Quando a ordem altera o resultado: a preterição de candidatos em concursos públicos

Se o concurso público fosse uma religião, um de seus dogmas mais sagrados seria o respeito à lista de classificação dos candidatos – um desdobramento do princípio da isonomia no serviço público. O respeito à ordem da lista garante que, de fato, os cargos públicos sejam ocupados pelos candidatos que apresentaram melhor desempenho no certame.

Nessa religião, seria pecado mortal a chamada preterição arbitrária, situação em que um candidato, de modo indevido, deixa de ser convocado na sequência da lista de aprovados, em razão de preferência por outro ou de alguma circunstância externa ao concurso.

As alegações de preterição arbitrária são comuns no Brasil, e muitas vezes as demandas judiciais daí resultantes – em geral, travadas entre os candidatos e a administração pública – exigem o pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Precedente importante do STF

Sobre o tema da preterição, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou precedente importante ao julgar o RE 837.311, em 2015.

Na ocasião, o STF estabeleceu que o surgimento de novas vagas ou a abertura de novo concurso para o mesmo cargo, durante o prazo de validade do certame anterior, não gera automaticamente o direito à nomeação dos candidatos aprovados fora do número de vagas previsto no edital, ressalvadas as hipóteses de preterição arbitrária e imotivada por parte da administração pública.

Segundo o STF, o direito subjetivo à nomeação do candidato aprovado em concurso surge nas seguintes hipóteses: 1) quando a aprovação ocorrer dentro do número de vagas do edital; 2) quando houver preterição na nomeação, por não observância da ordem de classificação; 3) quando surgirem novas vagas, ou for aberto novo concurso durante a validade do certame anterior, e ocorrer a preterição de candidatos de forma arbitrária e imotivada por parte da administração.

Vagas originadas de decisão judicial

Sob essa orientação, no RMS 63.471, a Primeira Turma estabeleceu que o acréscimo de candidatos aprovados por força de decisão judicial não implica o aumento do número de vagas previsto no edital. Dessa forma, o colegiado afastou o argumento de que teria havido preterição arbitrária por parte do Distrito Federal.

O caso foi analisado pelo colegiado no âmbito de recurso em mandado de segurança interposto por quatro candidatos classificados fora tanto do número de vagas do edital (20) quanto das posições destinadas a cadastro de reserva (40). De acordo com os candidatos, as 60 vagas inicialmente ofertadas foram acrescidas, após decisões da Justiça, de cinco vagas extras.

Posteriormente, quatro pessoas em posições melhores que as dos impetrantes – classificados nas posições de 61º a 64º – acabaram desistindo do concurso, o que teria gerado, segundo os autores, direito subjetivo à nomeação, pois eles estariam dentro das 65 vagas existentes após as decisões judiciais.

O ministro Sérgio Kukina, relator do recurso, apontou que eventual decisão judicial que tenha considerado aprovado determinado candidato não poderia ser interpretada como aumento do número de vagas a serem preenchidas no concurso, tendo em vista que esse número continuará sendo aquele definido no edital do certame.

“Não há, por isso, falar em preterição arbitrária por parte da administração pública, ao considerar, no cômputo das nomeações, o número de vagas originariamente ofertado”, concluiu o ministro.

Contratação temporária de enfermeiros na pandemia

Durante a pandemia da Covid-19, ao analisar o RMS 65.757, a Segunda Turma concluiu que a contratação temporária de enfermeiros, em decorrência da crise sanitária, não configurou preterição ilegal e arbitrária nem gerou direito a provimento em cargo público por candidato aprovado em cadastro de reserva.

Na ação, os candidatos alegaram que a contratação temporária realizada pelo município de Petrópolis (RJ), mediante processo seletivo, demonstrava tanto a necessidade do serviço quanto a disponibilidade orçamentária e a existência de vagas em aberto. Assim, para os impetrantes, a aprovação em concurso – ainda que para cadastro de reserva – deveria prevalecer sobre a simples aprovação em processo seletivo.

O relator do caso, ministro Mauro Campbell Marques, citou precedente do STJ (RMS 64.166) no sentido de que a contratação temporária não significa, por si só, a preterição do aprovado em concurso. De acordo com o magistrado, além de a contratação temporária ter previsão constitucional – o que aponta a regularidade intrínseca do procedimento –, a ilegalidade nessa forma de admissão só ocorre quando não são observados os requisitos da legislação da respectiva unidade federativa.

Ainda segundo o ministro, o município agiu no contexto do combate à pandemia, buscando a contratação de profissionais para o enfrentamento de situação temporária. Além disso, ressaltou, a contratação questionada teve origem em ação civil pública ajuizada justamente em razão da necessidade temporária advinda da pandemia.

Em tal circunstância – quando a nomeação decorre de determinação judicial –, a jurisprudência considera que não se caracteriza a preterição ilegal, concluiu o relator.

Preterição no cálculo de vaga para candidato cotista

A preterição de candidato foi reconhecida pela Primeira Turma no RMS 62.185, caso que envolvia a convocação de aprovados na lista de ampla concorrência e nas vagas destinadas a cotistas.

Segundo a ação, o concurso público para o cargo de jornalista previa três vagas – duas delas para concorrência ampla e uma destinada a pessoa com deficiência. No mandado de segurança, o candidato aprovado em primeiro lugar entre as pessoas pretas e pardas alegou que, de acordo com decreto do Estado do Rio Grande do Sul, em todo concurso em que houvesse três vagas em disputa, uma delas deveria ser reservada para a cota racial.

O ministro Sérgio Kukina explicou que o edital do concurso reservou aos pretos e pardos vagas em percentual equivalente à sua representação na composição populacional do Rio Grande do Sul, como determinado em lei estadual. De acordo com o edital, esse percentual deveria ser calculado sobre o total de vagas disponibilizado para cada cargo.

Já segundo a legislação do Rio Grande do Sul, quando o número de vagas reservadas aos pretos e pardos resultasse em fração, deveria ser arredondado para o número inteiro imediatamente superior, em caso de fração igual ou maior que 0,5, ou para o número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5.

Nesse sentido, o relator destacou que o tribunal de origem considerou, no cálculo da possível vaga para pretos, apenas os postos destinados à ampla concorrência, chegando ao coeficiente de 0,336 e concluindo, por extensão, que não haveria direito do candidato negro à convocação. Essa interpretação, para o ministro, não representou a melhor solução para a controvérsia.

Dessa forma, considerando o percentual de 16,8% de pessoas negras e pardas no Rio Grande do Sul à época do concurso, Sérgio Kukina apontou que o resultado do cálculo, levando em consideração o total de vagas do concurso, seria o coeficiente de 0,504 – atingindo, assim, o percentual previsto pela lei estadual para a convocação de candidato da lista especial de pretos e pardos.

“Ora, tendo sido nomeados dois candidatos oriundos da concorrência ampla e um terceiro proveniente da vaga reservada a candidato com deficiência, caracterizada restou a preterição na convocação do ora recorrente – primeiro colocado na lista de candidatos negros –, em desenganada afronta não apenas à regra editalícia, como também à Lei Estadual 14.147/2012 e ao seu Decreto 52.223/2014”, concluiu o ministro.

Comprovação de vagas e necessidade de novos profissionais

A preterição também foi identificada pela Segunda Turma no RMS 63.562, impetrado por um candidato aprovado em 13º lugar para o cargo de professor em Minas Gerais. Segundo o candidato – aprovado fora do número de vagas –, foram convocados os 12 primeiros candidatos do concurso e, ainda durante a validade do certame, surgiram três novas vagas, o que configuraria o seu direito líquido e certo à nomeação.

O relator do recurso em mandado de segurança, ministro Herman Benjamin, mencionou que a jurisprudência do STF – além do entendimento no RE 837.311 – considera válida a contratação temporária quando o objetivo é evitar a interrupção da prestação do serviço, sem que isso signifique vacância ou existência de cargos vagos.

Entretanto, o ministro destacou que houve comprovação suficiente de que, como apontou o candidato, surgiram três novas vagas para o cargo de professor, fato que resultou na preterição do seu direito de ser nomeado, em razão da contratação irregular de servidores temporários para o mesmo cargo em que o candidato foi aprovado.

“Ademais, existe contratação temporária de professores, e o impetrante está exercendo a função de professor temporário, o que pressupõe a necessidade de novos profissionais para trabalhar com a educação”, finalizou o magistrado.

Nomeação por sentença não gera direito à indenização

No EREsp 1.117.974, a Corte Especial analisou caso no qual a candidata deixou de ser nomeada para o cargo de defensora pública na ordem de classificação porque a administração estadual do Rio Grande do Sul rejeitou a comprovação do tempo de prática jurídica – decisão posteriormente invalidada pelo Judiciário. Como consequência, a candidata foi nomeada mais de um ano depois dos demais aprovados.

Em razão dessa situação, a candidata aprovada entendia que o Rio Grande do Sul deveria indenizá-la pelo atraso em sua nomeação.

Em seu voto, o ministro Teori Zavascki (falecido) lembrou que o STF, analisando o artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal, reconhecia ao candidato o direito de ser indenizado pelo valor dos vencimentos que deixou de receber. No entanto, a corte passou a considerar que não é devida indenização pelo tempo em que se aguardou uma solução judicial definitiva sobre aprovação no concurso.

Segundo o ministro, a responsabilidade civil do Estado é matéria constitucional, razão pela qual ganha relevância e supremacia a jurisprudência do STF sobre o tema.

Prazo prescricional a partir da nomeação questionada

Nos casos de preterição de candidato em concurso, qual seria o prazo para a pessoa prejudicada reivindicar judicialmente a reparação? Para a Segunda Turma, o prazo prescricional de cinco anos tem início na data em que foi nomeado outro servidor no lugar do aprovado no certame.

No caso analisado – em que se discutiu a preterição de candidato pelo remanejamento de vagas no Ministério Público da União –, o Tribunal Regional da 1ª Região (TRF1) entendeu que, nos termos do artigo 1º da Lei 7.144/1983, prescreveria em um ano, a contar da data em que fosse publicada a homologação do resultado final, o direito de ação contra qualquer ato relativo a concurso para provimento de cargos na administração direta e nas autarquias federais. Assim, como o concurso havia sido homologado em 2007 e o processo foi ajuizado em 2009, o TRF1 declarou a prescrição do direito de ação do candidato.

A ministra Assusete Magalhães apontou jurisprudência do STJ no sentido de que as normas previstas na Lei 7.144/1983 se aplicam apenas a atos relativos ao concurso público, nos quais não se insere a controvérsia sobre preterição ao direito público subjetivo de nomeação para o candidato aprovado e classificado dentro do número de vagas oferecidas no edital de abertura, hipótese para a qual o prazo é o previsto no Decreto 20.910/1932.

Além disso, a magistrada lembrou que, no REsp 415.602, o STJ estabeleceu que, havendo preterição de candidato aprovado em concurso, o marco inicial do prazo prescricional recai no dia em que foram nomeados outros servidores.

“Nesse contexto, consoante a jurisprudência desta corte, aplica-se o prazo prescricional de cinco anos do Decreto 20.910/1932, tendo por termo inicial o ato lesivo à posse do recorrente, que, na espécie, consiste na remoção de servidor público do MPU para a vaga que o autor entende deveria ser a ele destinada”, ressaltou a ministra.

Deixe uma resposta

Iniciar conversa
Precisa de ajuda?
Olá, como posso ajudar