Condenação passada a limpo: a revisão criminal e a jurisprudência do STJ

A busca por justiça nem sempre termina quando o processo chega ao fim. O ordenamento jurídico brasileiro reconhece que mesmo uma condenação transitada em julgado pode vir a apresentar resultado equivocado ou injusto.

Diante do erro judiciário, o sentenciado a pena privativa de liberdade ou restritiva de direito tem assegurada a faculdade de ingressar em juízo com uma ação de revisão criminal para desconstituir a decisão que tenha sido proferida em desconformidade com os fatos ou as normas vigentes.

Nas palavras do ministro Rogerio Schietti Cruz, a revisão é uma ação penal sui generis que objetiva restabelecer a verdade material das decisões judiciais.

“A prestação jurisdicional deve sempre buscar a justiça de suas decisões, pois o poder punitivo do Estado somente se legitima com a comprovação da responsabilidade penal do réu”, destacou o magistrado em seu voto como relator no AgRg no REsp 1.171.955.

Os principais entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a respeito da revisão criminal estão compilados na edição 63 de Jurisprudência em Teses.

Como o STJ interpreta as regras para a admissão da revisão criminal

O instituto tem a sua regulamentação estabelecida pelo Código de Processo Penal (CPP), cujo artigo 621 elenca as hipóteses em que “a revisão dos processos findos será admitida”.

Ao interpretar o inciso I do dispositivo, o STJ firmou a compreensão de que o acolhimento da revisão ajuizada contra sentença condenatória alegadamente contrária à evidência dos autos deve ocorrer em caráter excepcional, dispensando a interpretação ou a análise subjetiva das provas produzidas.

No REsp 1.111.624, a Quinta Turma proveu o recurso do Ministério Público para cassar o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que deferiu revisão criminal para absolver um homem condenado por homicídio, tendo como fundamento a fragilidade probatória.

O relator, ministro Felix Fischer, afirmou que a caracterização de decisão contrária à evidência dos autos está atrelada à inexistência de provas no processo. “Não basta a constatação, por parte do órgão julgador, de que os elementos utilizados para a condenação seriam frágeis”, comentou.

Segundo Fischer, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do STJ assevera que a conclusão pela insuficiência ou precariedade das provas não autoriza a declarar procedente uma revisão criminal, sob pena de configurar um segundo recurso de apelação no intuito de promover o mero reexame do caso.

Ainda quanto ao inciso I do artigo 621 do CPP, a edição 656 do Informativo de Jurisprudência do STJ anota que é admissível a revisão proposta sem a indicação do dispositivo de lei penal violado, desde que suas razões apontem vícios relativos à prestação jurisdicional.

Com esse entendimento, a Terceira Seção julgou procedente revisão criminal (RvCr 4.944) para desconstituir a fixação da pena e determinar a retomada do julgamento, na origem, das demais teses defensivas da apelação interposta em favor de um réu condenado em primeiro grau pela tentativa de furto de dez barras de chocolate.

Ele foi absolvido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) a partir da aplicação do princípio da insignificância. No STJ, contudo, decisão monocrática deu provimento ao recurso especial do Ministério Público mineiro para afastar o princípio da bagatela e restabelecer a sentença condenatória.

Na revisão apreciada pela Terceira Seção, o relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, avaliou que houve error in procedendo, pois ficou pendente de análise o pedido da defesa para a redução da pena – prejudicado em razão da aplicação da insignificância no momento do exame da apelação pelo TJMG.

De acordo com o relator, a expressão “texto expresso da lei penal” contida no inciso I do artigo 621 do CPP não deve ser compreendida apenas como a norma penal escrita, mas como o sistema processual na sua totalidade.

“Exemplo disso se tem, por exemplo, tanto no direito ao duplo grau de jurisdição quanto na proibição de supressão de instância e na obrigação do julgador de produzir uma prestação jurisdicional completa e relacionada ao pedido veiculado na inicial”, explicou Reynaldo Soares da Fonseca, que considerou estar configurada na decisão rescindenda a violação ao princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional.

Habeas corpus no STF não impede revisão criminal no STJ

Em matéria de admissibilidade, outro ponto debatido na jurisprudência do STJ diz respeito à viabilidade do exame, pelo tribunal, de revisão cujo objeto tenha sido anteriormente examinado em habeas corpus no STF, como registra a edição 578 do Informativo de Jurisprudência.

A discussão foi palco de virada jurisprudencial na Terceira Seção, que adotou o atual posicionamento ao julgar a ação revisional (RvCr 2.877) de uma servidora do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), condenada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) por conceder benefícios de maneira fraudulenta em troca de vantagens indevidas.

A defesa interpôs recurso especial no qual a Sexta Turma extinguiu a punibilidade em relação aos delitos de estelionato e falsidade ideológica, mantendo a condenação por corrupção passiva. Inconformada com a pena fixada, a servidora impetrou habeas corpus no STF, que negou o pedido.

Quanto à revisão criminal ajuizada no STJ, a Terceira Seção manteve o acórdão questionado, por considerar adequada a pena estabelecida na origem.

Ao apreciar o cabimento da ação revisional, o relator, ministro Gurgel de Faria, ponderou que impedir o seu ajuizamento em razão de habeas corpus já submetido ao STF representaria uma barreira “intransponível” para o manejo de qualquer revisão no STJ.

“Ao afirmar que é inviável a análise pelo Superior Tribunal de Justiça de revisão criminal cujo objeto tenha sido anteriormente submetido ao Supremo Tribunal Federal e efetivamente analisado por meio de habeas corpus, estar-se-á obstaculizando por completo a propositura da revisão criminal, já que o tribunal de origem não detém mais competência e também o STF não a possui”, observou Gurgel de Faria.

O magistrado reiterou outras duas teses sedimentadas no STJ: ele assinalou que, nas revisões de julgados do tribunal, compete analisar somente os pontos anteriormente examinados pela corte; além disso, não é possível a reavaliação de teses já afastadas por ocasião da condenação definitiva.

Retratação de vítima ou testemunha pode embasar a revisão

De acordo com o inciso III do artigo 621 do CPP, a descoberta de novas provas de inocência do condenado se enquadra entre as hipóteses da revisão. No RHC 58.442 (edição 569 do Informativo de Jurisprudência), a Sexta Turma seguiu o entendimento pacificado no STJ de que a justificação criminal é a via adequada à obtenção de prova nova para embasar eventual ajuizamento de ação revisional.

Na situação dos autos, um homem condenado por roubo circunstanciado teve negado em primeiro e segundo graus o seu pedido de justificação para instruir a revisão em trâmite no TJSP. No STJ, a defesa requereu nova oitiva da vítima, que teria se retratado em declaração firmada em cartório, inocentando o réu.

O relator do recurso em habeas corpus, ministro Sebastião Reis Júnior, considerou que a retratação da vítima configura prova “substancialmente” nova para subsidiar ação revisional. Ele ressalvou, porém, que a reinquirição da vítima deve ocorrer por meio da justificação criminal, mediante a observância do contraditório.

“Não serve para a ação revisional prova produzida unilateralmente, como a juntada na impetração pelo paciente (declaração em cartório da vítima no sentido de que não foi o paciente o autor do roubo), só sendo válida se, necessariamente, for produzida na justificação”, disse o magistrado.

Por sua vez, a Quinta Turma decidiu que a retratação de testemunhas também é prova nova capaz de sustentar o pedido de revisão. O relator do HC 140.618, ministro Jorge Mussi, asseverou que a validação de novos elementos probatórios trazidos por testemunha demanda a realização do devido procedimento de justificação.

“Sem a demonstração da verossimilhança do alegado erro no édito condenatório, o pleito revisional se desvirtuaria em novo recurso de apelação, permitindo-se nova valoração de provas anteriormente produzidas, na ânsia de se obter um provimento jurisdicional favorável”, apontou.

Apesar da validade da retratação de testemunha como prova nova, as turmas penais do STJ têm compreendido que, em regra, a ação revisional não pode ser fundamentada na reinquirição de quem já foi ouvido no processo que levou à condenação, nem no arrolamento de novas testemunhas.

É válida a desconstituição da dosimetria e da condenação do júri

Em outra frente, a jurisprudência do STJ delimita o que uma revisão criminal pode desconstituir. Uma das interpretações consensuais nos precedentes do tribunal reconhece a viabilidade da correção da dosimetria da pena.

Ao negar seguimento a recurso do Ministério Público (AgRg no AREsp 318.060), a Quinta Turma manteve o acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) que, em revisão criminal, afastou a aplicação de uma das majorantes previstas na Lei 8.137/1990 e reduziu a pena de empresários condenados por sonegação fiscal.

O acórdão catarinense, considerando o valor sonegado, declarou ausente a causa especial de aumento de pena representada pela ocorrência de grave dano à coletividade. De acordo com o ministro Felix Fischer, relator, a ação revisional é meio idôneo para corrigir eventuais equívocos na dosimetria da pena, contanto que esteja presente uma das hipóteses do artigo 621 do CPP.

A possibilidade de desconstituição via revisão criminal vale, também, para a condenação proferida pelo tribunal do júri (edição 503 do Informativo de Jurisprudência). No HC 137.504, a Quinta Turma seguiu o entendimento firmado pelo STF de que a revisão de sentença condenatória do júri transitada em julgado não fere a cláusula constitucional da soberania dos vereditos.

Ainda conforme a conclusão a que se chegou no processo relatado pela ministra Laurita Vaz, o empate no julgamento da ação revisional favorece o réu, devendo-se aplicar a regra do artigo 615, parágrafo 1º, do CPP, reproduzida para o habeas corpus no parágrafo único do artigo 664.

A visão do STJ sobre o direito de defesa na revisão criminal

O artigo 623 do CPP prevê que o réu possui capacidade postulatória para propor revisão criminal, sem a intervenção de advogado ou defensor público. De acordo com a jurisprudência do STF e do STJ, o dispositivo foi recepcionado pela Constituição Federal, não tendo sido revogado pelo Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994).

A partir desse entendimento, a Quinta Turma negou habeas corpus (HC 34.197) impetrado por um homem condenado por roubo majorado, que pedia a anulação do julgamento da sua ação revisional – realizado pelo extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo –, dada a falta de intimação do seu defensor dativo para participar da sessão.

No voto, a relatora, ministra Laurita Vaz, afirmou que a falta de intimação pessoal do defensor do réu não gera nulidade no julgamento da revisão criminal, quando o pedido revisional foi formulado pelo próprio sentenciado.

No tocante ao direito de defesa no âmbito revisional, as turmas de direito penal do STJ têm se posicionado a favor da prerrogativa do defensor de fazer sustentação oral durante a sessão de julgamento da revisão criminal.

Foi o que decidiu a Sexta Turma ao conceder habeas corpus (HC 277.916), de ofício, em favor de um condenado por roubo circunstanciado cujo defensor público teve indeferido o pleito de sustentação oral no julgamento da ação revisional pelo TJSP.

A Sexta Turma determinou a realização de novo julgamento, sendo assegurada a sustentação oral da Defensoria Pública de São Paulo.

“A jurisprudência desta corte já firmou seu entendimento, no sentido de que é indispensável a intimação da sessão de julgamento para, caso queira a defesa, sustentar oralmente, sob pena de cerceamento de defesa”, frisou o ministro relator, Rogerio Schietti Cruz.

Integra, ainda, a jurisprudência do STJ o entendimento de que não caracteriza excesso de prazo o atraso no julgamento da revisão provocado exclusivamente pela defesa.

No HC 299.590, a Quinta Turma negou o pedido de um réu condenado por tráfico de drogas e falsa identidade, que alegava constrangimento ilegal devido à demora para o julgamento da sua ação revisional pelo TJSP.

O relator do habeas corpus, ministro Gurgel de Faria, constatou que o principal fator para a morosidade no trâmite da revisão foi a inércia da Defensoria Pública. Ele concluiu ser o caso de incidência da tese fixada na Súmula 64, segundo a qual “não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela defesa”.

Ajuizamento da revisão criminal não interrompe execução da pena

Pode a execução da pena ser suspensa enquanto se aguarda o julgamento da revisão criminal? Como consta da edição 443 do Informativo de Jurisprudência, a questão foi enfrentada pela Sexta Turma ao analisar habeas corpus (HC 169.605) impetrado por um homem condenado por latrocínio.

No STJ, a defesa buscou o direito de o paciente aguardar o julgamento do pleito revisional em liberdade, alegando a demora de quase dois anos para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) apreciar a matéria.

Mas a Sexta Turma negou o pedido com base nos fundamentos do relator, ministro Og Fernandes. “A prisão do paciente decorre de sentença condenatória transitada em julgado, sendo certo que a ação revisional não possui efeito suspensivo capaz de impedir a execução do julgado”, ressaltou o magistrado.

 

 

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