória do Ibama, especialmente porque as falésias são consideradas por lei Áreas de Preservação Permanente (APP), sujeitas à fiscalização contínua do órgão ambiental.
Outro julgamento sobre dano ambiental foi em novembro, quando a Segunda Turma deu provimento a recurso do Ministério Público de Mato Grosso para reconhecer a ocorrência de dano moral coletivo na exploração de 15,467 hectares de floresta nativa na região amazônica. O colegiado aplicou a jurisprudência segundo a qual a lesão ao meio ambiente gera dano moral in re ipsa, ou seja, que dispensa a demonstração de prejuízos.
A área desmatada fica na Fazenda Chaleira Preta. A Justiça local condenou o responsável pela degradação a pagar danos materiais, bem como a recompor o meio ambiente e a se abster de desmatar outras áreas. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso afastou a condenação por danos morais coletivos, mas a decisão foi reformada no STJ.
Ajustamento de conduta sobre a tragédia de Brumadinho
Em outubro, analisando desdobramentos do rompimento da barragem de Brumadinho (MG), um dos mais graves acidentes ambientais do país, a Terceira Turma decidiu que somente a Defensoria Pública de Minas Gerais pode verificar eventual descumprimento do termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado por ela com a Vale S.A., bem como é a instituição legitimada para exigir a sua execução. O TAC regulamenta a indenização extrajudicial aos atingidos pelo rompimento da barragem, ocorrido em 2019.
O colegiado aplicou a jurisprudência da corte segundo a qual, em regra, apenas os órgãos públicos legitimados para firmar o TAC e fiscalizar seu cumprimento podem executá-lo.
Tributos e outras questões da economia
No ano em que as forças políticas do país, finalmente, levaram adiante a reforma tributária, impostos e contribuições também foram o tema de importantes controvérsias jurídicas decididas no STJ pelos colegiados de direito público.
Ao julgar, em março, o Tema 1.160 dos recursos repetitivos, a Primeira Seção decidiu que o Imposto de Renda (IR) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) incidem sobre a correção monetária das aplicações financeiras, pois estas se caracterizam legal e contabilmente como receita bruta, na condição de receitas financeiras componentes do lucro operacional.
Para o colegiado, é impossível deduzir a inflação (correção monetária) do período do investimento (aplicação financeira) da base de cálculo do IR retido na fonte ou da CSLL, pois a inflação corresponde apenas à atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo, que é permitida pelo artigo 97, parágrafo 2º, do Código Tributário Nacional (CTN), independentemente de lei, já que não constitui majoração de tributo.
A Segunda Turma, também em março, entendeu que cabe ao contribuinte comprovar a ausência de mistura mecânica na produção de combustíveis para ser dispensado do recolhimento da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) sobre nafta e aromáticos importados, matérias-primas petroquímicas.
No caso dos autos, uma refinaria ajuizou ação contra a União objetivando a declaração de inexigibilidade do recolhimento de alguns tributos sobre nafta e aromáticos importados, e pedindo que fossem aceitas as suas declarações de importação de tais matérias-primas sem o recolhimento da CIDE.
ITR e o cancelamento do registro da propriedade
Por sua vez, em julgamento realizado em junho, a Primeira Turma proclamou que não há incidência do Imposto Territorial Rural (ITR) quando uma sentença transitada em julgado cancela o registro de propriedade imobiliária. Para o colegiado, estando a propriedade baseada em título reconhecido como nulo, não é possível cogitar a incidência do tributo, pois o fato gerador é inexistente.
O entendimento foi definido em caso no qual a sentença, já transitada em julgado, declarou a nulidade da escritura de compra e venda de duas propriedades rurais, tendo em vista que as matrículas eram baseadas em documentação inexistente ou falsa. Posteriormente, o autor da ação de nulidade recebeu a cobrança do ITR relativo aos imóveis, mas alegou, em novo processo, que nunca exerceu domínio sobre aquelas terras de maneira efetiva.
Em agosto, a Primeira Seção estabeleceu que o STJ não tem mais a competência para julgar mandado de segurança contra atos do presidente do Banco Central. Com esse entendimento, o colegiado não analisou o mérito de um mandado de segurança impetrado por uma sociedade empresária contra ato dessa autoridade e determinou a remessa dos autos à seção judiciária da Justiça Federal no Distrito Federal.
“Com a vigência do artigo 9º da Lei Complementar 179/2021, o cargo de presidente do Banco Central do Brasil deixou de receber tratamento equivalente ao de ministro de Estado, razão pela qual este tribunal superior é incompetente para apreciar mandamus voltado a questionar suas decisões”, disse a relatora do caso, ministra Regina Helena Costa.
Multas questionadas na Justiça
Em setembro, a Primeira Turma negou provimento ao recurso no qual uma distribuidora de produtos hospitalares questionava a multa de R$ 700 mil que lhe foi imposta por ter vendido remédios acima dos preços permitidos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) do Rio Grande do Sul.
A multa, no valor inicial de cerca de R$ 1 milhão, foi aplicada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que entendeu que a empresa cobrou além do permitido por um remédio para doença renal crônica.
No mesmo mês, o colegiado decidiu que a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) não possui o poder administrativo de polícia para impor multas às empresas associadas em razão de descumprimento de contrato.
A turma julgadora considerou que a CCEE, entidade de direito privado responsável por viabilizar o comércio de energia no mercado brasileiro, não integra a administração pública direta nem indireta; e, além disso, não há lei que autorize expressamente a entidade a exercer essa função sancionatória, mas apenas uma menção a essa atribuição da câmara no Decreto 5.177/2004 e em resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Tarifa de conexão em voos
Em outro caso julgado na Primeira Turma, os ministros negaram o pedido do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias para que as companhias aéreas não fossem obrigadas a pagar a chamada tarifa de conexão, instituída pelo artigo 3º da Lei 6.009/1973 (atualmente revogado) como contraprestação pela alocação de passageiros em conexão nos aeroportos.
Para o colegiado, havia previsão em lei de que as empresas fossem responsáveis pelo pagamento da tarifa, não sendo cabível ao Judiciário rever disposição legal expressa.
“Na realidade, o que pretende o sindicato é, pela via judicial, alterar o sujeito passivo da cobrança em questão, sendo certo, porém, que a modificação de texto legal deve acontecer na instância própria, qual seja, via processo legislativo em sentido estrito”, afirmou o relator do recurso, ministro Gurgel de Faria.
Limites para pedidos de uniformização
Para estabelecer as balizas do cabimento do pedido de uniformização de interpretação de lei federal (Puil), previsto no artigo 14 da Lei 10.259/2001, a Primeira Seção definiu em maio, como jurisprudência dominante da corte, não apenas as hipóteses relacionadas no artigo 927, inciso III, do Código de Processo Civil (CPC), mas também os acórdãos proferidos em embargos de divergência e no julgamento de outros Puils pelo tribunal superior.
Ao fixar o novo entendimento, a seção superou posicionamento definido anteriormente no Puil 1.799, no qual o colegiado havia limitado o conceito de jurisprudência dominante aos precedentes firmados pelo STJ em IRDR instaurado nas ações originárias da corte, em IAC, em recursos repetitivos ou súmulas e, ainda, em julgamentos da Corte Especial.
Indenizações no caso Amarildo
Em novembro, a Segunda Turma, por unanimidade, manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que negou o pagamento de indenização à suposta mãe de criação do pedreiro Amarildo Dias de Souza, desaparecido em 2013 durante ação de policiais militares na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro. O colegiado também confirmou a decisão que fixou indenização de R$ 100 mil para cada irmão da vítima.
Na origem do caso, a mulher apontada como mãe de criação e os irmãos de Amarildo ajuizaram ação de reparação de danos materiais e morais contra o Estado do Rio de Janeiro. Segundo o relator do caso, ministro Francisco Falcão, o acórdão do tribunal estadual foi claro ao não reconhecer o parentesco entre Amarildo e a suposta mãe de criação.
Anuidades da OAB e saques indevidos do Pasep
Em outubro, ao julgar o Tema 1.179 dos recursos repetitivos, a Primeira Seção estabeleceu que os conselhos seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não podem cobrar anuidade das sociedades de advogados. Para o colegiado, a cobrança de anuidade é direcionada às pessoas físicas inscritas na OAB (advogados e estagiários), situação diferente da sociedade de advocacia, que registra seus atos constitutivos na OAB apenas para efeito de aquisição de personalidade jurídica.
Relator dos recursos especiais, o ministro Gurgel de Faria explicou que, conforme previsto na Lei 8.906/1994, cabe ao conselho seccional da OAB fixar, alterar e receber as anuidades devidas pelos inscritos na entidade. Por outro lado, também com base no Estatuto da Advocacia, o ministro comentou que a inscrição na OAB como advogado ou estagiário é limitada às pessoas físicas, não havendo referência na lei sobre a possibilidade de inscrição de pessoas jurídicas.
Em julgamento de recursos repetitivos concluído em setembro (Tema 1.150), a Primeira Seção fixou teses a respeito da responsabilidade do Banco do Brasil por saques indevidos ou má gestão dos valores em contas vinculadas ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), reconhecendo que a instituição responde em tais situações.