Em julgamento de recurso repetitivo (Tema 1.204), a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que as obrigações ambientais têm natureza propter rem, de modo que o credor pode escolher se as exige do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores ou de ambos, “ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente”.
Segundo a relatora, ministra Assusete Magalhães, esse entendimento já estava consolidado na Súmula 623, que se baseou na jurisprudência do STJ segundo a qual a obrigação de reparação dos danos ambientais é propter rem, uma vez que a Lei 8.171/1991 vigora para todos os proprietários rurais, ainda que não sejam eles os responsáveis por desmatamentos anteriores.
Ao citar precedentes do tribunal, a ministra esclareceu que o atual titular que se mantém inerte em relação à degradação ambiental, ainda que preexistente, também comete ato ilícito, pois as áreas de preservação permanente e a reserva legal são “imposições genéricas, decorrentes diretamente da lei”, e “pressupostos intrínsecos ou limites internos do direito de propriedade e posse”. Assim, para a jurisprudência, “quem se beneficia da degradação ambiental alheia, a agrava ou lhe dá continuidade não é menos degradador”.
Responsabilidade civil por danos ambientais é propter rem, objetiva e solidária
A relatora lembrou que o artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei 12.651/2012 atribui expressamente caráter ambulatorial à obrigação ambiental, ao dispor que elas têm “natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural”.
De acordo com a ministra, tal norma, somada ao artigo 14, parágrafo 1º, da Lei 6.938/1981 – que estabelece a responsabilidade ambiental objetiva –, ampara o entendimento do STJ de que a obrigação de recomposição ambiental atinge o proprietário do bem, independentemente de ter sido ele o causador do dano.
De outro lado, ressaltou a magistrada, o titular anterior do direito real que tenha causado o dano também se sujeita à obrigação ambiental, porque a responsabilidade civil nesse caso também é solidária (artigos 3º, IV, e 14, parágrafo 1º, da Lei 6.938/1981), permitindo ao demandante, à sua escolha, dirigir a ação contra o antigo proprietário ou possuidor, contra os atuais ou contra ambos.
Necessário nexo causal para configurar a responsabilidade
Para a ministra, uma situação que merece atenção é a do titular anterior que não deu causa ao dano ambiental: se o dano é posterior à cessação do domínio ou da posse do alienante, não há responsabilidade anterior, a não ser que, mesmo já sem a posse ou a propriedade, ele retorne à área para degradá-la. Segundo Assusete Magalhães, embora a responsabilidade civil ambiental seja objetiva, a jurisprudência entende que “há de se constatar o nexo causal entre a ação ou a omissão e o dano causado, para configurar a responsabilidade”.
Nesse sentido, a relatora ponderou que o titular anterior que conviveu com dano ambiental preexistente, ainda que não tenha sido o seu causador, e, posteriormente, alienou a área no estado em que a recebera, tem responsabilidade.
“Nessa hipótese, não há como deixar de reconhecer a prática de omissão ilícita, na linha da jurisprudência do STJ que – por imperativo ético e jurídico – não admite que aquele que deixou de reparar o ilícito, e eventualmente dele se beneficiou, fique isento de responsabilidade”, concluiu a ministra.
O recurso REsp 1.962.089 ficou assim ementado:
AMBIENTAL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA DE NATUREZA REPETITIVA. DANO AMBIENTAL. OBRIGAÇÃO DE REPARAÇÃO. ARTS. 3º, IV, E 14, § 1º, DA LEI 6.938⁄81. NATUREZA PROPTER REM E SOLIDÁRIA. POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO DOS ATUAIS POSSUIDORES OU PROPRIETÁRIOS, ASSIM COMO DOS ANTERIORES, OU DE AMBOS. PRECEDENTES DO STJ. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.I. Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC⁄2015, aplicando-se, no caso, o Enunciado Administrativo 3⁄2016, do STJ, aprovado na sessão plenária de 09⁄03⁄2016 (“Aos recursos interpostos com fundamento no CPC⁄2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC”).II. A controvérsia ora em apreciação, submetida ao rito dos recursos especiais repetitivos, nos termos dos arts. 1.036 a 1.041 do CPC⁄2015, restou assim delimitada: “As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e⁄ou dos anteriores ou, ainda, dos sucessores, à escolha do credor”.III. A matéria afetada encontra atualmente consubstanciada na Súmula 623⁄STJ, publicada no DJe de 17⁄12⁄2018: “As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e⁄ou dos anteriores, à escolha do credor”.IV. Esse enunciado sumular lastreia-se em jurisprudência do STJ que, interpretando a legislação de regência, consolidou entendimento no sentido de que “a obrigação de reparação dos danos ambientais é propter rem, por isso que a Lei 8.171⁄91 vigora para todos os proprietários rurais, ainda que não sejam eles os responsáveis por eventuais desmatamentos anteriores, máxime porque a referida norma referendou o próprio Código Florestal (Lei 4.771⁄65) que estabelecia uma limitação administrativa às propriedades rurais (…)” (REsp 1.090.968⁄SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, DJe de 03⁄08⁄2010). Segundo essa orientação, o atual titular que se mantém inerte em face de degradação ambiental, ainda que pré-existente, comete ato ilícito, pois a preservação das áreas de preservação permanente e da reserva legal constituem “imposições genéricas, decorrentes diretamente da lei. São, por esse enfoque, pressupostos intrínsecos ou limites internos do direito de propriedade e posse (…) quem se beneficia da degradação ambiental alheia, a agrava ou lhe dá continuidade não é menos degradador” (STJ, REsp 948.921⁄SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 11⁄11⁄2009). No mesmo sentido: “Não há cogitar, pois, de ausência de nexo causal, visto que aquele que perpetua a lesão ao meio ambiente cometida por outrem está, ele mesmo, praticando o ilícito” (STJ, REsp 343.741⁄PR, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, DJU de 07⁄10⁄2002). Atualmente, o art. 2º, § 2º, da Lei 12.651⁄2012 expressamente atribui caráter ambulatorial à obrigação ambiental, ao dispor que “as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural”. Tal norma, somada ao art. 14, § 1º, da Lei 6.938⁄81 – que estabelece a responsabilidade ambiental objetiva –, alicerça o entendimento de que “a responsabilidade pela recomposição ambiental é objetiva e propter rem, atingindo o proprietário do bem, independentemente de ter sido ele o causador do dano” (STJ, AgInt no REsp 1.856.089⁄MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe de 25⁄06⁄2020).V. De outro lado, o anterior titular de direito real, que causou o dano, também se sujeita à obrigação ambiental, porque ela, além de ensejar responsabilidade civil, ostenta a marca da solidariedade, à luz dos arts. 3º, IV, e 14, § 1º, da Lei 6.938⁄81, permitindo ao demandante, à sua escolha, dirigir sua pretensão contra o antigo proprietário ou possuidor, contra os atuais ou contra ambos. Nesse sentido: “A ação civil pública ou coletiva por danos ambientais pode ser proposta contra poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental (art. 3º, IV, da Lei 6.898⁄91), co-obrigados solidariamente à indenização, mediante a formação litisconsórcio facultativo” (STJ, REsp 884.150⁄MT, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, DJe de 07⁄08⁄2008). E ainda: “Na linha da Súmula 623, cabe relembrar que a natureza propter rem não afasta a solidariedade da obrigação ambiental. O caráter adesivo da obrigação, que acompanha o bem, não bloqueia a pertinência e os efeitos da solidariedade. Caracterizaria verdadeiro despropósito ético-jurídico que a feição propter rem servisse para isentar o real causador (beneficiário da deterioração) de responsabilidade” (STJ, AgInt no AREsp 1.995.069⁄SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 05⁄09⁄2022).VI. Assim, de acordo com a mais atual jurisprudência do STJ, “a responsabilidade civil por danos ambientais é propter rem, além de objetiva e solidária entre todos os causadores diretos e indiretos do dano” (AgInt no AREsp 2.115.021⁄SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 16⁄03⁄2023).VII. Situação que merece exame particularizado é a do anterior titular que não deu causa a dano ambiental ou a irregularidade. A hipótese pode ocorrer de duas formas. A primeira acontece quando o dano é posterior à cessação do domínio ou da posse do alienante, situação em que ele, em regra, não pode ser responsabilizado, a não ser que, e.g., tenha ele, mesmo já sem a posse ou a propriedade, retornado à área, a qualquer outro título, para degradá-la, hipótese em que responderá, como qualquer agente que realiza atividade causadora de degradação ambiental, com fundamento no art. 3º, IV, da Lei 6.938⁄81, que prevê, como poluidor, o “responsável direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. Isso porque a obrigação do anterior titular baseia-se no aludido art. 3º, IV, da Lei 6.938⁄81, que torna solidariamente responsável aquele que, de alguma forma, realiza “atividade causadora de degradação ambiental”, e, consoante a jurisprudência, embora a responsabilidade civil ambiental seja objetiva, “há de se constatar o nexo causal entre a ação ou omissão e o dano causado, para configurar a responsabilidade” (STJ, AgRg no REsp 1.286.142⁄SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 28⁄02⁄2013). Em igual sentido: “A responsabilidade por danos ambientais é objetiva e, como tal, não exige a comprovação de culpa, bastando a constatação do dano e do nexo de causalidade. Excetuam-se à regra, dispensando a prova do nexo de causalidade, a responsabilidade de adquirente de imóvel já danificado porque, independentemente de ter sido ele ou o dono anterior o real causador dos estragos, imputa-se ao novo proprietário a responsabilidade pelos danos. Precedentes do STJ. A solidariedade nessa hipótese decorre da dicção dos arts. 3º, inc. IV, e 14, § 1º, da Lei 6.398⁄1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente)” (STJ, REsp 1.056.540⁄GO, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, DJe de 14⁄09⁄2009). A segunda situação a ser examinada é a do anterior titular que conviveu com dano ambiental pré-existente, ainda que a ele não tenha dado causa, alienando o bem no estado em que o recebera. Nessa hipótese, não há como deixar de reconhecer a prática de omissão ilícita, na linha da jurisprudência do STJ, que – por imperativo ético e jurídico – não admite que aquele que deixou de reparar o ilícito, e eventualmente dele se beneficiou, fique isento de responsabilidade. Nessa direção: “Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem” (STJ, REsp 650.728⁄SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 02⁄12⁄2009). Sintetizando esse entendimento, conclui-se que o anterior titular só não estará obrigado a satisfazer a obrigação ambiental quando comprovado que não causou o dano, direta ou indiretamente, e que este é posterior à cessação de sua propriedade ou posse.VIII. No caso concreto, o acórdão recorrido conta com motivação suficiente e não deixou de se manifestar sobre a matéria cujo conhecimento lhe competia, permitindo, por conseguinte, a exata compreensão e resolução da controvérsia, não havendo falar em descumprimento aos arts. 489, § 1º, VI, e 1.022, II, do CPC⁄2015, tal como demonstra o parecer ministerial.IX. No mérito, é incontroverso que as partes firmaram, em 11⁄12⁄2006, Termo de Ajustamento de Conduta, no qual se pactuou que a parte ora recorrida viria a requerer, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, à Secretaria de Estado de Meio Ambiente – SEMA⁄MS ou Instituto do Meio Ambiente – Pantanal – IMAP, atual IMASUL, licenciamento ou autorização conforme as exigências da Lei 4.771⁄65. Comprometeu-se a parte recorrida, ainda, a encaminhar, em 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias, documentação que atendesse às exigências da mesma Lei. Nenhuma das obrigações foi satisfeita, pelo que o Juízo de 1º Grau determinou a sua conversão em perdas e danos, com realização de perícia, a ser custeada pela ora recorrida. Considerando que, em 13⁄03⁄2008, o imóvel objeto do TAC, Fazenda Olho D´Água, teve sua propriedade transferida para terceiro, o Tribunal de origem declarou a ilegitimidade da parte recorrida para ocupar o polo passivo da execução, entendendo que a natureza propter rem da obrigação isentaria o anterior proprietário de responsabilidade, “mormente para efetuar o pagamento dos honorários periciais”.X. O acórdão recorrido está em desacordo com o entendimento fixado no presente julgamento, razão pela qual merece ele reforma, para restabelecer a decisão de 1º Grau que, reconhecendo a responsabilidade ambiental e a legitimidade passiva da parte ora recorrida, atribuiu-lhe o ônus de pagar honorários periciais para apuração do valor das perdas e danos decorrentes do inadimplemento das obrigações de fazer, impostas no Termo de Ajustamento de Conduta.XI. Tese jurídica firmada: “As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo possível exigi-las, à escolha do credor, do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores, ou de ambos, ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente.”XII. Caso concreto: Recurso Especial conhecido e provido.XIII. Recurso julgado sob a sistemática dos recursos especiais representativos de controvérsia (art. 1.036 e seguintes do CPC⁄2005 e art. 256-N e seguintes do RISTJ).
Leia o acórdão no REsp 1.962.089.