Judiciário não pode dispensar requisito exigido em estatuto para o ingresso em associação

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, declarou que o Poder Judiciário não pode, em regra, dispensar requisito exigido em estatuto para o ingresso de terceiros em associação. Segundo o colegiado, a garantia constitucional da liberdade associativa pressupõe também que os associados tenham o direito de escolher as regras para o ingresso de novos participantes.

Com esse entendimento, a turma deu provimento a recurso especial da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), que condicionou o ingresso de uma indústria de produtos plásticos à apresentação da certidão negativa de recuperação judicial e falência, conforme exige o seu estatuto.

Segundo os autos, a sociedade industrial passava por processo de recuperação judicial e postulou em juízo que fosse dispensada de apresentar a certidão para aderir ao Ambiente de Contratação Livre – operado pela CCEE –, no qual as operações de compra e venda de energia elétrica são livremente negociadas em contratos bilaterais.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) manteve a sentença favorável ao pedido, por entender que ela atendia ao propósito da recuperação, sem violar interesses de terceiros ou de natureza pública.

Desenvolvimento das atividades da empresa não depende de ingresso na CCEE

A relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, esclareceu que a CCEE é uma associação civil de direito privado com o objetivo de viabilizar a comercialização de energia no Sistema Integrado Nacional. Para a magistrada, a mera alegação de que a recuperanda teria benefícios financeiros com seu ingresso no quadro de associados não autoriza o juiz condutor da ação recuperacional a dispensar a apresentação das certidões negativas.

A ministra destacou que o artigo 52, inciso II, da Lei 11.101/2005 – o qual prevê que o juiz pode dispensar certidões quando essa exigência inviabilizar as atividades da recuperanda – não se aplica ao caso. Na sua avaliação, a não participação da sociedade empresária na CCEE não é impedimento ao desenvolvimento regular de suas atividades, que não envolvem a comercialização de energia.

“A ratio essendi da norma não é diminuir os custos operacionais do devedor (circunstância que pode vir a ser definida no plano de recuperação), mas sim dar concretude ao princípio da preservação da empresa (artigo 47 da Lei 11.101/2005) numa situação específica, qual seja, naquela em que a exigência das certidões impeça o devedor de empreender”, apontou.

Lei de Falência e Recuperação não ampara a pretensão da recuperanda

Nancy Andrighi lembrou que o objetivo declarado pela empresa era ter melhores condições de preço, serviços e prazos na compra de energia, mas afirmou não haver indícios de que o preço da energia adquirida no ambiente operado pela CCEE seja, de fato, fundamental para a continuidade das atividades industriais.

“O entendimento ora proposto não está, obviamente, impedindo a recorrida de adquirir energia elétrica para a consecução de seus objetivos sociais (o que pode ser feito mediante contratação com comercializadores varejistas), mas, sim, reconhecendo que a Lei de Falência e Recuperação de Empresas não a autoriza a deixar de cumprir os requisitos preestabelecidos – e a todos aplicáveis – para fazer parte de uma associação de natureza privada”, destacou a relatora.

A ministra apontou, ainda, que o efeito prático da pretensão da recuperanda equivale a determinar sua adesão compulsória à CCEE, o que contraria o artigo 5º, inciso XVIII, da Constituição, que veda a interferência estatal no funcionamento das associações.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. QUESTÃO PREJUDICADA. PRIMAZIA DA DECISÃO DE MÉRITO. DISPENSA DE APRESENTAÇÃO DE CERTIDÕES NEGATIVAS PARA INGRESSO NO QUADRO ASSOCIATIVO DA CÂMARA DE COMERCIALIZAÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. ALEGAÇÃO DE QUE A RECUPERANDA DESFRUTARIA DE BENEFÍCIO ECONÔMICO. HIPÓTESE FÁTICA DISTINTA DAQUELA EXIGIDA PELO ART. 52, II, DA LEI 11.101⁄05. LIBERDADE ASSOCIATIVA. INTERFERÊNCIA ESTATAL. CARÁTER EXCEPCIONAL. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS.
1. Recuperação judicial requerida em 21⁄5⁄2018. Recurso especial interposto em 26⁄11⁄2020. Autos conclusos ao Gabinete em 29⁄11⁄2021.
2. O propósito recursal consiste em definir se a apresentação de certidão negativa de recuperação judicial e falência, requisito exigido para adesão ao Ambiente de Contratação Livre, operado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, pode ser dispensada pelo juízo onde tramita o processo de soerguimento da devedora.
3. Prejudicada a alegação de negativa de prestação jurisdicional, tendo em vista o princípio da primazia da decisão de mérito.
4. A mera alegação de que o ingresso da recuperanda no quadro de associados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – entidade privada que sequer possui relação com o processo de soerguimento – lhe traria benefícios de ordem financeira não autoriza o juiz condutor da ação recuperacional a dispensar a apresentação de certidões negativas para tal finalidade.
5. A hipótese dos autos não versa acerca de situação que autoriza a aplicação do art. 52, II, da Lei 11.101⁄05, haja vista que o dispositivo legal se destina, apenas e tão somente, a possibilitar que as atividades praticadas pelo devedor para atingimento de seus objetivos sociais não sejam paralisadas ou severamente comprometidas em razão da exigência das certidões ali indicadas, circunstância que não se verifica na espécie.
6. O Poder Judiciário não pode, como regra, impor aos associados o dever de admitir o ingresso, na entidade, de terceiros que não atendam aos requisitos constantes em seu estatuto (art. 5º, XVIII, da CF⁄88). Ausência de circunstância excepcional apta a autorizar o deferimento do pedido deduzido pela recorrida.
7. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

Leia o acórdão no REsp 1.990.219.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1990219

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