Câmara de Comercialização de Energia Elétrica não tem poder de polícia para multar usinas

Para a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) – entidade de direito privado responsável por viabilizar o comércio de energia no mercado brasileiro – não possui o poder administrativo de polícia para impor multas às empresas associadas em razão de descumprimento de contrato.

O colegiado entendeu que, além de a CCEE não integrar a administração pública direta nem indireta, não há lei que autorize expressamente a entidade a exercer essa função sancionatória; apenas há menção a essa atribuição da câmara no Decreto 5.177/2004 e em resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

A discussão teve origem em ação de cobrança proposta pela CCEE em virtude de multa aplicada a uma usina que teria descumprido contrato de comercialização de energia. Em primeiro grau, a usina foi condenada a pagar mais de R$ 365 milhões, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).

Critérios do STF para delegação do poder de polícia a entidades de direito privado

O ministro Gurgel de Faria, relator no STJ, lembrou que, segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal (RE 633.782), é possível a delegação do poder administrativo de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da administração pública cujo capital social seja majoritariamente público e que prestem exclusivamente serviço público, em regime de não concorrência.

Para esse enquadramento, ponderou o relator, o STF estabeleceu algumas premissas, como a exigência de que a entidade integre a administração pública direta ou indireta e seus empregados gozem de alguma estabilidade, ainda que sejam regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

No caso dos autos, contudo, Gurgel de Faria apontou que não há permissão constitucional para que a CCEE desempenhe atividade tipicamente pública, pois não integra a administração pública. Além disso, o ministro destacou que os empregados da entidade não gozam de qualquer estabilidade no emprego.

Ainda segundo o relator, além da ausência de lei formal que o autorize, outro impedimento para que a CCEE exerça o poder de polícia sancionador é que a entidade é composta por pessoas jurídicas que, como objetivo principal, visam lucro – não havendo, nesse caso, exercício de função pública sem finalidade lucrativa.

“Em suma, diante da gravidade ínsita ao poder de limitar direitos particulares impondo sanções administrativas, entendo que a regra é pela indelegabilidade dessa atribuição do poder de polícia às pessoas jurídicas de direito privado que não integram a administração pública”, conclui o ministro ao dar provimento ao recurso da usina e julgar improcedente a ação de cobrança.

O recurso ficou assim ementado:

ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. FUNÇÃO SANCIONADORA. DELEGAÇÃO. CÂMARA DE COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA – CCEE. ASSOCIAÇÃO DE NATUREZA PRIVADA. IMPOSSIBILIDADE.

  1. A controvérsia de direito é sobre a possibilidade de delegar a função sancionadora do exercício do poder de polícia à associação de natureza privada – Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).

  2. No âmbito doutrinário, o exercício das atividades de polícia administrativa é “usualmente concebido como indelegável a entidades privadas. Pode-se tomar como assente na doutrina a impossibilidade de se delegar a entidades privadas funções que implicam a manifestação de poder de império do Estado.” (Funções administrativas do Estado [livro eletrônico] / Aline Lícia Klein, Floriano de Azevedo Marques Neto. — 3. ed. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. – [Tratado de direito administrativo; v. 4 / coordenação Maria Sylvia Zanella Di Pietro], ePub).

  3. No plano da jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre a questão relativa à delegação de poder de polícia administrativa a entidades privadas no julgamento da ADI 1.717, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, quando concluiu pela “indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado,que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas”.

  4. Esta Corte, ao examinar o mesmo tema de fundo do presente processo, também consagrou a tese de que, em relação às fases do “ciclo de polícia”, somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, seguindo o entendimento de que aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público, este indelegável às pessoas jurídicas de direito privado. (STJ, EDcl no REsp 817.534/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 25/5/2010, DJe 16/6/2010; e REsp. 817.534/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 10/11/2009, DJe 10/12/2009).

  5. Não se desconhece que na ocasião do julgamento do RE 633.782/MG houve a revisão parcial do entendimento do STF sobre a possibilidade de delegação da função de polícia, cristalizando o Supremo a tese (representativa de controvérsia) de que “é constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial”.

  6. No caso, porém, o precedente não se aplica, pois: a) a CCEE é associação privada que não integra a Administração Pública; b) não há permissão constitucional para que atue como agente delegada da função administrativa de infligir sanções; c) os integrantes não gozam de qualquer estabilidade no emprego; d) embora a Câmara seja associação civil sem fins lucrativos, o fato é que ela é integrada “por titulares de concessão, permissão ou autorização” e “por outros agentes vinculados aos serviços e às instalações de energia elétrica”, ou seja, ela é essencialmente composta por pessoas jurídicas que, como fim principal, visam o lucro.

  7. Não há lei formal autorizando direta e expressamente que a CCEE aplique diretamente multas aos particulares, e depois as cobre por conta própria, na medida em que essa atribuição só é mencionada no Decreto n. 5.177/2004 c/c Resolução Normativa ANEEL n. 109.

  8. Recurso da parte demandada provido, para julgar improcedente o pedido da ação de cobrança. Recurso da CCEE prejudicado.

Leia o acórdão no REsp 1.950.332.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1950332

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