Entre os processos julgados em 2023 pelos colegiados de direito privado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), destacaram-se casos sobre obrigações das operadoras de planos de saúde, recuperação judicial e falência, indenizações, dívidas e fraudes bancárias.
Em setembro, ao analisar o Tema 1.069 dos recursos repetitivos, a Segunda Seção fixou, por unanimidade, duas teses sobre a obrigatoriedade de custeio, pelos planos de saúde, de operações plásticas após a realização da cirurgia bariátrica.
Na primeira tese, o colegiado definiu que é de cobertura obrigatória pelos planos a cirurgia plástica de caráter reparador ou funcional indicada pelo médico após a cirurgia bariátrica, visto ser parte do tratamento da obesidade mórbida.
A segunda estabelece que, havendo dúvidas justificadas e razoáveis quanto ao caráter eminentemente estético da cirurgia plástica indicada após a bariátrica, a operadora do plano pode se utilizar do procedimento da junta médica, formada para dirimir a divergência técnico-assistencial, desde que arque com os honorários dos respectivos profissionais e sem prejuízo do exercício do direito de ação pelo beneficiário, em caso de parecer desfavorável à indicação clínica do médico assistente, ao qual não se vincula o julgador.
Em junho, a Quarta Turma decidiu que uma operadora de plano de saúde deve custear tratamento com medicamento prescrito pelo médico para uso off-label (ou seja, fora das previsões da bula).
De acordo com o colegiado, se o medicamento tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – como no caso dos autos –, a recusa da operadora é abusiva, mesmo que ele tenha sido indicado pelo médico para uso off-label ou para tratamento em caráter experimental.
Obrigação de tratamento e possibilidade de reembolso
Em junho, a Terceira Turma reconheceu a obrigação de a operadora do plano de saúde cobrir sessões de equoterapia prescritas tanto para beneficiário com síndrome de Down quanto para beneficiário com paralisia cerebral.
Com base nesse entendimento, a turma negou provimento a dois recursos especiais interpostos pela Unimed, nos quais a cooperativa médica questionava a cobertura do tratamento com equoterapia para criança com paralisia cerebral e a cobertura de tratamento multidisciplinar – inclusive com equoterapia –, por tempo indeterminado e com os profissionais escolhidos pela família, fora da rede credenciada, para criança com síndrome de Down.
No mês de abril, analisando um caso semelhante, a Terceira Tuma negou provimento a recurso especial da Amil Assistência Médica Internacional que questionava a cobertura do tratamento multidisciplinar – inclusive com musicoterapia – para pessoa com transtorno do espectro autista (TEA) e a possibilidade de reembolso integral das despesas feitas pelo beneficiário do plano de saúde fora da rede credenciada.
Vários casos discutiram pedidos de indenização
Em novembro, a Quarta Turma declarou prescrita a ação de indenização pela morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino no Doi-Codi, em 1971, durante a ditadura militar. O processo teve como réu, inicialmente, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandava a unidade à época. Ele morreu em 2015, tendo sido sucedido no processo por seus herdeiros.
O relator, ministro Marco Buzzi, deu provimento ao recurso da família do jornalista, por considerar imprescritíveis as ações indenizatórias ajuizadas em razão de atos contra os direitos fundamentais praticados pelo Estado brasileiro e por seus agentes durante o período ditatorial.
No entanto, prevaleceu no colegiado o entendimento da ministra Isabel Gallotti, para quem a Súmula 647 do STJ diz respeito a ações indenizatórias que discutem a responsabilidade objetiva do Estado, de forma que a imprescritibilidade, segundo ela, não se aplica a casos em que se controverte a propósito da responsabilidade civil com base no direito privado.
Roubo de cliente de shopping na entrada do estacionamento
Em decisão de março deste ano, a Terceira Turma entendeu que o shopping center e a empresa administradora de estacionamento são responsáveis por indenizar consumidor vítima de roubo à mão armada ocorrido na cancela para ingresso no estacionamento.
Conforme o colegiado, ao instalar obstáculo físico para controlar a entrada no estacionamento, os estabelecimentos provocam uma sensação de segurança no consumidor. A relatora, ministra Nancy Andrighi, observou que a proteção do Código de Defesa do Consumidor incide não somente durante a prestação do serviço em si, mas também nos momentos que o antecedem e o sucedem, desde que estejam vinculados à sua execução.
Patrocínio no uniforme de juiz de futebol
Em outubro, a Terceira Turma negou provimento ao recurso especial de um juiz de futebol que pretendia ser indenizado por um patrocinador do Campeonato Brasileiro, cuja marca foi exposta nos uniformes das equipes de arbitragem que atuaram nos jogos.
De acordo com o colegiado, se houve violação do direito de imagem, como alegou o árbitro, a responsabilidade não foi do patrocinador, que negociou diretamente a publicidade com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
“A conduta do patrocinador de adquirir o direito de exibir sua marca no uniforme oficial da equipe de arbitragem não caracteriza, por si só, violação ao direito de imagem do árbitro de futebol. A violação, se caracterizada, decorreria do ato da entidade desportiva que contratou e eventualmente obrigou o árbitro a usar o referido uniforme, sem o seu consentimento, dependendo das condições em que isso ocorreu”, afirmou a ministra Nancy Andrighi.
Indenização da BMW pelo acidente que matou o cantor João Paulo
A Quarta Turma manteve o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que condenou a BMW a indenizar a família do cantor João Paulo, da dupla João Paulo e Daniel, em virtude do acidente automobilístico que causou a sua morte, em 1997. Segundo o processo, o acidente ocorreu após um pneu ter esvaziado de forma repentina, provocando o capotamento e o incêndio do veículo que o artista dirigia.
O TJSP fixou a indenização por danos morais em R$ 50 mil para a viúva e R$ 50 mil para a filha do cantor, por considerar que, embora a vítima tenha contribuído para o acidente ao dirigir em alta velocidade e não utilizar cinto de segurança – caso de culpa concorrente, portanto –, a BMW não conseguiu demonstrar que o esvaziamento repentino do pneu do carro não decorreu de defeito de fabricação.
Além dos danos morais, o tribunal paulista estabeleceu pensão mensal à família no valor correspondente a um terço dos rendimentos do artista.
Liminar suspendeu decisão que decretou falência da Livraria Cultura
O ministro Raul Araújo, em junho, concedeu liminar para suspender os efeitos da decisão que havia determinado a transformação em falência da recuperação judicial da Livraria Cultura.
Raul Araújo levou em conta o princípio da preservação da empresa. Segundo disse, a livraria tem “inegável e relevante função social e cultural”, e sua quebra causaria “enorme prejuízo tanto à comunidade de credores como à coletividade em geral”.
A liminar garantiu efeito suspensivo ao recurso sobre o caso interposto no STJ. O ministro entendeu que estavam presentes a plausibilidade do direito invocado e o risco de dano irreparável ou de difícil reparação, decorrente de eventual demora na solução da causa, pois a reação do mercado a uma medida desse tipo é imediata.
Bens da empresa do Faraó dos Bitcoins
Em outro caso envolvendo falência, a ministra Nancy Andrighi indeferiu pedido de liminar para que fossem sustados os atos de administração e disposição dos bens da massa falida da empresa GAS Consultoria e Tecnologia Ltda., apreendidos pelo juízo federal criminal, e para que tais bens fossem remetidos ao juízo falimentar.
Em processo de falência, a GAS Consultoria pertence ao garçom e ex-pastor Glaidson Acácio dos Santos, o “Faraó dos Bitcoins”. Preso em 2021, em decorrência da Operação Kriptos da Polícia Federal, Glaidson é acusado de liderar organização criminosa responsável por um milionário esquema de pirâmide financeira iniciado em Cabo Frio (RJ). A investigação apontou que o grupo teria movimentado pelo menos R$ 38 bilhões no esquema ilegal de investimentos em criptomoedas.
Bancos devem tomar medidas contra fraudes
Em julgado de setembro, a Terceira Turma reconheceu a responsabilidade objetiva de um banco diante de golpe praticado por estelionatário e declarou inexigível o empréstimo feito por ele em nome de dois clientes idosos, além de determinar a restituição do saldo desviado fraudulentamente da conta-corrente. Segundo o colegiado, as instituições financeiras têm o dever de identificar movimentações financeiras que não sejam condizentes com o histórico de transações da conta.
Seguindo o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, a turma reformou o acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que entendeu ter havido culpa exclusiva dos clientes.
O estelionatário telefonou a um dos titulares da conta e, passando-se por funcionário do banco, instruiu-o a ir até um caixa eletrônico e aumentar o limite de suas transações. Em seguida, em nome do cliente, contratou um empréstimo e usou todo o dinheiro – inclusive o que havia antes na conta – para pagar despesas de cartão de crédito e dívidas fiscais de outro estado.
No mês seguinte, a Terceira Turma definiu que a instituição financeira responde pelo vazamento de dados pessoais sigilosos do consumidor relativos a operações e serviços bancários, obtidos por criminosos para a prática de fraudes como o “golpe do boleto”. Nesse tipo de estelionato, golpistas se passam por funcionários de um banco e emitem boleto falso para receberem indevidamente o pagamento feito pelo cliente.
O colegiado reformou acórdão do TJSP e restabeleceu a sentença que condenou um banco a declarar válido o pagamento realizado por meio de boleto fraudado e devolver à cliente parcelas pagas indevidamente em contrato de financiamento.
Cobrança extrajudicial de dívida prescrita
No mesmo mês, a Terceira Turma, por unanimidade, decidiu que o reconhecimento da prescrição impede tanto a cobrança judicial quanto a cobrança extrajudicial da dívida. De acordo com o colegiado, pouco importam a via ou o instrumento utilizados para a cobrança, uma vez que a pretensão se encontra praticamente inutilizada pela prescrição.
A turma julgadora considerou que, embora o crédito persista após a prescrição, sua subsistência não é suficiente para permitir a cobrança extrajudicial, uma vez que a exigibilidade foi paralisada.
No caso, um homem ajuizou ação contra uma empresa de recuperação de crédito, buscando o reconhecimento da prescrição do débito e a declaração judicial de sua inexigibilidade. Em segunda instância, foi reconhecida a impossibilidade de cobrança extrajudicial, tendo em vista que a prescrição era incontroversa – o que motivou o recurso ao STJ.
Penhora on-line para garantir pagamento de pensão
Em março, a Terceira Turma autorizou a penhora on-line de ativos financeiros para assegurar o pagamento de pensão alimentícia, num caso em que os requerentes não forneceram os dados da conta na qual deveria haver o bloqueio.
Para o colegiado, os requerentes não precisam fornecer os dados bancários, nem é necessário observar periodicidade mínima ou eventual mudança de situação fática em relação à última tentativa de penhora.
Na origem, foi ajuizada ação de alimentos. Como, na fase de execução, não foi possível localizar patrimônio penhorável suficiente, os autores pleitearam o bloqueio de ativos financeiros, o que foi indeferido pelo juiz. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul manteve a decisão.
Impenhorabilidade de propriedade rural deve ser provada por devedor
No mês de fevereiro, a Segunda Seção estabeleceu que, para efeito da impenhorabilidade prevista no artigo 833, inciso VII, do Código de Processo Civil (CPC), é ônus do devedor a comprovação de que sua propriedade rural, além de pequena, é trabalhada pela família para a própria subsistência.
Com a decisão, o colegiado resolveu divergência sobre se caberia ao devedor – como entendia a Terceira Turma – ou ao credor – conforme julgamentos da Quarta Turma – fazer prova da situação do imóvel rural com o objetivo de confirmar ou afastar a impenhorabilidade.
“Sob a ótica da aptidão para produzir essa prova, ao menos abstratamente, é certo que é mais fácil para o devedor demonstrar a veracidade do fato alegado, pois ele é o proprietário do imóvel e, então, pode acessá-lo a qualquer tempo. Demais disso, ninguém melhor do que ele para saber quais atividades rurícolas são desenvolvidas no local”, afirmou a ministra Nancy Andrighi.
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