Por maioria de votos, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para aplicar multa pela degradação de falésia na Praia da Pipa, no município de Tibau do Sul (RN), em razão da construção de uma casa de luxo no local.
Para o colegiado, o fato de haver autorização do município para edificação na área não afasta a competência fiscalizatória do Ibama, especialmente porque as falésias são consideradas por lei Áreas de Preservação Permanente (APP), sujeitas à fiscalização contínua do órgão ambiental.
De acordo com os autos, o Ibama embargou a obra na borda da falésia e aplicou multa de R$ 500 mil. Em segunda instância, todavia, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) considerou nula a penalidade por concluir que, como o município permitiu a edificação, o Ibama não teria competência para aplicar a multa.
Ainda segundo o TRF5, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Tibau do Sul teria dispensado corretamente a empresa construtora de apresentar licença ambiental, pois o terreno estaria localizado em área urbana consolidada e, por isso, não estaria inserido em APP.
Competências para licenciar e fiscalizar não se confundem
O relator do recurso no STJ, ministro Herman Benjamin, destacou que, para a jurisprudência da corte, o Ibama tem o dever de fiscalizar e exercer o seu poder de polícia diante de qualquer atividade que possa colocar em risco o meio ambiente, ainda que a competência para o licenciamento seja de outro órgão público. “É que a competência para licenciar não se confunde com a competência para fiscalizar”, ressaltou, citando precedentes do STJ sobre o tema.
Segundo o ministro, o TRF5 concluiu que, como o terreno está localizado em zona urbana, ele não poderia ser considerado APP, motivo pelo qual seria desnecessária a obtenção de licenciamento ambiental.
Entretanto, o relator apontou que os dispositivos do Código Florestal devem ser aplicados para Áreas de Preservação Permanente tanto em zonas rurais quanto urbanas. No mesmo sentido, o ministro enfatizou que a ação humana sobre o meio ambiente não é justificativa capaz de afastar o regime de proteção legal.
Falésias marinhas são consideradas APPs e não podem ser edificadas
Em seu voto, Herman Benjamin reforçou que as falésias marinhas são consideradas APPs e, por isso, não podem ser edificadas, havendo presunção absoluta de dano ambiental no caso de desmatamento, ocupação ou exploração.
“Dotados de grande beleza cênica e frágeis por constituição e topografia inerentes – submetidos amiúde a solapamento da base pela ação do mar, risco de abrasão agravado pelas mudanças climáticas, sem falar de outros agentes erosivos exodinâmicos (vento, chuva) associados ao intemperismo –, esses paredões abruptos constituem monumentos ancestrais e singulares da pandemônica história geológica da Terra”, definiu o ministro.
Por tais razões, ele afirmou que as falésias exigem “máximo respeito e diligente atenção do legislador, do administrador e do juiz”, especialmente em relação à crescente pressão imobiliária e turística sobre esses espaços, normalmente exercida de forma desordenada e não sustentável.
“Logo, haja vista que, no caso em escopo, não houve licenciamento para realização de obra em borda de falésia, está justificada a atuação sancionatória do Ibama, além de outras providências nos campos administrativo, civil e penal”, concluiu o ministro ao dar provimento ao recurso do Ibama.
O recurso ficou assim ementado:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL E MEIO AMBIENTE. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. FALÉSIA. COMPETÊNCIA DE FISCALIZAÇÃO AMBIENTAL. LEI COMPLEMENTAR 140⁄2011. IBAMA. APLICAÇÃO PLENA DO CÓDIGO FLORESTAL À ÁREA URBANA. ART. 4º DA LEI 12.651⁄2012. DEVER DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL.HISTÓRICO DA DEMANDA1. Trata-se, na origem, de Ação Ordinária postulada contra o Ibama, visando à declaração de nulidade de Auto de Infração lavrado em decorrência de obra degradadora em Borda de Falésia (APP), para a construção de residência unifamiliar de luxo na Praia de Pipa, Tibau do Sul⁄RN.2. O Tribunal a quo concluiu que, considerando que a recorrida possuía autorização do órgão municipal para a edificação, o Ibama careceria de competência para a aplicação de multa ambiental. Entendeu, ainda, que a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Serviços Urbanos de Tibau do Sul⁄RN dispensou corretamente a empresa recorrida de apresentar licença ambiental, pois o terreno estaria localizado em área urbana consolidada e, por isso, não se trataria de APP.FALÉSIAS COMO ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE3. As falésias marinhas, como borda escarpada de “tabuleiro” costeiro, são Áreas de Preservação Permanente (art. 2°, g, da Lei 4.771⁄1965, revogada, e art. 4°, VIII, da Lei 12.651⁄2012), portanto compõem terreno non aedificandi, com presunção absoluta de dano ambiental caso ocorra desmatamento, ocupação ou exploração, observadas as ressalvas, em rol taxativo, expressa e legalmente previstas. Contra tal presunção juris et de jure, incabível prova de qualquer natureza, pericial ou não.COMPETÊNCIA FISCALIZATÓRIA DO IBAMA4. O STJ entende que o Ibama possui o dever-poder de fiscalizar e exercer poder de polícia diante de qualquer atividade que ponha em risco o meio ambiente, apesar de a competência para o licenciamento ser de outro órgão público. É que, à luz da legislação, inclusive da Lei Complementar 140⁄2011, a competência para licenciar não se confunde com a competência para fiscalizar. Precedentes: AgRg no REsp 711.405⁄PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 15.5.2009; REsp 1.307.317⁄SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 23.10.2013; REsp 1.560.916⁄AL, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 9.12.2016; AgInt no REsp 1.484.933⁄CE, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 29.3.2017; e AgInt no REsp 1.532.643⁄SC, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 23.10.2017; REsp 1.802.031⁄PE, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 11.9.2020.APLICAÇÃO DO CÓDIGO FLORESTAL EM ÁREAS URBANAS5. Os dispositivos do Código Florestal, em especial o art. 4º da Lei 12.651⁄2012, devem ser aplicados para a proteção de Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas. Precedentes: AgInt no AREsp 839.492⁄SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 6.3.2017; AgInt no REsp 1.365.259⁄SC, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 15.10.2018; REsp 1.667.087⁄RS, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 13.8.2018; REsp 1.775.867⁄SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 23.5.2019. Consta deste último julgado: �A proteção ao meio ambiente não difere área urbana de rural, porquanto ambas merecem a atenção em favor da garantia da qualidade de vida proporcionada pelo texto constitucional, pelo Código Florestal e pelas demais normas legais sobre o tema�.6. De acordo com a jurisprudência do STJ, a antropização da área (fato consumado) não é capaz de afastar o regime protetivo das APPs. Nesse sentido: REsp 1.782.692⁄PB , Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 5.11.2019; AgInt no REsp 1.911.922⁄SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 7.10.2021; AgInt nos EDcl no REsp 1.705.572⁄CE, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 26.4.2023.CONCLUSÃO7. Recurso Especial provido.
Leia o acórdão no REsp 1.646.016.