As informações tecnológicas auxiliam magistrados na instrução processual.
A Justiça do Trabalho começou, em 2020, uma ação institucional de formação e especialização de magistrados e servidores na produção de provas por meios digitais. A iniciativa, chamada de Programa Provas Digitais, visa fazer uso de informações tecnológicas para auxiliar magistrados na instrução processual, especialmente na produção de provas para aspectos controvertidos. Como resultado, busca-se maior celeridade à tramitação processual e facilidade para a busca da verdade dos fatos.
A cooperação entre o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat) possibilitou diversas ações de capacitação para o tema. Já são mais de 660 magistrados e servidores com conhecimentos adquiridos por meio de webinários e cursos específicos sobre o uso de cada uma das ferramentas. Mas, afinal, o que são provas digitais?
Provas digitais
A ideia do uso de provas digitais faz parte de um novo contexto que surge na sociedade da informação. “Na sociedade atual, há uma produção constante de dados por parte dos dispositivos informáticos utilizados – a chamada big data. Novas formas de condução da cultura da sociedade vêm com as novas tecnologias, e o Direito vem para regular essas novas formas”, afirma Fabrício Rabelo Patury, promotor de justiça do Ministério Público da Bahia, um dos maiores especialistas no tema no país e um dos instrutores envolvidos no projeto. Como consequência, segundo Patury, é necessário adequar os meios de instrução também às novas ferramentas e informações disponíveis.
Em outras palavras, essa cultura de interação permanente com recursos tecnológicos produz inúmeros registros digitais, o que torna necessário repensar o modelo tradicional de produção de provas, baseado, principalmente, na oitiva de testemunhas. Dessa forma, a utilização de registros digitais para a demonstração de fatos é quase uma necessidade nos dias de hoje. “As provas digitais nascem para dar maior eficiência probatória ao processo, por atenderem a uma nova sociedade, digital e interconectada. Se todas as nossas condutas são realizadas em uma seara cibernética, é lá que vamos coletar os registros necessários para fazer prova dessa mesma conduta”, explica o especialista.
As provas digitais podem ser produzidas em registros nos sistemas de dados de empresas, ferramentas de geoprocessamento, dados publicados em redes sociais e até encontradas por meio de biometria. Qualquer tipo de informação eletrônica, armazenada em bancos de dados, que comprove a efetiva realização de horas extras ou confirme a concessão fraudulenta de afastamento médico pode ser usada como prova digital.
Os dados produzidos podem ser encontrados em fontes abertas (de livre acesso, como pesquisas no Google, sites de transparência, redes sociais) ou fontes fechadas (de acesso restrito, por meio de solicitação judicial), em titularidade de empresas públicas e privadas. Por meio deles, é possível averiguar fatos controversos no curso da instrução processual, ou seja, utiliza-se uma prova digital para chegar mais próximo ao que realmente aconteceu.
“A tecnologia muda o meio em que o Judiciário trabalha e também afeta todas as inter-relações humanas, que usam dispositivos informáticos que capturam os hábitos de vida a todo instante. Na hora de reconstituir os fatos para tomar uma decisão judicial, temos de buscar nestes dispositivos e data centers as informações necessárias”, conclui Patury.
Fundamentos legais
O uso das provas digitais possui fundamentos nos artigos 369 e 370 do Código de Processo Civil. O primeiro autoriza as partes a empregarem todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz. O segundo, por sua vez, dispõe que “caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito”. Além disso, a Consolidação das Leis do Trabalho, no artigo 765, também estabelece que “os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas”.
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) ainda define a obrigatoriedade de guarda dos registros de conexão, por no mínimo um ano, e dos registros de acesso a aplicações de internet, por no mínimo seis meses (arts. 13 e 15). Além desses, é imperativa a disponibilização dos registros e dados pessoais armazenados nos provedores de conexão e de acesso a aplicações de internet por ordem judicial (art. 10). Há, ainda, a possibilidade de requisição judicial dos registros e dados pessoais armazenados nas operadoras de telefonia, nos provedores de conexão e de aplicações de internet, para formar o conjunto probatório em processo cível ou penal (art. 22). Nesse sentido, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) também possibilita o tratamento de dados pessoais na hipótese de exercício de direitos em processo judicial (art. 7º, VI, e 11, II, “a”).
O uso de provas digitais ainda é balizado pelos princípios da Administração Pública, previstos no artigo 37 da Constituição da República e no artigo 2º da Lei 9.784/1999, bem como pela Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011). Também é garantido o sigilo das informações e dos dados recebidos, visando preservar a intimidade da vida privada, da honra e da imagem do seu titular (art. 23 da Lei no 12.965/2014 e art. 2o, I e III, da LGPD).
Funcionamento
Segundo o promotor de Justiça Fabrício Patury, a Justiça do Trabalho já utilizava provas digitais em processos há muito tempo, porém eram provas de fontes abertas. Um exemplo de provas digitais foi o uso de uma rede social, em 2014, para comprovar que uma enfermeira usou atestado falso para faltar ao trabalho. A trabalhadora havia postado fotos em seu perfil participando de uma maratona e, com a prova digital, foi confirmada sua demissão por justa causa.
Outro exemplo aconteceu no Rio Grande do Norte. Uma babá conseguiu comprovar o vínculo de emprego por meio de conversas no Whatsapp. A partir do teor das mensagens, o juízo constatou os requisitos necessários para o reconhecimento de vínculo, como a continuidade e habitualidade na prestação dos serviços, que não seriam apenas dois dias por semana, como alegado pela empregadora.
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Contudo, os dados utilizados como provas digitais não se restringem a postagem em redes sociais. Com o uso de fontes de dados fechadas, grande novidade das capacitações realizadas dentro do projeto Provas Digitais, é possível utilizar dados de geolocalização, biometria, metadados de fotos e até rastreamento de IP. No curso “Produção de Provas por Meios Digitais” ministrado em 2020, o promotor Fabrício Patury citou um processo em que foi utilizada a biometria (marcador corporal) do mouse de um empregado para comprovar que o computador fora usado por ele. Em outro caso, os dados de geolocalização do celular conseguiram comprovar, com exatidão, a presença do trabalhador nas dependências da empresa para efeitos de horas extras.
Em outra capacitação, o delegado de polícia de São Paulo Guilherme Caselli mostrou o caso de uma parte do processo que alegava não ter rendimentos para cumprir as parcelas devidas, no entanto, postava continuamente fotos de viagens internacionais. “A partir de posts com geolocalização, por exemplo, é possível localizar executados em insolvência”, esclarece Patury. Também é possível verificar situações de formação de vínculos trabalhistas, horas extras, prestação devida do serviço, e até averiguar a existência de uma justificativa para demissão por justa causa.
O box acima traz apenas alguns exemplos de provas digitais extraídas de fontes abertas e fechadas. Atualmente, existem diversos programas e técnicas de obtenção de dados que podem ser usados para essa finalidade. Por isso, o Ministério Público Federal fez um “Catálogo de Fontes Abertas”, que traz possibilidades para busca de dados sobre pesquisas gerais, veículos e rodovias, voos e aeroportos, navegações, sistemas telefônicos, certidões, entre muitos outros.
Pioneirismo da Justiça do Trabalho
Os exemplos apresentados mostram uma aptidão natural da Justiça do Trabalho à lógica das provas digitais. Desde a década passada, esse tipo de informação já era utilizada, porém, com a institucionalização das Provas Digitais, magistrados e servidores de todo o país passaram a ter acesso a capacitações e aprenderam a incorporar melhor essa ferramenta à rotina da instrução processual.
É por isso que, segundo Fabrício Patury, a Justiça do Trabalho é o ramo do Judiciário mais preparado para a efetivação das provas digitais. Isso porque foi o primeiro ramo do Judiciário a assumir o uso das provas digitais em forma de um projeto institucional, com investimento na capacitação de seus cooperadores e, ainda, na normatização do tema. Um exemplo dessa normatização foi o acordo de cooperação técnica assinado com o CNJ para compartilhar as iniciativas e projetos desenvolvidos pela Justiça do Trabalho com todo o Poder Judiciário.
Para a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), ministra Maria Cristina Peduzzi, as inovações tecnológicas são fundamentais para aprimorar a prestação jurisdicional ao cidadão. “Havendo tantos registros digitais de comportamentos que passam a ser objeto de controvérsia em juízo, é importante usar esses recursos na busca da verdade dos fatos no processo do trabalho. Fazer uso dessas tecnologias é aumentar a qualidade da prestação jurisdicional e da primazia da realidade. Essa iniciativa, ao lado da utilização de tantos outros sistemas eletrônicos, como o PJe, mostram que a Justiça do Trabalho está na direção do futuro”, observa a ministra.
Essa atuação institucional é fortalecida por esforços conjuntos entre CSJT e Enamat. A diretora da Enamat, ministra Dora Maria da Costa, na ocasião do aniversário de 15 anos do órgão, compartilhou a iniciativa de capacitação de magistrados na produção e coleta de provas digitais como parte do programa de formação da escola, que busca capacitações também em relação a questões recentes e atuais, como as observadas no ramo da tecnologia. “A promoção de cursos sobre provas digitais busca proporcionar uma formação num campo até então pouco conhecido e explorado pelos juízes, enquanto os cursos relacionados à conciliação, além de tratarem de competência profissional extremamente relevante, visam atender às exigências das atuais resoluções do CSJT”, disse, à época.
O que são provas digitais? Assista ao vídeo da TV TST
Projeto Provas Digitais
Diversas capacitações têm sido realizadas na Justiça do Trabalho desde 2020. O objetivo é fomentar os métodos atuais de busca de registros digitais, voltados à demonstração de fatos controvertidos, levando em conta as várias repercussões do fenômeno denominado Revolução 4.0, que se destaca pela cultura de permanente interação com recursos tecnológicos. “A produção de provas por meios digitais exige expertise e conhecimento para a busca dos registros deixados no ambiente virtual, em fontes abertas e fechadas”, destaca a ministra presidente do TST.
Com essa necessidade em mente, o CSJT iniciou a execução, a partir do final de 2020, de um curso voltado para servidores da Justiça do Trabalho, com o intuito de possibilitar a operacionalização de diversos métodos de produção de provas digitais. Paralelamente foram realizados, desde então, diversos webinários e aulas magnas para servidores e magistrados, a fim de promover uma sensibilização sobre o tema.
O projeto Provas Digitais já formou 10 turmas de servidores dos TRTs que atuam como auxiliares de magistrados de primeiro grau, ocupantes da função de auxiliar de juiz, com carga horária de 20 horas-aula para cada turma. Já foram capacitados 294 servidores. O principal objetivo da formação dos servidores é a capacitação para o trabalho operacional voltado à coleta de registros digitais. Além disso, já foram realizados 13 webinários voltados a magistrados do trabalho, com um total de 196 juízes participantes até o momento. Também realizou-se uma aula magna inaugural, com 207 presenças registradas.
Somado a tudo isso, a Enamat, paralelamente, também promoveu nesse período quatro cursos sobre o tema. O mais recente começou no fim de outubro. Ele aborda o assunto Produção e Análise de Provas Digitais no Processo do Trabalho, com 184 magistrados inscritos. Em relação aos cursos já encerrados, foram certificados 372 magistrados.
Provas digitais – Vantagens
A utilização da prova digital no Processo do Trabalho traz muitos pontos positivos, em especial, a possibilidade de apresentação de dados consistentes e confiáveis sobre fatos controvertidos. As evidências colhidas nas redes sociais ou em outras plataformas digitais são um contraponto objetivo às informações passadas por testemunhas arroladas pelas partes. São muitas as vantagens em seu uso. Listamos as principais no quadro abaixo.
Núcleo de Provas Digitais
Como forma de tirar proveito de todas essas vantagens, o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (SC) tornou-se vanguardista ao criar, em maio de 2021, o primeiro núcleo do país especializado em produzir provas por meios digitais na Justiça do Trabalho. Para a presidente do TRT 12, desembargadora Lourdes Leiria, “a sistematização na análise e no tratamento de dados das provas digitais pelo novo núcleo tende a reduzir o trabalho dos magistrados na instrução dos processos, liberando-os para que possam dar maior atenção a outras fases processuais, como a execução”.
O núcleo integra a Secretaria de Execução (Sexec) do TRT, coordenada pelo juiz gestor regional de execuções, Roberto Masami Nakajo. O magistrado explica que a ideia de criar um núcleo de provas digitais surgiu após as capacitações promovidas pelo CSJT e pela Enamat sobre o assunto. “O núcleo promove consultas e relatórios, bem como a organização e centralização de informações sobre provas digitais, que são disponibilizadas aos magistrados e servidores na intranet. A nova área atua, ainda, na criação e aprimoramento de ferramentas para tratamento de dados”, explica. Ele também lembra que há duas soluções em fase de testes que devem facilitar a análise dos registros de localização fornecidos por empresas de telefonia (estação rádio base) e pela Google.
O trabalho no órgão já observou inúmeras vantagens. “Na fase de execução, as provas digitais podem contribuir em investigações sobre patrimônio e cadeia de responsabilidades. As inúmeras fontes de pesquisa, como bancos de dados das empresas, ferramentas de geoprocessamento, materiais publicados em redes sociais e até biometria, amplificam as possibilidades probatórias. Além disso, a objetividade dos registros, em contraposição à subjetividade da prova testemunhal, possibilita a produção de provas mais robustas para o Judiciário”, detalha o juiz Roberto Masami Nakajo.
No segundo grau de jurisdição da 12ª Região (SC), provas digitais que utilizam dados de redes sociais e de estação rádio base (ERB) já compõem parte da jurisprudência do Tribunal, inclusive em fase de execução. No primeiro grau, o magistrado menciona uma sentença proferida recentemente, cujos dados da operadora de telefonia foram tratados pela ferramenta desenvolvida no Núcleo de Provas Digitais.
Provas digitais e LGPD
Com a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados, surgiu também o questionamento sobre a legalidade e possibilidade do uso desses dados para fins de provas digitais. De acordo com o promotor Fabrício Patury, a LGPD não atrapalha a produção desse tipo de provas. “A lei apenas criou regras mais protetivas para evitar vazamentos e abusos de dados. No caso do Judiciário, sempre há consentimento ou uma base legal para a captura. Já temos mais de um ano de LGPD e, nesse tempo, só vi melhoras na produção probatória”, relata.
Além disso, como foi apresentado na seção “Fundamentos legais”, a própria LGDP faz parte do arcabouço normativo para o uso de provas digitais no Judiciário.
Nacionalização para todo o Judiciário
Com o objetivo de desenvolver regras de negócio e modelos de dados de soluções tecnológicas para integração na Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br), o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) designou, em agosto de 2021, o Grupo de Trabalho sobre provas digitais (Portaria CNJ 204/2021). O grupo também tem como atribuições estabelecer formato interoperável e estruturado único de armazenamento e fornecimento dos registros e dados pessoais pelas operadoras de telefonia e provedores de conexão e de aplicações de internet; e possibilitar o atendimento a ordens judiciais por meio de canais digitais acessíveis e disponíveis na internet.
Entre os participantes do grupo de trabalho estão o promotor Fabrício Rabelo Patury e Guilherme Caselli de Araújo, delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Ambos são especialistas no assunto e promovem diversas capacitações sobre o assunto na Justiça do Trabalho. Também integra o grupo o juiz auxiliar da direção da Enamat, Platon Teixeira de Azevedo Neto, indicado pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT).