A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que, havendo autocomposição para a divisão dos bens, o marco para a incidência do Tema 809 do Supremo Tribunal Federal (STF) não é a data de homologação judicial do acordo, mas o momento da cessação definitiva do litígio entre os herdeiros, representada pela data da assinatura do pacto pelas partes.
De acordo com o precedente do STF, “é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do Código Civil de 2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do artigo 1.829 do CC/2002“.
A decisão teve origem em ação de inventário e partilha de bens, na qual foi celebrado acordo entre um enteado e a companheira do falecido, em maio de 2015 – momento em que coexistiam os artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil, que disciplinavam de maneira distinta a sucessão entre conviventes e entre cônjuges, respectivamente.
Em maio de 2017, após a celebração do acordo, mas antes da sentença homologatória (prolatada em março de 2020), foi julgado o Tema 809. Diante disso, a viúva requereu a readequação da partilha ao que foi definido pelo STF, visto que ficou decidido que a tese deveria ser aplicada aos processos ainda sem trânsito em julgado.
O pedido foi negado em primeira e segunda instância, sob o fundamento de que o acordo foi firmado sem vícios e por livre vontade das partes, antes da decisão do STF, sendo válido e apto a produzir efeitos jurídicos.
Previsibilidade para as relações finalizadas sob as regras antigas
A relatora do processo no STJ, ministra Nancy Andrighi, afirmou que, ao conferir eficácia prospectiva (efeito ex nunc) para sua decisão no Tema 809 – em vez do efeito retroativo (ex tunc), que é a regra na declaração de inconstitucionalidade de lei –, o STF teve a preocupação de “tutelar a confiança e conferir previsibilidade às relações finalizadas sob as regras antigas”, isto é, nas ações de inventário concluídas com base no artigo 1.790 do CC/2002.
Segundo ela, embora a decisão do STF tenha eleito expressamente o trânsito em julgado da sentença de partilha como o elemento definidor do regime sucessório aplicável, pode não ter sido considerada hipótese à qual esse marco temporal não se amolde perfeitamente.
A ministra observou que, se a modulação dos efeitos da decisão teve o objetivo de preservar as relações finalizadas sob regras antigas, “é importante investigar se as relações jurídicas sucessórias somente se finalizam pela sentença de partilha transitada em julgado ou se as relações também podem ser finalizadas de outros modos”.
Diferenciação entre heterocomposição e autocomposição
Nancy Andrighi ressaltou que, nas hipóteses de heterocomposição do litígio entre herdeiros – em que há a participação de um terceiro, no caso o juiz, para a resolução do conflito –, a modulação do precedente vinculante se amolda perfeitamente, pois o trânsito em julgado da sentença de partilha é o momento em que, por decisão judicial de mérito da qual não houve ou não cabe mais recurso, a controvérsia cessa em definitivo.
Todavia, nas hipóteses de autocomposição, em que as próprias partes buscam uma maneira de resolver o conflito, o momento da cessação definitiva do litígio entre os herdeiros e da finalização do inventário pode não ser o trânsito em julgado da sentença homologatória do acordo, especialmente quando as partes, capazes e concordes, transacionam sobre o direito disponível conferindo eficácia e executoriedade imediata ao negócio jurídico celebrado – caso dos autos.
“Está na esfera de disponibilidade das partes convencionar que determinadas obrigações por elas assumidas serão executáveis de imediato, independentemente de homologação judicial”, comentou a magistrada.
“A tese firmada no julgamento do Tema 809/STF declarou a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC/2002 para conceder aos conviventes os mesmos direitos sucessórios que o artigo 1.829 do CC/2002 concedia aos cônjuges, mas não proibiu que os herdeiros capazes e concordes livremente disponham sobre o acervo hereditário da forma que melhor lhes convier, inclusive de modo a retratar fielmente a regra declarada inconstitucional, sem que haja nenhum vício quanto ao objeto da avença”, concluiu Nancy Andrighi.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. AÇÃO DE INVENTÁRIO E PARTILHA. CELEBRAÇÃO DE ACORDO ENTRE AS PARTES. SUPERVENIÊNCIA DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CC⁄2002 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (TEMA 809). MODULAÇÃO DE EFEITOS. APLICABILIDADE AOS PROCESSOS JUDICIAIS EM QUE NÃO TENHA HAVIDO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE PARTILHA. INTERPRETAÇÃO DO PRECEDENTE À LUZ DE SUA RATIO DECIDENDI. IDENTIFICAÇÃO DE HIPÓTESES NÃO CONTEMPLADAS OU QUE NÃO SE AMOLDAM AO PRECEDENTE. POSSIBILIDADE. FIXAÇÃO, COMO MARCO TEMPORAL, DO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE PARTILHA QUE DIALOGA COM A SOLUÇÃO HETEROCOMPOSITIVA DO LITÍGIO ENTRE OS HERDEIROS. REPRESENTAÇÃO DA CESSAÇÃO DEFINITIVA DA RELAÇÃO JURÍDICA. APLICABILIDADE DESSE ENTENDIMENTO À SOLUÇÃO AUTOCOMPOSITIVA. IMPOSSIBILIDADE. CONCLUSÃO E FINALIZAÇÃO DO INVENTÁRIO QUE, NA HIPÓTESE DE ACORDO, OCORRE COM A CELEBRAÇÃO DA AVENÇA, SOBRETUDO SE EXISTENTE CLÁUSULA QUE CONFERE EXECUTORIEDADE IMEDIATA AO ACORDO. SOLUÇÃO AUTOCOMPOSITIVA QUE SE ORIENTA A PARTIR DO PRINCÍPIO DO AUTORREGRAMENTO DA VONTADE. PRODUÇÃO DE EFEITOS INTERPARTES IMEDIATAMENTE, AINDA QUE AUSENTE REGRA EXPRESSA NESSE SENTIDO. HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL CUJA FINALIDADE É VINCULAR O JUIZ, APÓS O EXAME DOS REQUISITOS FORMAIS. PUBLICIDADE E EFICÁCIA EM RELAÇÃO A TERCEIROS QUE NÃO SE CONFUNDE COM A VINCULAÇÃO ÀS PARTES. POSSIBILIDADE DE AS PARTES PARTILHAREM OS BENS EXTRAJUDICIALMENTE QUE REAFIRMA A DISPENSABILIDADE DA HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL COMO CONDIÇÃO DE VALIDADE OU EFICÁCIA DO ACORDO. MODULAÇÃO DE EFEITOS NO TEMA 809⁄STF QUE TEM POR FINALIDADE TUTELAR A SEGURANÇA JURÍDICA, A CONFIANÇA E A PREVISIBILIDADE DAS RELAÇÕES, MAS NÃO PREMIAR AS CONDUTAS CONTRADITÓRIAS, A PROIBIÇÃO AO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM E A MÁ-FÉ. TESE, ADEMAIS, QUE VISAM EQUIPARAR OS DIREITOS SUCESSÓRIOS ENTRE CONVIVENTES E CÔNJUGES, MAS NÃO PROÍBE QUE PARTES CAPAZES E CONCORDES DISPONHAM DO DIREITO MATERIAL DE MODO DISTINTO, INCLUSIVE NO MESMO SENTIDO DA REGRA DECLARADA INCONSTITUCIONAL. CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ NÃO ASSENTADA EXCLUSIVAMENTE EM OPOSIÇÃO DE EMBARGOS PARA FINS DE PRÉ-PREQUESTIONAMENTO. RESISTÊNCIA INJUSTIFICADA AO ANDAMENTO DO PROCESSO MATERIALIZADA TAMBÉM EM OUTROS ATOS PROCESSUAIS. POSSIBILIDADE. HONORÁRIOS RECURSAIS. CABIMENTO. DISPENSABILIDADE DA PRÉVIA FIXAÇÃO NA SENTENÇA. DISSENSO JURISPRUDENCIAL. DESSEMELHANÇA FÁTICA E JURÍDICA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E OS PARADIGMAS.1 – Ação de inventário e partilha ajuizada em 01⁄12⁄2014. Recurso especial interposto em 28⁄06⁄2021 e atribuído à Relatora em 27⁄04⁄2022.2 – Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se o acórdão recorrido teria deixado de observar precedente vinculante firmado pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do tema 809 da repercussão geral, especialmente no que se refere à modulação de efeitos; (ii) se a homologação judicial seria condição de validade ou eficácia do acordo firmado entre as partes; (iii) se seria admissível a condenação por litigância de má-fé; (iv) se seria admissível a condenação em honorários de sucumbência recursais na hipótese em que não houve o arbitramento da verba em 1º grau de jurisdição.3 – Ao declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC⁄2002 (tema 809), o Supremo Tribunal Federal modulou temporalmente a aplicação da tese para apenas “os processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha”, de modo a tutelar a confiança e a conferir previsibilidade às relações finalizadas sob as regras antigas (ou seja, às ações de inventário concluídas nas quais foi aplicado o art. 1.790 do CC⁄2002).4 – Embora as interpretações subsequentes da modulação de efeitos não devam acrescer conteúdo aquilo que o intérprete autêntico pretendeu, em caráter excepcional, proteger e salvaguardar, não se pode olvidar que determinadas hipóteses podem não ter sido contempladas pela modulação ou podem não se amoldar adequadamente à modulação.5 – Examinando-se a ratio decidendi do precedente firmado no julgamento do tema 809⁄STF, verifica-se que a modulação tem por finalidade preservar as relações finalizadas sobre as regras antigas (art. 1.790 do CC⁄2002), de modo que a eleição do marco temporal do trânsito em julgado da sentença de partilha dialoga perfeitamente com as hipóteses em que haverá solução heterocompositiva do litígio entre os herdeiros, pois esse será o momento em que, por decisão judicial meritória da qual não houve ou não cabe mais recurso, o litígio cessará em definitivo.6 – Para as hipóteses de solução autocompositiva, contudo, o momento da cessação definitiva do litígio entre os herdeiros, da finalização e da conclusão do inventário e da relação jurídica havida entre eles pode não ser o trânsito em julgado da sentença homologatória do acordo de partilha, especialmente quando as partes, capazes e concordes, transacionam sobre o direito disponível conferindo eficácia e executoriedade imediata ao negócio jurídico celebrado.7- De outro lado, os arts. 659 do CPC⁄15 e 2.015 do CC⁄2002 não condicionam a produção de efeitos do acordo à prévia homologação judicial, não se inserindo essa hipótese no escopo da modulação de efeitos realizada no julgamento do tema 809⁄STF, uma vez que: (i) em se tratando de solução autocompositiva do litígio, vigora o princípio do autorregramento da vontade, de modo que é lícito às partes conferir executoriedade imediata ao acordo; (ii) ainda que ausente regra convencional expressa, o acordo sobre direito disponível produz efeitos interpartes imediatamente, vinculando-as independentemente prolação de sentença homologatória, que vinculará o juiz após o exame dos requisitos formais e que tem por finalidade conferir publicidade e eficácia em relação a terceiros; (iii) se partes capazes e concordes podem entabular acordo de partilha de bens mediante escritura pública, por igual razão o acordo de partilha de bens celebrado por partes capazes e concordes no curso de ação de inventário não depende de homologação judicial para ser reputado como válido ou eficaz.8 – É igualmente importante destacar que a modulação de efeitos realizada pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do tema 809 tem como base a tutela de valores caros ao ordenamento jurídico, como a segurança jurídica, a confiança e a previsibilidade das relações, mas não para tutelar as posturas contraditórias, o venire contra factum proprium e as condutas despidas de boa-fé, como na hipótese em uma das partes celebra acordo com cláusula em que assume o compromisso de não se insurgir contra a avença, mas, diante da superveniente declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC⁄2002, insurge-se contra o acordo validamente celebrado.9 – A tese firmada no julgamento do tema 809⁄STF declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC⁄2002 para conceder aos conviventes os mesmos direitos sucessórios que o art. 1.829 do CC⁄2002 concedia aos cônjuges, mas não proibiu que os herdeiros capazes e concordes livremente disponham sobre o acervo hereditário da forma que melhor lhes convier, inclusive de modo a retratar fielmente a regra declarada inconstitucional, sem que haja nenhum vício quanto ao objeto da avença.10 – Se a condenação em litigância de má-fé ao fundamento de resistência injustificada ao andamento do processo não se assenta exclusivamente na oposição de embargos de declaração para fins de pré-questionamento, mas também em outras condutas da parte ao longo do procedimento, como a adoção de posturas contraditórias e a violação ao princípio da boa-fé, não há que se falar em ofensa à Súmula 98⁄STJ, tampouco em possibilidade de exclusão da condenação imposta a esse título.11- Se não houve a fixação de honorários sucumbenciais na sentença, não há óbice ao arbitramento de honorários em virtude da atividade desenvolvida em grau recursal, tendo em vista o trabalho efetivamente desempenhado pelos patronos do vencedor.12 – Não se conhece do recurso especial pela alínea “c” do permissivo constitucional quando as circunstâncias fáticas e jurídicas enfrentadas nos paradigmas são distintas daquelas examinadas no acórdão recorrido.13 – Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não-provido.