Terceira Turma vê simulação em instrumento de confissão de dívida que teria mascarado propina

Por verificar a simulação de negócio jurídico, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, declarou a nulidade de um instrumento particular de confissão de dívida firmado entre duas empresas que, segundo os autos, buscavam mascarar o pagamento de propina para funcionário público.

De acordo com o processo, como condição para receber mais de R$ 18 milhões relativos a um antigo contrato com o estado do Tocantins, uma empresa teria sido orientada a pagar propina em favor de um então secretário estadual, por meio de uma sociedade empresária que levava o seu nome e da qual ele participava com 99% das cotas. Para dar ao esquema aparência de legalidade, teria sido elaborado um contrato de locação de equipamentos, no valor de mais de R$ 8 milhões, com a assinatura de termo de confissão de dívida.

Supostamente em dificuldades financeiras, a empresa assinou os contratos, mas, após receber os valores do governo do Tocantins, ela teria se recusado a pagar o montante previsto no acordo simulado. Como resultado, a empresa credora promoveu ação de execução de título extrajudicial, com base na confissão de dívida. Os devedores, por sua vez, opuseram embargos à execução, alegando que o título era nulo, decorrente de contrato simulado que foram coagidos a assinar.

Em primeiro grau, foi reconhecida a nulidade do negócio jurídico. Contudo, o Tribunal de Justiça de Goiás, por maioria, reformou a sentença por entender que não foram preenchidos os requisitos legais para a caracterização da coação, bem como não foi comprovada a ocorrência de simulação.

Juiz tem o dever de impedir o uso do processo para fins ilegais

A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que, nos termos do artigo 142 do Código de Processo Civil, “convencendo-se, pelas circunstâncias, de que autor e réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim vedado por lei, o juiz proferirá decisão que impeça os objetivos das partes, aplicando, de ofício, as penalidades da litigância de má-fé”.

Assim, afirmou a ministra que “é absolutamente vedado o uso do processo judicial para a execução de propina” e, havendo circunstâncias suficientes nesse sentido, o juiz tem o dever de agir de ofício “para impedir que o Judiciário sirva como meio de cobrança de valores provenientes de crime ou como forma de lavagem de dinheiro”.

Simulação pode ser comprovada por meio de indícios e presunções

A relatora comentou que, diante das dificuldades para comprovar a simulação de um negócio jurídico, o julgador deve recorrer a indícios e presunções como meios de prova, quando não houver a possibilidade de prova direta.

Pela análise conjunta das circunstâncias delimitadas pelas instâncias ordinárias, a ministra entendeu ter ficado demonstrada a simulação do título executivo – causa de nulidade absoluta (artigo 167 do Código Civil). Segundo a relatora, não há nenhuma nota fiscal que respalde o contrato de locação de maquinários, e a perícia realizada demonstrou a desproporção entre o valor e os serviços contratados.

A ministra consignou, ainda, que houve uma sequência de atos intercalados praticados pela executada e pelo então secretário estadual em datas muito próximas, “a demonstrar que, de fato, cada um estava cumprindo a sua parte no acordo, ficando evidente a relação entre dois eventos que, em um contexto de licitude, jamais deveria existir”.

Nancy Andrighi ressaltou que o negócio jurídico dissimulado é igualmente nulo, na forma do artigo 166, II e III, do Código Civil, porque tanto o seu objeto quanto o seu motivo determinante (pagamento de propina a funcionário público) são ilícitos.

De acordo com a relatora, eventual conduta ilícita por parte do representante da executada que teria prometido a propina não prejudica o recurso em julgamento, “uma vez que isso não afasta a nulidade do negócio simulado (que pode ser reconhecida até mesmo de ofício), muito menos autoriza o uso do processo judicial para o fim ilegal de cobrar a propina” por parte da exequente.

Ao reconhecer a simulação do negócio e extinguir a execução, a ministra observou que eventuais ilicitudes estão sendo apuradas em ação de improbidade administrativa já instaurada.

O recurso ficou assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE EMBARGOS À EXECUÇÃO. JULGAMENTO CITRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. INSTRUMENTO PARTICULAR DE CONFISSÃO DE DÍVIDA. NEGÓCIO JURÍDICO SIMULADO. NULIDADE. OCORRÊNCIA. NEGÓCIO DISSIMULADO. PROMESSA DE PAGAMENTO DE VANTAGEM INDEVIDA A FUNCIONÁRIO PÚBLICO. NÃO SUBSISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE REQUISITOS DE VALIDADE. OBJETO E MOTIVO DETERMINANTE ILÍCITOS. USO DO PROCESSO PARA FIM VEDADO EM LEI. IMPOSSIBILIDADE.
1. Ação de embargos à execução, ajuizada em 13/4/2015, da qual foram extraídos os presentes recursos especiais, interpostos em 5/8/2021 e 10/8/2021 e conclusos ao gabinete em 14/7/2022.
2. O propósito recursal é definir se, na hipótese dos autos, (I) o instrumento de confissão de dívida no qual se funda a execução consiste em negócio jurídico simulado para mascarar a promessa de pagamento de vantagem indevida a funcionário público (propina); (II) está caracterizada a ocorrência de lesão ou coação; (III) houve cerceamento de defesa; e (IV) o julgamento foi citra petita.
3. Segundo a jurisprudência desta Corte, não há que falar em julgamento citra petita quando o Órgão Julgador não afronta os limites objetivos da pretensão inicial, tampouco deixa de apreciar providência jurisdicional pleiteada pelo autor da ação, respeitando o princípio da congruência.
4. A simulação é causa de nulidade absoluta do negócio jurídico simulado, podendo ser alegada por uma das partes contra a outra e até reconhecida de ofício pelo Juiz, inclusive de forma incidental.
Precedentes.
5. O afastamento do negócio jurídico simulado não implica, necessariamente, no aproveitamento do negócio dissimulado, o que somente ocorre quando este preenche os seus requisitos de validade.
6. Conforme o art. 142 do CPC/2015, havendo circunstâncias suficientes a demonstrar que uma ou ambas as partes, estão usando o processo para obter fim vedado por lei, é dever do Juiz, de ofício, proferir decisão que impeça tal objetivo.
7. Na hipótese dos autos, ficou suficientemente demonstrado, pela análise conjunta de, ao menos, 18 circunstâncias delimitadas na origem, que o instrumento de confissão de dívida no qual se funda a execução consiste em negócio jurídico simulado para mascarar a promessa de vantagem indevida (propina) pela recorrente ao Secretário de Estado, sócio da recorrida, para que este, em troca, liberasse o crédito pelo Estado em favor da recorrente. Assim, é nulo o negócio jurídico simulado (art. 167, § 1º, II e III, do CC/2002), sendo igualmente nulo o dissimulado, considerando que, tanto o seu objeto, quanto seu motivo determinante, comum a ambas as partes, são ilícitos (art. 166, II e III, do CC/2002).
8. Recursos especiais parcialmente conhecidos e, nessa extensão, parcialmente providos, para julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados na inicial dos embargos à execução, declarando a nulidade do título executivo extrajudicial e, por consequência, julgar extinto o processo de execução.

Leia o acórdão no REsp 2.044.569.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 2044569

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