A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento a recurso que buscava desabilitar da sucessão um filho havido fora do casamento, ao argumento de que a partilha dos bens foi feita antes da promulgação da Constituição de 1988 – a qual, no artigo 227, parágrafo 6º, vedou qualquer diferenciação entre os filhos.
Para o ministro relator do caso, Luis Felipe Salomão, o fato de haver coisa julgada não pode se sobrepor ao direito fundamental do filho extraconjugal de figurar na sucessão.
“Não se apresenta aconselhável privilegiar a coisa julgada formal em detrimento do direito à identidade genética, consagrado na Constituição Federal como direito fundamental, relacionado à personalidade. Descabe recusar o ajuizamento da nova ação quando há apenas coisa julgada formal decorrente da extinção do processo anterior e a ação posteriormente proposta atende aos pressupostos jurídicos e legais necessários ao seu processamento”, afirmou o relator, citando trecho de voto do ministro Raul Araújo em caso semelhante (REsp 1.215.189).
Direito garantido
Outro ponto debatido no recurso foi o reconhecimento do direito de sucessão aos filhos extraconjugais na época da partilha dos bens, em 1983.
O ministro relator lembrou que tal direito já era assegurado aos filhos em tal situação mesmo antes da Constituição de 1988, por força da Lei 883/49 e da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77). O primeiro acórdão proferido neste caso reconheceu a paternidade, mas não o direito de sucessão, deixando de observar a legislação vigente à época dos fatos.
O caso começou em 1994, com a propositura de uma ação de investigação de paternidade 11 anos após a morte do genitor e a partilha dos bens feita com os herdeiros “legítimos”. A paternidade foi reconhecida, porém sem o direito do filho reconhecido de figurar na sucessão.
A negativa levou à propositura de uma ação rescisória, que obteve sucesso. Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) agiu de forma correta ao rescindir o acórdão que deixou de observar as garantias previstas nas Leis 883/49 e 6.515/77 aos filhos tidos fora do casamento.
Nova partilha
No recurso ao STJ, os demais herdeiros alegaram decadência no direito e impossibilidade de desconstituição da coisa julgada, já que a herança foi partilhada há 34 anos.
Para o relator, esses argumentos não procedem, já que desde o início o filho extraconjugal pleiteava a participação no espólio.
“Ao contrário do que sustentam os recorrentes, não houve inovação da causa de pedir, haja vista que o recorrido, desde sempre, enfatizou que o acórdão objeto da rescisória teria sido insensível à legislação ordinária que já vigorava desde 1977”, afirmou o ministro.
Com a manutenção do acórdão, o espólio do genitor terá que ser partilhado novamente, incluindo o filho extraconjugal na herança.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL AÇÃO RESCISÓRIA. ART. 475, V, DO CPC⁄1973. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E PETIÇÃO DE HERANÇA. FILHO ADULTERINO. FALECIMENTO DO GENITOR ANTES DO ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. CAPACIDADE PARA SUCEDER. INCIDÊNCIA DA LEGISLAÇÃO VIGENTE À ÉPOCA DA ABERTURA DA SUCESSÃO. LEI N° 883⁄49 E LEI DO DIVÓRCIO. POSSIBILIDADE DE DEMANDAR PELO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE FILIAÇÃO E PELO DIREITO DE HERANÇA EM IGUALDADE DE CONDIÇÕES COM OS DEMAIS FILHOS. PRETENSÃO FUNDADA EM AFRONTA À LITERAL DISPOSITIVO DE LEI. DESCONSIDERAÇÃO, PELO ACÓRDÃO RESCINDENDO, DA LEGISLAÇÃO ESPARSA VIGENTE À ÉPOCA. RESCISÃO DO JULGADO. NECESSIDADE.
1. Mostra-se indispensável o debate da questão jurídica pelas instâncias ordinárias, ainda que verse sobre matéria de ordem pública, para fins de conhecimento do recurso especial, sob pena de inviabilizar do acesso à instância superior dos recursos excepcionais pela ausência do prequestionamento.
2. A decretação de nulidade de atos processuais depende da efetiva demonstração de prejuízo à parte interessada, em face do princípio pas de nullité sans grief, sendo que, no caso, os recorrentes limitaram-se a alegar o erro de procedimento do Juízo, sem aventar nenhum dano advindo desta conduta.
3. “O prazo para ajuizamento da ação rescisória somente tem início com o trânsito em julgado material, ou seja, após o transcurso “in albis” do prazo para recorrer, mesmo que o último recurso interposto não tenha sido conhecido por intempestividade, exceto configuração de erro grosseiro ou má-fé” (REsp 1186694⁄DF, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 03⁄08⁄2010, DJe 17⁄08⁄2010).
4. A Quarta Turma já assentou o posicionamento de que “máxime em ações de estado, não se apresenta aconselhável privilegiar a coisa julgada formal em detrimento do direito à identidade genética, consagrado na Constituição Federal como direito fundamental, relacionado à personalidade. Descabe, assim, na espécie, recusar o ajuizamento da nova ação (CPC, art. 268), quando há apenas coisa julgada formal decorrente da extinção do processo anterior e a ação posteriormente proposta atende aos pressupostos jurídicos e legais necessários ao seu processamento” (REsp 1215189⁄RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe 01⁄02⁄2011).
5. As discriminações existentes entre os filhos foram definitivamente extintas com o advento da Constituição Federal de 1988. No entanto, os direitos sucessórios dos filhos extraconjugais já eram assegurados pela Lei n° 883⁄49 (com a redação dada pelo artigo 51 da Lei 6.515⁄77), que estabeleceu o direito à investigação de paternidade e à participação em grau de igualdade na herança, qualquer que seja a natureza da filiação.
6. Não há falar em incidência da Súm 343 do STF quando inexistente qualquer interpretação controvertida a respeito do tema nos tribunais.
7. A subsistência de fundamento inatacado apto a manter a conclusão do aresto impugnado impõe o não conhecimento da pretensão recursal, a teor do entendimento disposto na Súmula nº 283⁄STF.
8. Na hipótese, chegar à conclusão diversa do acórdão recorrido, no tocante à inexistência de qualquer vínculo conjugal dos genitores a impedir o Autor de demandar a investigação de paternidade, ante a dissolução do casamento da mãe pelo desquite e o término do matrimônio do pai pela morte do mesmo, demandaria o revolvimento fático-probatório dos autos, o que encontra óbice na Súm 7⁄STJ.
9. Recurso especial não provido.