A cadeia de custódia no processo penal: do Pacote Anticrime à jurisprudência do STJ

Em 2019, o Pacote Anticrime (Lei 13.964) regulamentou a cadeia de custódia no Código de Processo Penal (CPP), estabelecendo: “considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”.

A partir da definição jurídica da cadeia de custódia, o Pacote Anticrime instituiu a regulamentação sobre uma das questões mais sensíveis do processo penal: a guarda dos vestígios do delito. Afinal, caso não haja o recolhimento correto dos vestígios logo após o crime, a sua preservação durante as fases policial e judicial e o seu acondicionamento até a decisão final no processo, a chamada quebra da cadeia de custódia pode comprometer a apuração da verdade.

Conforme definido pelo ministro Ribeiro Dantas no RHC 77.836, “a cadeia de custódia tem como objetivo garantir a todos os acusados o devido processo legal e os recursos a ele inerentes, como a ampla defesa, o contraditório e, principalmente, o direito à prova lícita. O instituto abrange todo o caminho que deve ser percorrido pela prova até sua análise pelo magistrado, sendo certo que qualquer interferência durante o trâmite processual pode resultar na sua imprestabilidade”.

Não se admite prova digital sem registro dos procedimentos adotados pela polícia

Em fevereiro deste ano, a Quinta Turma do STJ decidiu que são inadmissíveis as provas digitais sem registro documental acerca dos procedimentos adotados pela polícia para a preservação da integridade, da autenticidade e da confiabilidade dos elementos informáticos.

No caso dos autos, um homem foi denunciado por, supostamente, fazer parte de organização criminosa que praticava furtos eletrônicos contra instituições financeiras. Durante a investigação que embasou o oferecimento da denúncia, foram realizadas buscas e apreensões e subsequentes quebras do sigilo de dados armazenados nos aparelhos eletrônicos apreendidos pela polícia.

A defesa do acusado alegou que houve quebra da cadeia de custódia, o que foi reconhecido pela turma julgadora. Segundo o ministro Ribeiro Dantas, cujo voto prevaleceu no julgamento, “antes mesmo de ser periciado pela polícia, o conteúdo extraído dos equipamentos foi analisado pela própria instituição financeira vítima”. Além disso, não havia documentação sobre os métodos utilizados para acondicionar os aparelhos e extrair seus dados.

O ministro observou que, embora já sejam há alguns anos conhecidos os procedimentos técnicos necessários para assegurar a integridade de provas digitais, diversos foram os descuidos da autoridade policial no manuseio dos aparelhos apreendidos.

“Não existe nenhum tipo de registro documental sobre o modo de coleta e preservação dos equipamentos, quem teve contato com eles, quando tais contatos aconteceram e qual o trajeto administrativo interno percorrido pelos aparelhos, uma vez apreendidos pela polícia. Nem se precisa questionar se a polícia espelhou o conteúdo dos computadores e calculou a hash da imagem resultante, porque até mesmo providências muito mais básicas do que essa – como documentar o que foi feito – foram ignoradas pela autoridade policial”, afirmou.

Segundo Ribeiro Dantas, não há, desse modo, como assegurar que os dados periciados são íntegros, o que acarreta “a quebra da cadeia de custódia dos computadores apreendidos pela polícia, inadmitindo-se as provas obtidas, por falharem num teste de confiabilidade mínima; inadmissíveis são, igualmente, as provas delas derivadas, em aplicação analógica do artigo 157, parágrafo 1º, do CPP“, concluiu.

Prova suficiente afasta discussão sobre suposta quebra da cadeia de custódia

No julgamento do AREsp 1.847.296, a Quinta Turma decidiu que a alegada quebra da cadeia de custódia não invalida a condenação se esta foi amparada em evidências suficientes da materialidade do crime. O colegiado seguiu o entendimento de que, no processo penal, o reconhecimento de nulidade exige a comprovação de prejuízo efetivo.

Um homem foi acusado de armazenar grande quantidade de maços de cigarros estrangeiros sem a documentação regular de entrada no país. De acordo com o auto de infração da Receita Federal, foram encontrados 1.050 maços no depósito, enquanto o auto de apreensão da Polícia Civil registrava 10.050 maços. Diante dessa divergência, o acusado alegou que deveria ser reconhecida a quebra da cadeia de custódia e a imprestabilidade da prova.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator do recurso, destacou que, apesar da divergência sobre a quantidade apreendida, não se pode falar em quebra da cadeia de custódia, uma vez que há provas suficientes nos autos para a condenação.

“Ficou comprovado que o acusado manteve em depósito pelo menos 1.050 maços de cigarros estrangeiros sem a devida documentação da regular internalização em território nacional. Assim, tal situação não induz à imprestabilidade da prova”, declarou.

O relator observou que a contradição sobre a quantidade de cigarros não comprometeu a comprovação da materialidade do crime e que a defesa não demonstrou prejuízo em razão do alegado vício, “visto que a condenação se sustenta nos 1.050 maços apreendidos”.

Irregularidade na guarda de provas deve ser apontada antes da pronúncia

No ano passado, a Sexta Turma do STJ decidiu que a irregularidade na guarda de provas em processo do tribunal do júri deve ser apontada antes da pronúncia. Segundo o colegiado, há preclusão quando a nulidade supostamente ocorrida durante a instrução do processo de competência do tribunal do júri é apontada após a sentença de pronúncia (artigo 571, inciso I, do CPP).

De acordo com a denúncia, os réus detiveram um homem acreditando que ele teria roubado um posto de gasolina. Em seguida, por ordem do dono do posto, teriam dado 16 tiros na vítima. O Tribunal do Júri de Contagem (MG) condenou os réus a 14 anos de reclusão, mas o TJMG anulou a decisão.

Relator do REsp 1.825.022, o ministro Sebastião Reis Júnior observou que a arma do crime e alguns projéteis apreendidos desapareceram, além de ter havido mistura de evidências do homicídio cometido em Contagem com vestígios relativos à investigação da morte de um promotor.

Apesar do desaparecimento dos objetos, o magistrado esclareceu que seria inviável declarar a nulidade da perícia, como pretendido pela defesa, pois esta não fez tal pedido no momento oportuno. “A preclusão apontada pelo órgão ministerial efetivamente obsta a declaração de nulidade efetivada pela corte de origem”, concluiu.

Quebra da cadeia de custódia nem sempre impede utilização da prova

A quebra da cadeia de custódia não gera nulidade obrigatória da prova colhida. Nessas hipóteses, eventuais irregularidades devem ser observadas pelo juízo ao lado dos demais elementos produzidos na instrução criminal, a fim de decidir se a prova questionada ainda pode ser considerada confiável. Só após essa confrontação é que o magistrado, caso não encontre sustentação na prova cuja cadeia de custódia foi violada, pode retirá-la dos autos ou declará-la nula.

O entendimento, por maioria de votos, foi estabelecido pela Sexta Turma ao conceder habeas corpus (HC 653.515) e absolver um réu acusado de tráfico de drogas, porque a substância apreendida pela polícia foi entregue à perícia em embalagem inadequada e sem lacre. Para o colegiado, como a origem e outras condições da prova não foram confirmadas em juízo, ela não poderia ser utilizada como fundamento para a condenação.

O ministro Rogerio Schietti Cruz, cujo voto prevaleceu no julgamento, considerou que o fato de a substância ter chegado à perícia sem lacre e sem o acondicionamento adequado fragiliza a acusação de tráfico, pois não permite identificar se era a mesma que foi apreendida. Segundo Schietti, a situação seria diferente se o réu tivesse admitido a posse das drogas ou se houvesse outras provas para apoiar a condenação.

“A questão relativa à quebra da cadeia de custódia da prova merece tratamento acurado, conforme o caso analisado em concreto, de maneira que, a depender das peculiaridades da hipótese analisada, podemos ter diferentes desfechos processuais para os casos de descumprimento do assentado no referido dispositivo legal” – concluiu o ministro ao absolver o réu do crime de tráfico. Ficou mantida, porém, a condenação por associação para o tráfico (artigo 35 da Lei 11.343/2006).

Não é possível falar em quebra da cadeia de custódia antes da Lei 13.964/2019

Ao julgar o agravo regimental no HC 739.866, a Quinta Turma entendeu que não era cabível discutir quebra da cadeia de custódia por inobservância de regras legais que não existiam à época do crime.

Após ser condenado a 11 anos e seis meses de reclusão, o réu alegou que teve sua defesa cerceada, pois não teve acesso a todos os caminhos percorridos por uma prova que, segundo ele, teria fundamentado a condenação – o que teria resultado na quebra da cadeia de custódia.

O relator do recurso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, observou que, nos termos do artigo 2º do CPP, a lei processual penal será aplicada desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

“Diante da recente alteração legislativa sobre o procedimento acerca da cadeia de custódia da prova, a corte local, de forma objetiva e fundamentada, explicou que, no processamento das evidências relativas aos fatos ora julgados, ainda não existia um procedimento específico para a manutenção da cadeia de custódia da prova como temos hoje”, observou.

O magistrado ainda apontou que, conforme destacado no parecer do Ministério Público Federal, não foram trazidos aos autos elementos aptos a demonstrar que houve adulteração ou mesmo interferência a ponto de invalidar a prova e, assim, afastar a condenação do réu nos termos fixados na sentença e ratificados pelo acórdão impugnado.

Concisão em ofício sobre exame de DNA não significa quebra da cadeia de custódia

Em 2021, ao julgar o HC 574.103, a Sexta Turma decidiu que, embora o ofício sobre exame de DNA tenha sido elaborado de maneira concisa, sem indicação do número do pacote, não ficou comprovada a quebra da cadeia de custódia do material genético enviado para exame, uma vez que a simples concisão do ofício e a ausência de indicação do número do pacote não são suficientes para configurar ilegalidade.

De acordo com os autos, um homem foi condenado a 18 anos de prisão pelo homicídio de sua parceira. A defesa, então, impetrou o habeas corpus sustentando que a condenação seria contrária à prova dos autos, pela ilicitude – entre outras coisas – do exame de DNA realizado no corpo da vítima. Segundo a defesa, não foi possível comprovar a materialidade do crime, pois não havia como assegurar que o DNA analisado nos autos fosse o da vítima, uma vez que o pacote que guardava o material genético não tinha número de identificação.

O ministro Nefi Cordeiro (hoje aposentado), relator do habeas corpus, destacou que, de acordo com o ofício, o médico legista solicitou ao delegado de polícia o material genético relativo à mãe da vítima, para fins de comparação de DNA – o que foi atendido. Segundo o magistrado, também é possível extrair do ofício que o material genético foi enviado em frasco plástico e envolto por embalagem plástica, devidamente identificada.

Nefi Cordeiro esclareceu que, ainda que o ofício tenha sido conciso, sem indicação do número do pacote ou qualquer outra informação, não se pode ter como provada a violação à custódia das provas. “Assim, após valoração da perícia e outras provas, admitiu-se como demonstrada a materialidade do crime, não sendo possível agora a alteração de entendimento quanto ao material fático produzido ao longo da instrução processual“, declarou.

Alegação de quebra da cadeia de custódia que exige exame de prova não cabe em HC

A Sexta Turma, no julgamento do RHC 104.176, de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, decidiu que eventual quebra da cadeia de custódia que demande análise fático-probatória não pode ser reconhecida em ação de habeas corpus.

O relator afirmou que, apesar de a observância da cadeia de custódia de prova ser imprescindível para que haja o respeito ao devido processo legal, o rito do habeas corpus não permite a dilação probatória. Segundo o ministro, a existência de controvérsia sobre matéria fática gera um óbice intransponível para a utilização dessa ação constitucional.

Schietti ressaltou que a elucidação dos fatos é essencial, porém deve ocorrer na ação penal, sob o contraditório judicial, e não em habeas corpus, por total incompatibilidade com as regras e os limites próprios da ação mandamental.

“A busca do acertamento fático é elemento do justo processo penal. É fundamental que haja, com o respeito aos direitos fundamentais do réu, de eventual vítima e da sociedade, a correspondência, ao menos aproximada, entre os fatos, tal como ocorreram, e aqueles descritos nos autos. E o campo para dirimir dúvidas é o juízo da causa, sob o contraditório judicial”, declarou.

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