Casos de grande repercussão e teses sobre atuação da polícia marcaram a pauta dos colegiados de direito penal

Nos colegiados especializados em direito penal do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ano de 2023 foi marcado por julgamentos de casos de grande repercussão, como a anulação do júri sobre a tragédia da Boate Kiss, e pelo estabelecimento de precedentes importantes sobre a atuação policial.

No começo de setembro, em uma das sessões que mais atraíram o interesse do público e da imprensa ao longo de todo o ano, a Sexta Turma manteve a anulação da decisão do tribunal do júri que havia condenado quatro réus no caso da Boate Kiss. A maioria do colegiado acompanhou a divergência inaugurada pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro e negou provimento ao recurso especial do Ministério Público do Rio Grande do Sul.

O incêndio na casa de shows da cidade de Santa Maria (RS), em janeiro de 2013, causou a morte de 242 pessoas e deixou feridas outras 636. Em dezembro de 2021, o tribunal do júri condenou Elissandro Callegaro Spohr a 22 anos e seis meses de reclusão; Mauro Londero Hoffmann, a 19 anos e seis meses; e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, ambos à pena de 18 anos.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, porém, reconheceu irregularidades no julgamento e anulou a decisão. O relator no STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, votou para restabelecer a condenação, mas ficou vencido.

Em seu voto, Saldanha Palheiro afirmou que, em se tratando de tribunal do júri, cujo julgamento é feito por juízes leigos, quanto mais controvertido for o processo, maior deve ser o cuidado na observância da legalidade estrita.

Presos pelo assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira

O ministro Ribeiro Dantas, em fevereiro, negou o pedido de liminar com a qual a defesa pretendia reverter a transferência, para penitenciárias federais, de três acusados pelo assassinato e pela ocultação dos corpos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. Os crimes aconteceram em 2022, nas proximidades da Terra Indígena Vale do Javari (AM).

Em dezembro daquele ano, Amarildo da Costa Oliveira foi transferido para o presídio de Catanduvas (PR), enquanto Oseney Costa de Oliveira e Jeferson da Silva Lima foram colocados na penitenciária de Campo Grande (MS).

Para o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, a retirada dos acusados de Manaus e sua colocação em presídios de segurança máxima eram necessárias devido ao risco de fuga, além do perigo de morte por ordem dos supostos mandantes do crime – fato ainda em apuração.

Ao longo do ano, o caso foi analisado duas vezes pela Quinta Turma, que confirmou a decisão de Ribeiro Dantas.

Prisão preventiva após morte na “câmara de gás”

Também no início do ano judiciário, o ministro Rogerio Schietti Cruz manteve a prisão preventiva de um dos policiais rodoviários federais acusados da tortura e do homicídio de Genivaldo de Jesus Santos.

O caso aconteceu em maio de 2022 e ficou conhecido como “a câmara de gás improvisada”. De acordo com a denúncia do Ministério Público, a vítima morreu asfixiada depois de ser colocada no compartimento de presos da viatura da Polícia Rodoviária Federal, onde os agentes lançaram spray de pimenta e gás lacrimogêneo.

Schietti, ao negar a liminar pedida pela defesa, reconheceu motivação adequada na ordem de prisão preventiva, a qual registrou expressamente que, “mesmo encerrada a primeira fase do procedimento do júri, remanescem os fundamentos da segregação cautelar”. Em junho, ao analisar o mérito, o ministro negou o habeas corpus.

Progressão de regime no caso Isabella Nardoni

A Quinta Turma determinou, na última semana de maio, que o juízo da execução em São Paulo apreciasse o pedido de progressão ao regime aberto apresentado pela defesa de Anna Carolina Jatobá, independentemente da realização de Teste de Rorschach.

Anna Carolina foi condenada, junto com Alexandre Nardoni, pelo assassinato de Isabella Nardoni, em março de 2009.

Conforme a Quinta Turma, o juízo da execução penal havia exigido a submissão da recorrente a um teste psicológico (Teste de Rorschach) como condição para análise da progressão de regime, sem, entretanto, apresentar fundamentação adequada para a medida.

A exigência imposta pelo juízo de primeiro grau levou a defesa a impetrar habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, argumentando que Anna Carolina já havia sido submetida a exame criminológico, com resultado favorável, de forma que a manutenção do regime semiaberto representaria constrangimento ilegal.

Salvo-condutos para cultivo de Cannabis com fim medicinal

Em várias decisões monocráticas ao longo de 2023, os ministros das duas turmas de direito penal do STJ, com base em precedentes, concederam salvo-condutos a pacientes que precisavam cultivar Cannabis sativa para tratamento de diferentes doenças.

Em decisão do dia 5 de junho, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca afirmou que tanto a Quinta Turma quanto a Sexta Turma do STJ consideram que a conduta de plantar Cannabis para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se deve expedir o salvo-conduto (habeas corpus preventivo) quando comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar a atitude de pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde.

Seguindo a mesma linha, o ministro Rogerio Schietti Cruz deu provimento a recurso em habeas corpus para autorizar um homem diagnosticado com ansiedade generalizada a plantar e cultivar de 354 a 238 pés de Cannabis por ano, com o objetivo de extrair as propriedades medicinais da planta para uso terapêutico próprio.

Penas maiores pela morte do pedreiro Amarildo

Em agosto, a Sexta Turma aumentou a pena de oito policiais militares condenados por tortura seguida de morte e ocultação do cadáver do pedreiro Amarildo Dias de Souza. De acordo com a denúncia, o episódio, ocorrido em 2013 na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, teria contado com a participação de 25 policiais. Alguns deles foram expulsos da corporação, e 17 foram absolvidos.

Por unanimidade, ao dar parcial provimento ao recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro, o colegiado considerou como circunstâncias que autorizam o aumento das penas a repercussão internacional dos crimes e o fato de que o corpo do pedreiro não foi recuperado mais de dez anos após o seu desaparecimento. A pena mais alta, entre os oito réus, ficou em 16 anos, três meses e seis dias de reclusão.

Guarda municipal não tem as funções da polícia

No mês de outubro, a Terceira Seção estabeleceu que a guarda municipal não possui as funções ostensivas típicas da Polícia Militar nem as investigativas próprias da Polícia Civil, apesar de integrar o sistema de segurança pública – conforme afirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 995, em agosto. Assim, em regra, estão fora de suas atribuições atividades como a investigação de suspeitos de crimes que não tenham relação com bens, serviços e instalações do município.

No julgamento, a seção absolveu um réu acusado de tráfico de drogas porque as provas foram obtidas por guardas municipais em revista pessoal, sem que houvesse indícios prévios para justificar a diligência nem qualquer relação com as atribuições da corporação.

Para o colegiado, embora a Constituição e a legislação federal não deem à guarda o status de “polícia municipal”, é admissível, em situações excepcionais, que seus membros realizem busca pessoal, mas apenas quando houver demonstração concreta de que a diligência tem relação direta com as finalidades da corporação.

Reconhecimento de pessoas em pauta

Em maio, a Terceira Seção absolveu um porteiro negro, morador da periferia, que havia sido condenado por roubo apenas com base em reconhecimento fotográfico. O acusado não tinha antecedentes criminais até que fotos suas, retiradas de redes sociais, foram incluídas no mural de suspeitos da delegacia de Belford Roxo (RJ). A partir daí, segundo a defesa, vítimas de roubo passaram a apontá-lo como possível autor dos crimes, e ele acabou envolvido em 62 processos, chegando a ser condenado em alguns mesmo sem a realização de diligências ou a juntada de qualquer prova além do reconhecimento fotográfico.

No julgamento, membros da Terceira Seção teceram uma série de considerações críticas a respeito das constantes falhas nesse tipo de procedimento. Expressões como “erro judiciário gravíssimo” e “ilegalidade gritante” foram ditas pelos ministros ao analisar a situação do porteiro e absolvê-lo em um dos processos.

O colegiado determinou que a Justiça do Rio de Janeiro avaliasse, em todos os outros processos, se a situação era a mesma examinada pelo STJ. A relatora foi a ministra Laurita Vaz, que se aposentou em outubro.

Busca pessoal e invasão de domicílio

No mês de outubro, a Quinta Turma discutiu a ação de policiais ao abordarem pessoa suspeita de tráfico de drogas. Para o colegiado, ao sentirem cheiro forte de maconha em pessoa que já é investigada sob a suspeita de tráfico, os policiais podem revistá-la em busca de provas. Contudo, o fato de a busca se mostrar infrutífera não autoriza a polícia a entrar na casa do suspeito sem mandado judicial, ainda que com autorização de outro morador.

Com esse entendimento, o colegiado confirmou decisão monocrática do relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que concedeu habeas corpus para reconhecer a ilicitude das provas e absolver o réu.

Réu fala por último, mas nulidade exige prova de prejuízo

Um mês antes, a Terceira Seção, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.114), definiu que o interrogatório do réu é o último ato da instrução criminal; que a possibilidade de inversão da ordem prevista no artigo 400 do Código de Processo Penal (CPP) diz respeito apenas à oitiva das testemunhas, não ao interrogatório; e que eventual reconhecimento de nulidade quanto a isso se sujeita à preclusão e exige demonstração do prejuízo para a defesa.

O precedente qualificado confirmou a jurisprudência já adotada na Terceira Seção (a exemplo do HC 585.942, entre outros precedentes).

A relatoria foi do ministro Messod Azulay Neto, segundo o qual, apesar da jurisprudência pacificada pelo STJ sobre o interrogatório como último ato da instrução, ainda era necessário atribuir força vinculante a esse entendimento.

Colaboração para apreensão de droga permite redução da pena

No mesmo mês, a Sexta Turma decidiu que os requisitos do artigo 41 da Lei de Drogas – colaboração para identificar coautores e para recuperar o produto do crime – são alternativos, e não cumulativos. Assim, o acusado por tráfico que apenas auxilia as autoridades na apreensão da droga, sem apontar coautores do crime, faz jus à redução da pena prevista no dispositivo, que vai de um a dois terços.

“Isso não significa conceder ao acusado que identifica seus comparsas e ainda ajuda na recuperação do produto do crime o mesmo tratamento conferido àquele que só realiza uma dessas duas condutas, pois os distintos graus de colaboração devem ser sopesados para definir a fração de redução da pena”, destacou o relator do habeas corpus, ministro Rogerio Schietti Cruz.

No caso analisado pela turma, um homem foi flagrado com nove porções de maconha e, de acordo com o relato dos policiais, confessou ser traficante e indicou o local onde ocultava o restante da droga, o que levou à apreensão de mais 50 porções.

Restituição do bem furtado não garante insignificância

A Terceira Seção, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.205), estabeleceu em outubro que a restituição imediata e integral do bem furtado não constitui, por si só, motivo suficiente para a incidência do princípio da insignificância.

Um dos recursos especiais julgados pelo colegiado tratava de dois homens que foram condenados por furto na forma qualificada mediante concurso de pessoas. No caso, foram subtraídos 13 jogos de baralho no valor de R$ 439,87. O relator foi o ministro Sebastião Reis Junior.

Para o magistrado, a insignificância não é medida apenas pelo valor do bem jurídico atingido, pois é preciso fazer um juízo amplo da conduta, que vai além do simples cálculo de seu resultado material.

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