Terceira Seção admite remição da pena para preso que não pôde estudar ou trabalhar na pandemia

Sob o rito dos recursos especiais repetitivos (Tema 1.120), a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ser possível a remição parcial da pena para presos que, em razão da pandemia da Covid-19, ficaram impossibilitados de continuar o trabalho ou os estudos.

O julgamento trouxe nova interpretação do STJ para o artigo 126 da Lei 7.210/1984 (Lei de Execução Penal – LEP) nos casos envolvendo a hipótese excepcional da pandemia da Covid-19. O precedente qualificado deverá orientar os tribunais de todo o país na solução de casos idênticos.

Ao interpretar a norma, o STJ sempre entendeu que o fato de o Estado não proporcionar ao preso meios para trabalhar ou estudar não era motivo suficiente para reconhecer em seu favor a remição ficta da pena. No julgamento do recurso repetitivo, o relator, ministro Ribeiro Dantas, propôs que se fizesse uma distinção (distinguishing) entre essa hipótese consagrada na jurisprudência e os casos em que o Estado não pôde proporcionar meios de trabalho ou estudo devido à crise sanitária.

Negar remição da pena é medida injusta

A tese firmada pelo colegiado diz: “Nada obstante a interpretação restritiva que deve ser conferida ao artigo 126, parágrafo 4º, da LEP, os princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, ao lado da teoria da derrotabilidade da norma e da situação excepcionalíssima da pandemia da Covid-19, impõem o cômputo do período de restrições sanitárias como de efetivo estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou estudando e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão do estado pandêmico”.

Segundo Ribeiro Dantas, a jurisprudência do STJ, “consolidada para um estado normal das coisas”, não deve prevalecer na situação de uma pandemia com a dimensão da que aconteceu com o vírus da Covid-19. Ele acrescentou que o equilíbrio entre segurança jurídica e justiça em situação de normalidade não deve ser o mesmo em eventuais situações de “anormalidade”.

Para o magistrado, negar aos presos que já trabalhavam ou estudavam antes da pandemia o direito de continuar a descontar sua pena seria “medida injusta”, pois eles pertencem à mesma sociedade que, embora tenha sofrido com a crise sanitária, foi compensada com algumas medidas jurídicas.

Além disso – observou o relator –, tal negativa equivaleria a querer que o legislador tivesse previsto a pandemia como forma de continuar a remição, “o que é desnecessário ante o instituto da derrotabilidade da lei”. Para a doutrina, derrotabilidade é a possibilidade de uma lei não ser aplicada diante de alguma situação excepcional, para privilegiar a justiça material, ainda que estejam presentes as condições para sua aplicação.

Dignidade, isonomia e fraternidade são direitos dos condenados

Em seu voto, Ribeiro Dantas observou que o artigo 3º da LEP estabelece que são assegurados ao condenado todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

“Em outros termos, ressalvadas as restrições decorrentes da sentença penal e os efeitos da condenação, o condenado mantém todos os direitos que lhe assistiam antes do trânsito em julgado da decisão condenatória”, acrescentou o ministro.

Para ele, diante do princípio da dignidade da pessoa humana, conjugado com os princípios da isonomia e da fraternidade, não é possível negar aos indivíduos que tiveram seu trabalho ou estudo interrompido pela superveniência da pandemia o direito de descontar parte da pena tão somente por estarem privados de liberdade.

“Não se observa nenhum discrímen legítimo que autorize negar àqueles presos que já trabalhavam ou estudavam o direito de remitir a pena durante as medidas sanitárias restritivas”, afirmou.

Somente presos que trabalhavam ou estudavam devem ser beneficiados

No entanto, Ribeiro Dantas ressaltou que é preciso analisar caso a caso a situação dos presos. “Não se está a conferir uma espécie de remição ficta pura e simplesmente ante a impossibilidade material de trabalhar ou estudar. O benefício não deve ser direcionado a todo e qualquer preso que não pôde trabalhar ou estudar durante a pandemia, mas tão somente àqueles que já estavam trabalhando ou estudando e, em razão da Covid-19, viram-se impossibilitados de continuar com suas atividades”, explicou.

Por fim, o magistrado lembrou precedente recente (HC 657.382), igualmente relacionado à execução penal, no qual a Sexta Turma reconheceu como cumprida a obrigação de comparecimento em juízo suspensa em virtude da pandemia, considerando desproporcional o prolongamento da pena sem que o apenado tivesse contribuído para isso.

O recurso ficou assim ementado:

EXECUÇÃO PENAL. RECURSO ESPECIAL SUBMETIDO AO RITO DOS RECURSOS REPETITIVOS. REMIÇÃO DA PENA. ART. 126, §4º, DA LEP. TRABALHO E ESTUDO. SUSPENSÃO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19. PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. REMIÇÃO. PROIBIÇÃO DA REMIÇÃO FICTA. SITUAÇÃO EXCEPCIONALÍSSIMA. DERROTABILIDADE DA NORMA JURÍDICA. ART. 3º DA LEP. PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS. PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA ISONOMIA E DA FRATERNIDADE. DIFERENCIAÇÃO NECESSÁRIA. PRECEDENTE DA 6ª TURMA. PERÍODO DE SUSPENSÃO. COMPARECIMENTO EM JUÍZO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. O princípio da individualização da pena, previsto no artigo 5°, XLVI da Constituição da República, diz-nos que a pena deve sempre ser individualizada para cada infrator. Doutrina e jurisprudência explicam que a individualização ocorre em três etapas: (a) legislativa; (b) judicial; e (c) executória.
2. Discorrendo sobre a terceira etapa da individualização da pena, Guilherme Nucci assevera que “a sentença condenatória não é estática, mas dinâmica. Um título executivo judicial, na órbita penal, é mutável.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Execução Penal. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 18).
3. A remição é o resgate (ou abatimento) de parte da pena pelo sentenciado por meio do trabalho ou do estudo na proporção estabelecida em lei (art. 126 da Lei 7.210/84, Lei de Execução Penal – LEP).
4. Conforme jurisprudência assente nesta Corte Superior, a ausência de previsão legal específica impossibilita a concessão de remição da pena pelo simples fato de o Estado não propiciar meios necessários para o labor ou a educação de todos os custodiados. Entende-se, portanto, que a omissão estatal não pode implicar remição ficta da pena, haja vista a ratio do referido benefício, que é encurtar o tempo de pena mediante a efetiva dedicação do preso a atividades lícitas e favoráveis à sua reinserção social e ao seu progresso educativo.
5. Nada obstante tal entendimento, ele não se aplica à hipótese excepcionalíssima da pandemia de covid-19 por várias razões (distinguishing). A jurisprudência mencionada foi construída para um estado normal das coisas, não para uma pandemia com a dimensão que se está a observar com o vírus da covid-19. Exemplifique-se a particularidade do caso com as seguintes medidas verificadas: (a) estado de emergência reconhecido por emenda constitucional (EC 123/22); (b) auxílios emergenciais concedidos à população necessitada; (c) trabalho remoto tanto no setor público quanto no setor privado à maioria dos trabalhadores por determinado período; e (d) recolhimento familiar compulsório decretado pelos governantes.
Esse contexto geral demonstra que os instrumentos ordinariamente utilizados não se mostravam suficientes e adequados para a extraordinariedade dos acontecimentos.
6. Nas palavras de Uadi Lammêgo Bulos, a “Derrotabilidade é o ato pelo qual uma norma jurídica deixa de ser aplicada, mesmo presentes todas as condições de sua aplicabilidade, de modo a prevalecer a justiça material no caso concreto” (BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 133).
Nessa linha, negar aos presos que já trabalhavam ou estudavam antes da pandemia de covid-19 o direito de continuar a remitir sua pena se revela medida injusta, pois: (a) desconsidera o seu pertencimento à sociedade em geral, que padeceu, mas também se viu compensada com algumas medidas jurídicas favoráveis, o que afrontaria o princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CR), da isonomia (art. 5º, caput, da CR) e da fraternidade (art. 1º, II e III, 3º, I e III, da CR); (b) exige que o legislador tivesse previsto a pandemia como forma de continuar a remição, o que é desnecessário ante o instituto da derrotabilidade da lei.
7. Nessa senda, o art. 3º da Lei 7.210/84 estabelece que, “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Em outros termos, ressalvadas as restrições decorrentes da sentença penal e os efeitos da condenação, o condenado mantém todos os direitos que lhe assistiam antes do trânsito em julgado da decisão condenatória.
8. Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana conjugado com os princípios da isonomia e da fraternidade (este último tão bem trabalhado pelo em. Min. Reynaldo Soares da Fonseca) não permitem negar aos indivíduos que tiveram seus trabalhos ou estudos interrompidos pela superveniência da pandemia de covid-19 o direito de remitir parte da sua pena tão somente por estarem privados de liberdade. Não se observa nenhum discrímen legítimo que autorize negar àqueles presos que já trabalhavam ou estudavam o direito de remitir a pena durante as medidas sanitárias restritivas.
9. Porém, deve-se realizar um exame, caso a caso, diferenciado-se duas situações: (a) de um lado, os presos trabalhadores e estudantes que se viram impedidos de realizarem suas atividades tão somente pela superveniência do estado pandêmico e, sendo o caso, reconhecer-lhes o direito à remição da pena; (b) de outro, aquelas pessoas custodiadas que não trabalhavam nem estudavam, às quais não se deve estender a benesse. Note-se, assim, que não se está a conferir uma espécie de remição ficta pura e simplesmente ante a impossibilidade material de trabalhar ou estudar. O benefício não deve ser direcionado a todo e qualquer preso que não pôde trabalhar ou estudar durante a pandemia, mas tão somente àqueles que, já estavam trabalhando ou estudando e, em razão da Covid, viram-se impossibilitados de continuar com suas atividades.
10. Ainda que não sobre idêntica temática, mas também afeto ao campo da execução penal, a Sexta Turma em precedente recente reconheceu como cumprida a obrigação de comparecimento em juízo suspensa em virtude da pandemia, considerando “desproporcional o prolongamento da pena sem a participação do apenado em tal retardamento.”.
11. Tese: Nada obstante a interpretação restritiva que deve ser conferida ao art. 126, §4º, da LEP, os princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da fraternidade, ao lado da teoria da derrotabilidade da norma e da situação excepcionalíssima da pandemia de covid-19, impõem o cômputo do período de restrições sanitárias como de efetivo estudo ou trabalho em favor dos presos que já estavam trabalhando ou estudando e se viram impossibilitados de continuar seus afazeres unicamente em razão do estado pandêmico.
12. Recurso especial provido.

Leia o acórdão no REsp 1.953.607.

sta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1953607

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