Não é cabível ação anulatória para discutir prova nova ou erro de fato em sentença transitada em julgado

​​A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou inviável a propositura de ação anulatória com o objetivo de desconstituir parte de sentença transitada em julgado que fixou pensão alimentícia em favor de vítima de acidente provocado pelo caminhão de uma empresa.

Ao restabelecer a sentença que extinguiu a ação em virtude da inadequação da via eleita, o colegiado entendeu, entre outros fundamentos, que a causa de pedir da ação – amparada em “prova nova” ou “erro de fato” – era própria, unicamente, de ação rescisória. Além disso, a turma concluiu que um dos temas discutidos pela empresa na ação – a revisão da pensão – já era objeto de outro processo, com a consequente caracterização de litispendência.

Em virtude do acidente, a vítima perdeu seu companheiro e ficou com sequelas permanentes que inviabilizaram o exercício profissional. Na sentença do processo indenizatório, para estabelecer a pensão mensal, o juiz considerou o valor de R$ 4 mil como remuneração da vítima, que trabalhava como biomédica à época do acidente, em 1996. De acordo com a sentença, a pensão deveria ser reajustada conforme a variação do salário mínimo.

No entanto, na ação anulatória, a empresa de transportes alegou que o valor da pensão se baseou em declaração de remuneração que não traduziu com exatidão os ganhos efetivamente recebidos pela vítima. Segundo a empresa, essa distorção elevou de forma desproporcional o montante das indenizações.

Relativiz​​ação

Em primeiro grau, o magistrado indeferiu a petição inicial da ação anulatória por reconhecer a inadequação daquela via processual. Além disso, o juiz apontou a existência de litispendência em relação ao pedido de revisão do cálculo da pensão, que já estava sendo discutido na fase de cumprimento de sentença da ação de indenização.

No julgamento de segunda instância, porém, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) anulou a sentença que indeferiu liminarmente a petição inicial. O TJMS concluiu que seria possível relativizar a coisa julgada em razão dos vultosos valores a que teria chegado o arbitramento da pensão alimentícia, que atingiriam, nos dias de hoje, um pensionamento de cerca de R$ 44 mil por mês e uma dívida acumulada de R$ 24 milhões.

Ainda segundo o TJMS, ao adotar o salário mínimo como referência para a atualização da pensão, a sentença contrariou o artigo 7º, inciso IV, da Constituição Federal e a Súmula Vinculante 4 do Supremo Tribunal Federal.

Coisa ju​​lgada

O relator do recurso especial, ministro Marco Aurélio Bellizze, afirmou que a coisa julgada, a um só tempo, não apenas impede que a mesma controvérsia, relativa às mesmas partes, seja novamente objeto de ação e de outra decisão de mérito, como também promove o respeito e a proteção ao que ficou decidido em sentença transitada em julgado.

“Note-se que, uma vez transitada em julgado a sentença, a coisa julgada que dela dimana assume a condição de ato emanado de autoridade estatal de observância obrigatória – imune, inclusive, às alterações legislativas que porventura venham a ela suceder –, relegando-se a um segundo plano o raciocínio jurídico desenvolvido pelo julgador, os fundamentos ali exarados, a correção ou a justiça da decisão, pois estes, em regra, já não mais comportam nenhum questionamento”, apontou o ministro.

Apesar disso, lembrou Bellizze, a legislação estabelece situações específicas e taxativas em que se admite a desconstituição da coisa julgada por meio de ação rescisória, nos limites do prazo decadencial de dois anos, em regra. Entre essas situações, o artigo 966 do Código de Processo Civil de 2015 elenca a possibilidade de decisão fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria rescisória, além de erro de fato verificável no exame dos autos. Nesses casos, a desconstituição da coisa julgada se dá em sentença de mérito válida e eficaz.

Em outras hipóteses, destacou o relator, a doutrina e a jurisprudência também admitem ação anulatória para a declaração de vício insuperável de existência da sentença transitada em julgado – a qual, nesse caso, embora faça a chamada “coisa julgada formal”, não teria a capacidade de produzir efeitos concretos. As hipóteses incluem sentenças consideradas inconstitucionais, como aquelas fundadas em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Ação res​​​cisória

No caso dos autos, contudo, Marco Aurélio Bellizze destacou que a causa de pedir da ação anulatória tratou de matéria própria de ação rescisória – a ocorrência de “erro de fato” ou de “prova nova”. A constatação, segundo o ministro, vem dos próprios fundamentos da ação (a declaração de trabalho da biomédica, emitida pelo diretor de um hospital, além da alegação de que a pensão foi fixada em premissa equivocada).

Segundo o relator, caso a sentença transitada em julgado tenha adotado premissa com base em erro de fato ou posteriormente tenha sobrevindo prova nova, tais circunstâncias não comprometem a validade da sentença, de forma que sua desconstituição é possível, apenas, por meio de ação rescisória, dentro do prazo decadencial fixado em lei – que, no caso dos autos, foi ultrapassado há muito tempo.

Em relação às sentenças inconstitucionais, o relator ressaltou que, para efeito de inexigibilidade do título judicial, é imprescindível que a declaração, pelo STF, de inconstitucionalidade do normativo que fundamenta o título tenha ocorrido antes do trânsito em julgado da sentença discutida; se posterior, a coisa julgada, em nome da segurança jurídica, deve prevalecer.

“A par disso, também não é possível depreender, dos fundamentos utilizados pela corte estadual, a existência de um posicionamento consolidado do Supremo Tribunal Federal, anterior à formação do título judicial – tampouco posterior –, que pudesse atribuir à sentença transitada em julgado a pecha de inconstitucionalidade, seja quanto à adoção do salário mínimo como fator de correção monetária, seja quanto às disposições afetas ao teto da remuneração do serviço público”, disse o ministro.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA, TENDO POR PROPÓSITO DESCONSTITUIR SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO (HÁ MAIS DE NOVE ANOS), NA PARTE EM QUE FIXOU PENSÃO ALIMENTÍCIA EM VIRTUDE DA PERDA DA CAPACIDADE LABORATIVA, TENDO COMO CAUSA DE PEDIR A ALEGAÇÃO DE QUE O DECISUM FUNDOU-SE EM PREMISSA EQUIVOCADA (DECLARAÇÃO DE DIRETOR DE HOSPITAL QUE NÃO TRADUZIU COM EXATIDÃO OS GANHOS VERDADEIRAMENTE AUFERIDOS À ÉPOCA), A REDUNDAR EM VALORES MANIFESTAMENTE EXORBITANTES. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE, POR MAIORIA DE VOTOS, REFORMA A SENTENÇA EXTINTIVA, PARA JULGAR PROCEDENTE A AÇÃO, PARA RECONHECER, EM RAZÃO DOS VALORES CONSIDERADOS VULTOSOS, DE OFÍCIO, A INCONSTITUCIONALIDADE DA SENTENÇA PASSADA EM JULGADO. DESCABIMENTO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. RECONHECIMENTO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

  1. A controvérsia posta no presente recurso especial centra-se em saber se a ação anulatória (promovida em junho de 2017) constitui a via processual adequada para desconstituir parte da sentença (proferida em 22⁄3⁄2002 e transitada em julgado em 24⁄8⁄2007), na qual se fixou pensão alimentícia em virtude da perda da capacidade laboral da então demandante, tendo como causa de pedir, basicamente, o argumento de que a sentença fundou-se em premissa equivocada, consistente na declaração do diretor, à época, do Hospital e Maternidade Santa Cruz que não traduziu com exatidão os ganhos verdadeiramente auferidos por ela, circunstância, segundo defende, demonstrada em prova superveniente, rendundando em valores manifestamente exorbitantes.
  2. Na espécie, apartando-se completamente da causa petendi delineada pela parte demandante, e, portanto dos limites gizados na inicial, o Tribunal de origem, por maioria de votos, reconheceu, em razão dos valores considerados vultosos, de ofício, a inconstitucionalidade da sentença passada em julgado, sob o fundamento de que esta teria, a seu juízo, contrariado “o art. 7º, IV, da Constituição Federal e a Súmula Vinculante n. 4 do STF, que vedam a utilização do salário mínimo como fator de correção monetária”, além das disposições referentes ao teto remuneratório de servidores públicos municipais, pois, “segundo a inicial da ação originária, a vítima do sinistro percebia remuneração de um hospital privado conveniado ao SUS e ao Município de Dourados”.
  3. A coisa julgada, de assento constitucional (e legal), erigida à garantia fundamental do indivíduo, assume papel essencial à estabilização dos conflitos, em obséquio à segurança jurídica que legitimamente se espera da prestação jurisdicional. A esse propósito, uma vez decorrido o devido processo legal, com o exaurimento de todos os recursos cabíveis, a solução judicial do conflito de interesses, em substituição às partes litigantes, por meio da edição de uma norma jurídica concreta, reveste-se necessariamente de imutabilidade e de definitividade.

Assim, a coisa julgada, a um só tempo, não apenas impede que a mesma controvérsia, relativa às mesmas partes, seja novamente objeto de ação e, principalmente, de outra decisão de mérito (função negativa), como também promove o respeito e a proteção ao que restou decidido em sentença transitada em julgado (função positiva). Uma vez transitada em julgado a sentença, a coisa julgada que dela dimana assume a condição de ato emanado de autoridade estatal de observância obrigatória — imune, inclusive, às alterações legislativas que porventura venham a ela suceder —, relegando-se a um segundo plano, o raciocínio jurídico desenvolvido pelo julgador, os fundamentos ali exarados, a correção ou a justiça da decisão, pois estes, em regra, já não mais comportam nenhum questionamento.

  1. Atento à indiscutível falibilidade humana, mas sem descurar da necessidade de conferir segurança jurídica à prestação jurisdicional, a lei adjetiva civil estabelece situações específicas e taxativas em que se admite a desconstituição da coisa julgada (formal e material), por meio da promoção de ação rescisória, observado, contudo, o prazo fatal e decadencial de 2 (dois) anos, em regra.
  2. A par de tais hipóteses legais em que se autoriza a desconstituição da coisa julgada por meio da via rescisória, doutrina e jurisprudência admitem, também, o ajuizamento de ação destinada a declarar vício insuperável de existência da sentença transitada em julgado que, por tal razão, apenas faria coisa julgada formal, mas nunca material, inapta, em verdade, a produzir efeitos. Por isso, não haveria, em tese, comprometimento da almejada segurança jurídica. Trata-se, pois, da querela nullitatis insanabilis, a qual, ao contrário da ação rescisória, que busca desconstituir sentença de mérito válida e eficaz, proferida em relação processual regularmente constituída, tem por finalidade declarar a ineficácia de sentença que não observa pressuposto de existência e, por consequência, de validade.

4.1 As situações mais citadas pela doutrina — e algumas delas respaldadas pela jurisprudência nacional — dizem respeito à não conformação da relação jurídica processual decorrente da ausência de citação válida, desenvolvendo-se o processo à revelia do réu; à não integração de litisconsorte passivo necessário no feito; à sentença proferida por juiz materialmente incompetente, em manifesta contrariedade à repartição constitucional de competências; e às sentenças consideradas inconstitucionais, assim compreendidas como aquelas que estão fundadas em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

  1. No particular, contudo, não se pode deixar de reconhecer que a causa de pedir veiculada na subjacente ação anulatória tratou de matéria própria, unicamente, de ação rescisória, a qual sugere, a toda evidência, a ocorrência de “erro de fato” ou de “prova nova”. Logo, a ação anulatória (querela nullitatis insanabilis) não se presta a desconstituir sentença de mérito válida e eficaz, proferida em relação processual regularmente constituída, cujo prazo decadencial, in casu, há muito escoou.
  2. A existência de sentença inconstitucional também pode, em tese, fundamentar a ação anulatória (querela nullitatis insanabilis). Sua admissão, contudo, há de observar, necessariamente, as mesmas hipóteses de cabimento e condições de procedência para a desconstituição da coisa julgada por inconstitucionalidade de norma em que ela se baseia, explicitadas nos precedentes citados, atinentes aos arts. 475-L, § 1º, e 741, parágrafo único, do CPC⁄1973 (correspondentes aos arts. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, 535, § 5º, CPC⁄2015), já que são estes os parâmetros dados pela jurisprudência do STJ e do STF para regular a questão.

6.1 Efetivamente, considerando-se que o afastamento da imutubilidade da coisa julgada assume caráter absolutamente excepcional em nosso sistema, não se poderia conferir interpretação diversa — e, de modo algum, mais ampliativa — à sentença reputada inconstitucional arguível em querella nullitatis (a qualquer tempo), daquela passível de alegação na fase executiva (submetida ao prazo da impugnação ao cumprimento de sentença ou dos embargos à execução contra a Fazenda Pública), se ambas possuem o mesmo fundamento e o mesmo propósito de obter a declaração de ineficácia⁄inexigibilidade do título judicial passado em julgado. Precedente.

  1. O título judicial a que se pretende desconstituir não se encontra fundamentado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo STF, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou de ato normativo tido pelo STF como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso. A par disso, também não é possível depreender, dos fundamentos utilizados pela Corte estadual, a existência de um posicionamento consolidado do Supremo Tribunal Federal, anterior à formação do título judicial — tampouco posterior —, que pudesse atribuir à sentença transitada em julgado, a pecha de inconstitucionalidade, seja quanto à adoção do salário mínimo como fator de correção monetária, seja quanto às disposições afetas ao teto da remuneração do serviço público.
  2. A adoção irrestrita da Teoria da Relativização da Coisa Julgada, a pretexto de uma suposta correção de rumos da sentença passada em julgado, sob o discurso de que esta não se mostraria, aos olhos da parte sucumbente, a melhor, a mais justa ou a mais correta, em hipotética ofensa a algum valor constitucional, calcado num inescondível subjetivismo, redundaria na desestabilização dos conflitos pacificados pela prestação jurisdicional, a fulminar, por completo, a sua finalidade precípua, revelando-se catalisadora de intensa insegurança jurídica. Ciente de tais implicações, o Superior Tribunal de Justiça, cum grano salis, aplica a Teoria da Relativização da Coisa Julgada em situações absolutamente excepcionais, em que a segurança jurídica, princípio informador do instituto da coisa julgada, sucumbe diante de valores que, num juízo de ponderação de interesses e princípios, devem a ela sobrepor-se.

8.1 In casu, não bastasse a impropriedade da via eleita, na medida em que a causa de pedir centrada em “prova nova” ou em “erro de fato” é própria, unicamente, de ação rescisória, a ser ventilada em prazo decadencial, no caso, há muito transcorrido, sobre a questão aventada, o voto vencido — o único que chegou a se debruçar sobre o ponto — deixou assente, inclusive, a fragilidade da aludida prova nova, já que o autor da declaração citada no título judicial, quanto à remuneração da então demandante, reafirmou o conteúdo daquela, em anterior ação promovida pela empresa de Transportes Rodoviários Takigawa Ltda, tendo por propósito a revisão ou exoneração da pensão alimentar em comento.

  1. Recurso provido, para restaurar a sentença extintiva do processo, ante a impropriedade da via processual eleita.

Leia o acórdão.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1782867

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