Delatado pode acessar gravações sobre acordo de colaboração premiada e sua homologação

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a pessoa delatada em uma colaboração premiada tem o direito de acessar a gravação das negociações do acordo e da audiência em que ele foi homologado pelo juiz. Assim, o terceiro delatado pode verificar a legalidade e a regularidade do acordo de colaboração, bem como a voluntariedade do colaborador ao assiná-lo.

Esse entendimento levou o colegiado a negar provimento ao recurso no qual o Ministério Público Federal (MPF) pedia que fosse impedido o acesso de um delatado a tais gravações.

Para o MPF, o terceiro delatado não teria legitimidade para questionar a validade do acordo de colaboração premiada. O órgão argumentou ainda que o artigo 4º, parágrafo 7º, da Lei 12.850/2013 estabelece que a audiência judicial de homologação do acordo é sigilosa. Por fim, alegou que a divulgação das tratativas poderia colocar em risco investigações ainda em andamento.

Acordo de colaboração premiada tem natureza híbrida

Segundo o relator do recurso no STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, o artigo 3º-A da Lei 12.850/2013 estabelece que o acordo de colaboração premiada tem natureza híbrida, sendo ao mesmo tempo um negócio jurídico processual e um meio de obtenção de prova.

Apesar dessa natureza jurídica mista, o ministro explicou que o primeiro aspecto prevalecia na jurisprudência quando se discutia a legitimidade do terceiro delatado para impugnar a validade do acordo: uma vez que se tratava de negócio jurídico personalíssimo, cabia ao terceiro apenas confrontar o conteúdo da palavra e das provas apresentadas pelo delator, mas não a validade formal do acordo celebrado.

O relator explicou que esse cenário começou a mudar em recentes julgados da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que passou a entender que, como meio de obtenção de prova, o acordo pode impactar gravemente a esfera jurídica do terceiro delatado, razão pela qual é necessária a observância da legalidade, cujo desrespeito pode ser questionado por quem foi prejudicado.

Ao fazer um paralelo com a colheita de provas contra terceiros na busca e apreensão, o ministro comentou que é natural que esses terceiros tenham interesse e legitimidade para impugnar não apenas o conteúdo de tais provas, mas também a validade da medida que fez com que elas chegassem aos autos.

“Não é apenas o conteúdo da prova colhida que interfere na esfera jurídica do acusado, visto que esse conteúdo só pode ser valorado se a forma pela qual foi obtido for lícita. Daí a impropriedade de se sustentar que são apenas as provas fornecidas pelo delator que atingem o delatado, e não o acordo em si, porquanto foi só por meio do acordo – o qual deve respeitar a lei – que as provas foram obtidas”, disse.

Sigilo das diligências é pontual e não deve restringir publicidade dos atos

Para Schietti, o artigo 4º, parágrafo 7º, da Lei 12.850/2013, ao determinar que o juiz deverá “ouvir sigilosamente o colaborador”, não estabelece uma regra perpétua quanto à restrição da publicidade do ato. Segundo o ministro, trata-se apenas de preservar pontualmente aquele momento da investigação, em que o sigilo é necessário para assegurar a eficácia de diligências em andamento, as quais podem ser frustradas se o indivíduo delatado tiver acesso a elas.

Contudo, ponderou que, oferecida e recebida a denúncia, “a regra volta a ser a que deve imperar em todo Estado Democrático de Direito, isto é, publicidade dos atos estatais e respeito à ampla defesa e ao contraditório, nos termos do artigo 7º, parágrafo 3º, da Lei 12.850/2013“.

De acordo com o relator, a preocupação com as diligências em andamento é legítima, e, havendo alguma medida investigativa pendente, o juízo pode preservar o sigilo sobre ela, “mas sem vedar indefinidamente, em abstrato e de antemão, o acesso da defesa à totalidade das tratativas do acordo e à audiência de homologação”.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E CRIMES LICITATÓRIOS. ACESSO DO INDIVÍDUO DELATADO ÀS GRAVAÇÕES DAS TRATATIVAS E DA AUDIÊNCIA DE HOMOLOGAÇÃO DO ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. POSSIBILIDADE. ART. 4º, §§ 6º E 7º, DA LEI N.12.850/2013. MANUTENÇÃO DO SIGILO. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA IDÔNEA. DENÚNCIA JÁ RECEBIDA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL NÃO PROVIDO.

  1. De acordo com o art. 3º-A da Lei n. 12.850/2013, o acordo de colaboração premiada tem natureza jurídica híbrida e consubstancia, a um só tempo, negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova.

  2. Uma vez que o acordo de colaboração premiada também é meio de obtenção de prova e, por isso, serve de instrumento para a coleta de elementos incriminatórios contra terceiros e atinge a esfera jurídica deles, é natural que esses terceiros tenham interesse e legitimidade para impugnar não apenas o conteúdo de tais provas, mas também a legalidade da medida que fez com que elas aportassem aos autos.

  3. Não é apenas o conteúdo das provas fornecidas pelo delator que interfere na esfera jurídica do acusado, porquanto é só por meio do acordo de colaboração que as provas são obtidas. Assim, essas provas só podem ser valoradas se o acordo que levou até elas também for válido. Comparativamente, por exemplo, em uma busca e apreensão (outro meio de obtenção de prova), é indiscutível que os indivíduos prejudicados pela medida podem questionar tanto a sua validade – mesmo quando amparada em autorização judicial – quanto o conteúdo das provas colhidas por meio dela.

  4. Obstar essa possibilidade de questionamento pelo terceiro delatado com base no postulado civilista da relatividade dos negócios jurídicos implicaria inadmissível cerceamento de defesa e, por consequência, abriria margem para a ocorrência de abusos, porque conferiria a legitimidade para impugnação dos acordos tão somente àqueles que mais têm interesse na sua preservação: Ministério Público e colaborador. Aliás, mesmo no direito privado, o princípio da relatividade dos negócios jurídicos vem sendo constantemente mitigado à luz da função social do contrato – em sua eficácia externa –, especialmente quando atinge direitos de terceiros, justamente para evitar que aquele que não participou voluntariamente do negócio alheio seja indevidamente prejudicado.

  5. Isso significaria, hipoteticamente, que, se fossem oferecidos benefícios indevidos ao delator a fim de obter a incriminação de terceiro e a medida fosse chancelada pelo Magistrado, nada poderia ser feito para questionar o acordo. Da mesma forma, se o colaborador fosse coagido a delatar alguém e, para não perder os benefícios, deixasse de impugnar a avença, ninguém mais poderia fazê-lo caso o Juiz não identificasse a coação ao homologar o acordo.

  6. Ao determinar que deverá “o juiz ouvir sigilosamente o colaborador”, o art. 4º, § 7º, da Lei n. 12.850/2013 não estabelece uma regra perpétua quanto à restrição da publicidade do ato. Trata-se, apenas, de preservar aquele momento incipiente da investigação, em que o sigilo se faz necessário para assegurar a eficácia de diligências em andamento, as quais podem ser frustradas se o indivíduo delatado tiver acesso a elas.

  7. Todavia, oferecida e recebida a denúncia, a regra volta a ser a que deve imperar em todo Estado Democrático de Direito, isto é, publicidade dos atos estatais e respeito à ampla defesa e ao contraditório, nos termos do art. 7º, § 3º, da Lei n. 12.850/2013: “O acordo de colaboração premiada e os depoimentos do colaborador serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidade em qualquer hipótese”.

  8. Esse dispositivo, embora se refira expressamente apenas ao acordo e aos depoimentos do colaborador, também deve ser aplicado às tratativas – obrigatoriamente gravadas por imposição do § 13 do art. 4º – e à audiência de homologação do acordo, em virtude da mesma lógica: recebida a denúncia, o sigilo excepcional perde a razão de existir e cede espaço à regra da necessária publicidade dos atos estatais, assim como do respeito ao contraditório e à ampla defesa, exceto quanto às diligências em andamento que possam ter sua execução prejudicada pela revelação das informações.

  9. No caso, o Tribunal de origem concedeu a ordem de habeas corpus para determinar que o Juízo singular fornecesse à defesa do réu – indivíduo delatado – o acesso aos vídeos e às atas das audiências realizadas com os colaboradores, a fim de que ela pudesse analisar a legalidade, a regularidade e a voluntariedade das colaborações.

  10. Não há ilegalidade a ser reconhecida no acórdão, uma vez que o réu delatado tem legitimidade para questionar a validade do acordo de colaboração do delator – o que pressupõe o acesso às tratativas e à audiência de homologação – e o sigilo não mais se justifica, porque a denúncia já foi recebida e nenhum risco concreto a diligências em andamento foi apontado no recurso. Vale ressaltar, a propósito, que se trata de acordo homologado há mais de quatro anos, de modo que dificilmente se imagina haver ainda alguma diligência investigativa sigilosa pendente contra o recorrido ou mesmo em relação a outros possíveis delatados.

  11. De todo modo, nada impede que, constatando a pendência de alguma diligência sigilosa, o Juízo singular preserve, pontualmente, com fundamentação concreta, o sigilo dela, mas sem vedar indefinidamente, em abstrato e de antemão, o acesso da defesa à totalidade das tratativas do acordo e à audiência de homologação.

  12. Recurso especial do Ministério Público Federal não provido.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1954842

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