Em decisão unânime, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a ocorrência de dano moral coletivo causado aos consumidores de Cuiabá por um posto de gasolina, em decorrência de propaganda enganosa e concorrência desleal.
De acordo com o Ministério Público, o posto ostentava uma marca comercial, mas adquiria e vendia produtos de outras distribuidoras de combustível, “sem que o consumidor fosse de tal fato devidamente avisado e, muito provavelmente, sem que o preço cobrado do destinatário final refletisse o valor menor de compra”. A prática é conhecida como infidelidade de bandeira.
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) rejeitou o pedido de indenização por danos morais coletivos sob o fundamento de que “o suposto incômodo decorrente da venda de combustível de outras bandeiras não implica necessariamente risco de dano moral à coletividade, mas apenas a reparação de prejuízos a interesses individuais homogêneos”.
Valores constitucionais
No STJ, o entendimento foi outro. Para o relator, ministro Luis Felipe Salomão, o objetivo da ação civil pública não visou o ressarcimento de eventuais danos causados àqueles que adquiriram o combustível, mas sim a proteção de valores constitucionais, como o princípio da defesa do consumidor, da confiança, da boa-fé, da transparência e da equidade nas relações de consumo.
“Sobressai a difícil (senão impossível) tarefa de indenização dos consumidores que acreditaram na oferta viciada e, em detrimento de sua liberdade de escolha, efetuaram a compra do produto de origem diversa daquela objeto da expectativa criada pelo revendedor do combustível”, afirmou o ministro.
Dano presumido
Segundo Salomão, é possível o reconhecimento do dano moral coletivo in re ipsa, ou seja, presumido a partir da constatação da existência do fato.
“A meu juízo, a infidelidade de bandeira constitui prática comercial intolerável, consubstanciando, além de infração administrativa, conduta tipificada como crime à luz do código consumerista (entre outros), motivo pelo qual a condenação do ofensor ao pagamento de indenização por dano extrapatrimonial coletivo é medida de rigor, a fim de evitar a banalização do ato reprovável e inibir a ocorrência de novas lesões à coletividade”, concluiu Salomão.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANOS MORAIS COLETIVOS CAUSADOS AOS CONSUMIDORES DE CUIABÁ. INFIDELIDADE DE BANDEIRA. FRAUDE EM OFERTA OU PUBLICIDADE ENGANOSA PRATICADAS POR REVENDEDOR DE COMBUSTÍVEL.
1. O dano moral coletivo é aferível in re ipsa, ou seja, sua configuração decorre da mera constatação da prática de conduta ilícita que, de maneira injusta e intolerável, viole direitos de conteúdo extrapatrimonial da coletividade, revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral.
2. No caso concreto, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso ajuizou ação civil pública em face de revendedor de combustível automotivo, que, em 21.01.2004, fora autuado pela Agência Nacional de Petróleo, pela prática da conduta denominada “infidelidade de bandeira”, ou seja, o ato de ostentar marca comercial de uma distribuidora (Petrobrás – BR) e, não obstante, adquirir e revender produtos de outras (artigo 11 da Portaria ANP 116⁄2000), o que se revelou incontroverso na origem.
3. Deveras, a conduta ilícita perpetrada pelo réu não se resumiu à infração administrativa de conteúdo meramente técnico sem amparo em qualquer valor jurídico fundamental. Ao ostentar a marca de uma distribuidora e comercializar combustível adquirido de outra, o revendedor expôs todos os consumidores à prática comercial ilícita expressamente combatida pelo código consumerista, consoante se infere dos seus artigos 30, 31 e 37, que versam sobre a oferta e a publicidade enganosa.
4. A relevância da transparência nas relações de consumo, observados o princípio da boa-fé objetiva e o necessário equilíbrio entre consumidores e fornecedores, reclama a inibição e a repressão dos objetivos mal disfarçados de esperteza, lucro fácil e imposição de prejuízo à parte vulnerável.
5. Assim, no afã de resguardar os direitos básicos de informação adequada e de livre escolha dos consumidores, protegendo-os, de forma efetiva, contra métodos desleais e práticas comerciais abusivas, é que o Código de Defesa do Consumidor procedeu à criminalização das condutas relacionadas à fraude em oferta e à publicidade abusiva ou enganosa (artigos 66 e 67).
6. Os objetos jurídicos tutelados em ambos os crimes (de publicidade enganosa ou abusiva e de fraude em oferta) são os direitos do consumidor, de livre escolha e de informação adequada, considerada a relevância social da garantia do respeito aos princípios da confiança, da boa-fé, da transparência e da equidade nas relações consumeristas. Importante destacar, outrossim, que a tipicidade das condutas não reclama a efetiva indução do consumidor em erro, donde se extrai a evidente intolerabilidade da lesão ao direito transindividual da coletividade ludibriada, não informada adequadamente ou exposta à oferta fraudulenta ou à publicidade enganosa ou abusiva.
7. Nesse contexto, a infidelidade de bandeira constitui prática comercial intolerável, consubstanciando, além de infração administrativa, conduta tipificada como crime à luz do código consumerista (entre outros), motivo pelo qual a condenação do ofensor ao pagamento de indenização por dano extrapatrimonial coletivo é medida de rigor, a fim de evitar a banalização do ato reprovável e inibir a ocorrência de novas lesões à coletividade.
8. A intolerabilidade da conduta é extraída, outrossim, da constatada recalcitrância do fornecedor que, ainda em 2007 (ano do ajuizamento da ação civil pública), persistia com a conduta de desrespeito aos direitos de escolha e de adequada informação do consumidor, ignorando o conteúdo valorativo da autuação levada a efeito pela agência reguladora em 2004.
9. A quantificação do dano moral coletivo reclama o exame das peculiaridades de cada caso concreto, observando-se a relevância do interesse transindividual lesado, a gravidade e a repercussão da lesão, a situação econômica do ofensor, o proveito obtido com a conduta ilícita, o grau da culpa ou do dolo (se presentes), a verificação da reincidência e o grau de reprovabilidade social (MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. 2. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 163⁄165). O quantum não deve destoar, contudo, dos postulados da equidade e da razoabilidade nem olvidar dos fins almejados pelo sistema jurídico com a tutela dos interesses injustamente violados.
10. Suprimidas as circunstâncias específicas da lesão a direitos individuais de conteúdo extrapatrimonial, revela-se possível o emprego do método bifásico para a quantificação do dano moral coletivo a fim de garantir o arbitramento equitativo da quantia indenizatória, valorados o interesse jurídico lesado e as circunstâncias do caso.
11. Recurso especial parcialmente provido para, reconhecendo o cabimento do dano moral coletivo, arbitrar a indenização em R$ 20.000,00 (vinte mil reais), com a incidência de juros de mora, pela Taxa Selic, desde o evento danoso.
O valor indenizatório por danos morais coletivos foi fixado em R$ 20 mil, a serem revertidos ao fundo previsto no artigo 13 da Lei 7.347/85.