Agradecimento ao Des.Ney Wiedemannneto
Trata-se de ação indenizatória ajuizada pela autora em face de casa lotérica, alegando a demandante que recebeu cédula falsa do estabelecimento, vindo a sofrer constrangimento quando tentou efetuar compra em supermercado, quando a falsidade da cédula foi constatada. Os pedidos da autora foram julgados procedentes, sendo condenada a ré ao pagamento de indenização por danos materiais e morais, decorrendo apelos de ambas as partes, que passo a analisar.
O relator inicialmente, fez menção a parte hígida da sentença “tenho que não merece reparo a análise probatória contida na sentença da Juíza de Direito, Dr.ª Carine Labres, motivo pelo qual transcrevo trecho da decisão, com a devida vênia, incorporando-o ao presente voto como razões de decidir:
A relação jurídica estabelecida entre as partes qualifica-se como de consumo, portanto, está regida pelo Código de Defesa do Consumidor (Súmula 297 do STJ), restando caracterizada a responsabilidade objetiva do requerido pelo risco inerente ao serviço que realiza (Súmula 479 do STJ).
Ao caso concreto, é aplicável a inversão do ônus da prova, pois presentes os pressupostos legais (art. 6ª, VIII do CDC), uma vez que os fatos alegados são verossímeis e encontram-se corroborados pelos documentos acostados na inicial.
Assim, incumbiria a ré demonstrar que a nota fornecida à autora era verdadeira, até porque, certamente dispõe de mecanismos para tanto. Contudo, não logrou êxito em comprovar a veracidade da cédula.
A informante Giciele Fabiane da Silva Borges, funcionária da ré, afirmou ter efetuado o saque para a autora, conferindo as notas. Que uma semana depois a autora retornou afirmando ter recebeido nota falsa. Disse que possui caneta para conferência de cédulas. Afirmou que as notas utilizadas na lotérica são oriundas de clientes. Referiu que a nota que entregou à autora era cédula nova, e a falsa era velha/gasta. Disse que a conferência de autenticidade das notas é feita no momento do recebimento, portanto não conferiu a nota no momento em que a entregou para a autora no dia do saque.
Em idêntico sentido foi o depoimento da preposta Diane Medeiros Tomaz.
Nesse contexto, em que pese a informação de que a lotérica verifica a autenticidade das notas quando recebidas dos clientes, percebe-se que a informante Giciele foi taxativa ao afirmar que não conferiu a legitimidade da cédula no momento em que a autora realizou o saque.
Além disso, diante dos documentos que acompanham a inicial e, em especial do comprovante de saque (evento 1, COMP5), do Boletim de Ocorrência (evento 1, OFIC8) e do Laudo de Perícia Criminal Federal (evento 1, PROCADM16), a falsidade da nota resta demonstrada”.
Prossegue o relator, com isso, a falha da ré resta demonstrada, já que o serviço não foi prestado com a segurança que dele se poderia esperar, o que configura o defeito do serviço (art. 14, §1º, II, do CDC).
Tendo em vista a responsabilidade objetiva, o pedido de reembolso do valor correspondente a nota falsa (R$ 200,00), merece acolhimento.
Em complementação, ressalto que a autora trouxe aos autos prova suficiente de que recebeu da ré a cédula em questão. Não seria razoável exigir-se da demandante que comprovasse que recebera a exata cédula na lotérica em questão, na medida em que nenhum indivíduo registra o momento em que recebe ou faz pagamentos em qualquer estabelecimento, tampouco as exatas cédulas envolvidas na transação. Os depoimentos trazidos aos autos demonstram que a autora recebeu cédulas no estabelecimento réu, tendo retornado uma semana depois, informando que recebeu nota falsa dentre elas.
Assim, verifico a existência de prova suficiente de que a autora recebeu cédula de R$ 200,00 da lotérica, bem como que a nota em questão era falsa e foi apreendida, devendo ser mantida a condenação da ré a ressarci-la o referido valor.
Por outro lado, não há que se manter a indenização por danos morais, pois ausente a demonstração de abalo sofrido que justifique um pagamento de indenização pecuniária. O dano moral capaz de ser agasalhado pelo direito é aquele que fere sobremaneira a pessoa. Meros dissabores decorrentes do cotidiano, da vida em sociedade, como é o caso dos autos, não devem ser erigidos ao status de dano moral passível de indenização.
No caso, ainda que não se duvide da frustração em decorrência de ter recebido cédula falsa, a autora não demonstrou que o fato importou-lhe abalo moral considerável, além do prejuízo material correspondente. Não há nos autos prova de que tenha sofrido constrangimento em face da utilização de nota que acreditava ser verdadeira. O fato de que a autora registrou ocorrência policial em razão do fato, tendo sido apurada pela autoridade policial a falsidade da cédula, não implica constrangimento sofrido pela autora que autorize a condenação da ré nesse sentido.
A cada dia que passa, tenho observado que mais e mais ações são ajuizadas perante o Poder Judiciário gaúcho tendo por alicerce a responsabilidade civil, sendo que a maioria delas envolve pedidos de reparação por danos morais. Contudo, apesar da facilitação do acesso ao Judiciário pelo povo brasileiro ser uma conquista social de extrema relevância, um fenômeno vem sendo observado pela Jurisprudência e pela doutrina. A banalização do instituto do dano moral, intitulada de “indústria do dano moral”, é caracterizada pela propositura de demandas fundadas em meros aborrecimentos e percalços do cotidiano.
Continua o relator:
Como operador do direito não posso ignorar o referido fenômeno, devendo observar com cautela cada demanda e ponderar a gravidade do dano sustentado pela parte postulante. Sergio Cavalieri Filho[1] em Programa de responsabilidade civil, em seu posicionamento sobre o que se configura o dano moral, faz o seguinte ensinamento:
“O que configura e o que não configura o dano moral? Na falta de critérios objetivos, essa questão vem-se tornando tormentosa na doutrina e na jurisprudência, levando o julgador a situação de perplexidade. Ultrapassadas as fases da irreparabilidade do dano moral e da sua inacumulabilidade com o dano material, corremos, agora, o risco de ingressar na fase da sua industrialização, onde o aborrecimento banal ou mera sensibilidade são apresentados como dano moral, em busca de indenizações milionárias.
Este é um dos domínios onde mais necessárias se tornam as regras da boa prudência, do bom-senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida. Tenho entendido que, na solução dessa questão, cumpre ao juiz seguir a trilha da lógica do razoável, em busca da concepção ético-jurídica dominante na sociedade. Deve tomar por paradigma o cidadão que se coloca a igual distância do homem frio, insensível, e o homem de extremada sensibilidade.
“A gravidade do dano – pondera Antunes Varela – há de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (Das obrigações em geral, 8ª Ed., Almedina, p. 617).
Dissemos linhas atrás que dano moral, à luz da Constituição vigente, nada mais é do que agressão à dignidade humana. Que consequências podem ser extraídas daí? A primeira diz respeito à própria configuração do dano moral. Se dano moral é agressão à dignidade humana, não basta configurá-lo para qualquer contrariedade.
Nessa linha de princípio, só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia, no trabalho, no trânsito, entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos.”
Acerca do thema, também destaco a lição de Judith Martins-Costa[2] no “Dano moral à brasileira”:
“Assim, desprendida de sua conotação original que a relacionava aos agravos à honra ou à reputação e equiparada à noção mais ampla de dano extrapatrimonial, a expressão “dano moral” passou a designar um “conceito-passaporte”, permitindo ao juiz ajustar e reajustar as soluções conforme entenda necessário, oportuno, ou conveniente, inclusive de forma divorciada do ordenamento legal.
De fato, entre nós essa figura tem servido para acobertar com um único e idêntico manto o pagamento de indenizações a um infindável número de hipóteses: do extravio de malas em viagem aérea à “falta de afeto” reclamado por filhos privados do convívio paterno; do “sentimento de menoscabo” pelo descumprimento de um contrato à “humilhação” por permanecer alguns minutos em filas bancárias no aguardo de atendimento; da “frustração” por se ter adquirido um produto não correspondente às expectativas do comprador ao “sofrimento” pela perda de um animal de estimação por ato alheio; do “vexame” por escorregar em piso molhado de supermercado ao “desgosto” por adquirir um veículo desconforme às mais subjetivas expectativas de desempenho. Inclusos nesse rol estão um sem número de ataques – reais ou supostos – à dignidade da pessoa humana, que se configurariam na “ofensa ao sentimento íntimo e pessoal do lesado”, além de casos verdadeiramente escandalosos, como o da consumidora que fez chegar ao Supremo Tribunal Federal sua “grande frustração” ao abrir um pacote de pão de queijo, comprado em supermercado no valor de R$ 5,69 (cinco reais e sessenta e nove centavos), que, apesar de estar com o prazo de validade perfeitamente regular, continha alguns pãezinhos mofados, impedindo-a “de consumi-los normalmente”.
É corriqueiro encontrar, conectadas à expressão dano moral, como se descrevessem o seu conteúdo, as palavras “frustração”, “vexame”, “humilhação”, “constrangimento”, “mal evidente”, “vergonha”, “desgosto”, “aflição”, “emoções negativas”, “desconforto”, “constrangimento”, “aborrecimento e humilhação” ou “sentimento ruim”, tomando-se por “ofensa a sentimento íntimo” o que, para o Direito, haveria de ser injusta lesão ao direito de ser respeitado e de gozar da consideração devida a todos os seres humanos.
Importa, bem por isto, apontar criticamente aos critérios comumente oferecidos para desenhar a noção de “dano moral”, pois ao Direito, que é ordenamento, na dupla função de ordenar (determinar) e “por em ordem” o caos da vida, não é lícita tamanha cacofonia. Cabe, assim, o esforço para ensaiar critérios (Primeira Parte) que permitam alcançar uma noção de dano extrapatrimonial racionalmente apreensível e democraticamente controlável, demonstrando (Segunda Parte) porque dela devem ser extirpados os elementos punitivos que lhe foram introduzidos pela doutrina e jurisprudência, muito embora (Terceira Parte) doutrina gerada pelos penalistas possa servir – com as necessárias adaptações no processo de transplante – na concretização de um dos critérios para a fixação do quantum indenizatório.”
Logo, são por esses motivos que se justifica a análise criteriosa, atenta às particularidades do caso concreto, se de fato houve ofensa ao direito da personalidade do indivíduo, não banalizando o reconhecimento do dano moral, até mesmo para desestimular a judicialização de todo e qualquer fato da vida. O fato não repercutiu sobre a honra objetiva da demandante e apenas com o reconhecimento de ocorrência de prejuízo psicológico íntimo intenso o pedido indenizatório poderia ter sido deferido. Ainda que a situação descrita na exordial tenha lhe trazido prejuízo imediato e transtorno nas operações cotidianas, é inoportuno concluir que tal situação tenha-lhe afligido a ordem psicológica normal tão drasticamente, a ponto de lhe possibilitar reparação.
Nesse sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. SEGURO DE VIDA PRESTAMISTA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA ESTIPULANTE. NEGATIVA DE PAGAMENTO. ALEGAÇÃO DE DOENÇA PREEXISTENTE. AUSÊNCIA DE EXAMES PRÉVIOS. MÁ-FÉ DO SEGURADO NÃO COMPROVADA. INDENIZAÇÃO DEVIDA. DANOS MORAIS DESCABIDOS. Ilegitimidade passiva. A estipulante do seguro prestamista, via de regra, não tem legitimidade passiva para a ação de cobrança da indenização securitária, pois atua como intermediária entre as partes contratantes. No caso dos autos, não está em discussão qualquer descumprimento do contrato de financiamento do veículo. Responsabilidade da seguradora. A exclusão da cobertura securitária, prevista no contrato, nos casos de doença pré-existente quando a seguradora exigiu os exames médicos do segurado, ou quando comprovada a má-fé do segurado, situação inexistente no presente caso. Incidência da Súmula 609 do STJ. Indenização por danos morais. Descabida a condenação da ré na indenização por danos morais decorrentes de relação contratual, ante a inexistência de provas de que a situação ultrapassou o mero dissabor. O simples descumprimento de cláusula contratual, por si só, não caracteriza dano moral. Ausente prova de sua ocorrência. NEGARAM PROVIMENTO AOS APELOS.(Apelação Cível, Nº 50013116720218210058, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Giovanni Conti, Julgado em: 25-04-2024)
Assim, vai afastada a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais, motivo pelo qual resta prejudicado o apelo da autora, que postulava a majoração da verba indenizatória.
De consequência, encaminho voto por dar parcial provimento ao apelo da ré para afastar a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais, prejudicado o apelo da autora. Arcará cada uma das partes com metade das custas processuais, bem como honorários sucumbenciais em favor da parte contrária. Sendo ínfimo o valor da condenação, arbitro por equidade os honorários em favor do procurador da autora em R$ 1.500,00, com correção pelo IPCA a contar da presente data. Em favor do procurador da ré, arbitro honorários em 15% do valor atualizado da causa, já considerada aqui a majoração decorrente da aplicação do artigo 85, § 11, do CPC, suspensa sua exigibilidade ante a gratuidade judiciária deferida à autora.
O recurso ficou assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL. Responsabilidade civil. Ação indenizatória. Demonstrado que a autora recebeu cédula falsa na agência lotérica ré. Mantida a condenação da demandada ao ressarcimento do dano material. DANO MORAL INDENIZÁVEL NÃO CONFIGURADO. Ausente demonstração de que a autora tenha sofrido grave constrangimento em razão da utilização da cédula falsa em questão. Fato QUE NÃO CONFIGURA DANO MORAL POR SI SÓ, não ultrapassando mero dissabor. Sentença reformada no ponto. APELO da ré PROVIDO em parte. Apelo da autora prejudicado.
[1] 1. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. – 10 ed. – São Paulo: Atlas, 2012, p. 92/93
[2] MARTINS-COSTA, Judith. Dano moral à brasileira. Disponível em: . Acesso em: 07 ago. 2015
5000362-77.2023.8.21.4001