Acordo entre segurado e vítima sem anuência da seguradora não gera perda automática do reembolso

Embora o artigo 787, parágrafo 2º, do Código Civil estabeleça que é proibido ao segurado, sem a expressa concordância da seguradora, reconhecer sua responsabilidade ou fechar acordo para indenizar terceiro a quem tenha prejudicado, a inobservância dessa regra, por si só, não implica a perda automática da garantia securitária.

Para a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), além de o dispositivo legal não prever expressamente a consequência jurídica pelo descumprimento da regra, a jurisprudência da corte se firmou no sentido de que os contratos de seguro devem ser interpretados de acordo com a sua função social e a boa-fé objetiva, de modo que a perda do direito ao reembolso só ocorrerá se ficar comprovado que o segurado agiu de má-fé na transação com o terceiro.

Esse entendimento levou o colegiado a reformar decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) que afastou o direito de um segurado ao reembolso, depois que ele, condenado por acidente de trânsito, fez acordo diretamente com a vítima. Para o tribunal local, a restituição do valor pago pelo segurado à vítima dependeria de ter havido a anuência da seguradora no acordo judicial.

O TJRS levou em consideração que, além do artigo 787 do Código Civil, a apólice exigia a concordância expressa da seguradora com o pagamento pelo segurado, no caso de sentença ou acordo.

Dispositivo legal busca coibir a má-fé

A ministra Nancy Andrighi, relatora no STJ, explicou que a finalidade do artigo 787, parágrafo 2º, do Código Civil é evitar fraude por parte do segurado, que, agindo de má-fé, poderia se unir ao terceiro para impor à seguradora um ressarcimento exagerado ou indevido.

Segundo ela, o segurado que age dessa forma pode perder o direito à garantia do reembolso, ficando pessoalmente responsável pela obrigação que tiver assumido com o terceiro.

Entretanto, Nancy Andrighi apontou que a interpretação harmônica entre o artigos 787 e 422 do Código Civil leva à conclusão de que a vedação imposta ao segurado não pode gerar a perda automática do direito ao reembolso, caso ele tenha agido com probidade e boa-fé.

“Poderá a seguradora, ao ser demandada, alegar e discutir todas as matérias de defesa no sentido de excluir ou diminuir sua responsabilidade, não obstante os termos da transação firmada pelo segurado, o qual somente perderá o direito à garantia/reembolso na hipótese de ter, comprovadamente, agido de má-fé, causando prejuízo à seguradora”, afirmou a ministra.

Seguradora não foi prejudicada

No caso dos autos, Nancy Andrighi ressaltou que não há indícios de que o segurado tenha agido de má-fé, tampouco de que o acordo tenha prejudicado os interesses da seguradora – mesmo porque o juízo de primeiro grau, ao homologá-lo, destacou que os valores combinados eram condizentes com o montante da condenação.

A relatora afirmou também que, como o processo estava na fase de cumprimento de sentença, o segurado não tinha outra opção senão o pagamento do valor da indenização, inclusive porque ele já estava com bens penhorados.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. SEGURO DE  RESPONSABILIDADE  CIVIL.  TRANSAÇÃO  JUDICIAL  FIRMADA  EM  SEDE  DE CUMPRIMENTO  DEFINITIVO  DE  SENTENÇA.  ANUÊNCIA  DO  SEGURADOR. AUSÊNCIA.  INEFICÁCIA  DO  ATO.  DIREITO  AO  REEMBOLSO.  BOA-FÉ  DOS TRANSIGENTES.  INEXISTÊNCIA  DE  PREJUÍZO  AO  SEGURADOR.  JULGAMENTO: CPC/73.

  1. Ação de indenização por perdas e danos ajuizada em 18/07/2011, da qual foi extraída o  presente  recurso  especial,  interposto  em  17/09/2014  e distribuído ao gabinete em 01/03/2021. Julgamento: CPC/73.

  2. Trata-se de  ação  ajuizada  pela  segurada,  pretendendo  a  restituição  da seguradora,  pela  via  regressiva,  dos  valores  pagos  a  terceiro  por  força  de sentença  condenatória  em  ação  de  reparação  de  danos  decorrentes  de acidente  de  trânsito,  conforme  acordo  judicial  celebrado  entre  as  partes  no respectivo cumprimento de sentença.

  3. O propósito  recursal  consiste  em  decidir  se  o  segurado,  beneficiário  de seguro  de  responsabilidade  civil,  que  realiza,  sem  a  anuência  da  seguradora, acordo  judicial  com  terceiro  –  vítima  de  acidente  de  trânsito  –,  em  sede  de cumprimento  de  sentença,  perde  o  direito  ao  reembolso  do  valor despendido.

  4. Com o  fim  de  prevenir  o  cometimento  de  fraudes  contra  o  segurador,  é defeso  ao  segurado  reconhecer  sua  responsabilidade,  confessar  ou  transigir, bem como indenizar diretamente o terceiro que tenha prejudicado, sem que haja expressa anuência do segurador, conforme o § 2º do art. 787 do Código Civil.

  5. Apesar do  caráter  protetor  da  norma,  a  sua  inobservância,  por  si  só,  não implicará  perda  automática  da  garantia/reembolso  para  o  segurado,  porque além  de  o  dispositivo  legal  em  questão  não  prever,  expressamente,  a consequência  jurídica  ao  segurado  pelo  descumprimento  do  que  foi estabelecido,  os  contratos  de  seguro  devem  ser  interpretados  com  base  nos princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva.

  6. A vedação  imposta  ao  segurado  não  será  causa  de  perda  automática  do direito à garantia/reembolso para aquele que tiver agido com probidade e de boa-fé,  sem  causar  prejuízo  à  seguradora,  sendo  os  atos  que  tiver  praticado apenas ineficazes perante esta, a qual, na hipótese de ser demandada, poderá discutir e alegar todas as matérias de defesa no sentido de excluir ou diminuir sua responsabilidade.

  7. Hipótese dos  autos  em  que  a  segurada  faz  jus  à  restituição  dos  valores desembolsados  para  o  pagamento  de  acordo  celebrado  com  terceiro,  em sede  de  cumprimento  definitivo  de  sentença  condenatória,  mesmo  sem  a anuência  da  seguradora,  por  ausência  de  indícios  de  que  tenha  agido  com má-fé ou de que o ato tenha causado prejuízo aos interesses da seguradora.

  8. Recurso especial provido

Leia o acórdão no REsp 1.604.048.​​

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1604048

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