A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concedeu habeas corpus para absolver um réu que foi reconhecido pela vítima três meses após o crime de roubo, quando o suspeito se encontrava em uma maca de hospital. Para o colegiado, o reconhecimento pessoal não observou os requisitos do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP).
Na decisão, o colegiado aplicou jurisprudência recente da corte (HC 712.781, HC 681.704 e HC 682.108), segundo a qual os procedimentos descritos pelo CPP para o reconhecimento de pessoas não são simples recomendações do legislador, devendo necessariamente ser cumpridos, pois configuram a garantia do direito de defesa para quem é suspeito da prática de um crime.
Constrangimento ilegal e exigência de aplicação do artigo 226 do CPP
De acordo com o processo, a vítima foi assaltada por três indivíduos, mas afirmou não ser capaz de realizar o retrato falado dos assaltantes e não reconheceu fotos que lhe foram apresentadas na delegacia na data do roubo. Naquele momento, disse apenas que aparentavam ser menores de idade. Três meses depois, ela afirmou ter visto um dos assaltantes – de 27 anos à época dos fatos – em uma maca de hospital e levou essa informação à delegacia, ocasião em que lhe apresentaram de novo algumas fotografias. Dessa vez, a vítima garantiu ter reconhecido o réu e, mais tarde, em juízo, confirmou pessoalmente a identificação.
Após a condenação em primeira instância, a defesa apelou ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mas o recurso foi negado porque a corte entendeu, entre outros fundamentos, que as disposições do artigo 226 do CPP seriam mera recomendação, e não uma exigência – não havendo, portanto, nenhuma nulidade no reconhecimento realizado pela vítima na delegacia.
Em habeas corpus dirigido ao STJ, a defesa alegou constrangimento ilegal com base na nulidade do reconhecimento fotográfico feito sem o rigor prescrito pelo CPP. Quanto ao reconhecimento em juízo, afirmou que o ato teria sido viciado, porque a vítima, no dia da audiência, permaneceu por horas no mesmo corredor com o suspeito.
Narrativa não é suficiente para comprovar autoria do crime
De acordo com o relator, ministro Antonio Saldanha Palheiro, o reconhecimento fotográfico deve ser acompanhado por outros indícios, a serem confrontados na fase judicial. Ele explicou que o objetivo é mitigar “erros judiciários gravíssimos que, provavelmente, resultaram em diversas condenações lastreadas em acervo probatório frágil, como o mero reconhecimento fotográfico de pessoas em procedimentos crivados de vícios legais e até psicológicos”.
O relator destacou que a vítima, inicialmente, havia afirmado de modo categórico não ser capaz de descrever os assaltantes, citando que eles pareciam ser menores de idade, mas acabou por identificar como autor do crime uma pessoa de 27 anos.
“Todos esses elementos, considerados em conjunto e somados ao fato de nenhuma outra prova independente e idônea – que não o depoimento da vítima – ter sido apresentada, configuram a nulidade do reconhecimento, porquanto realizado quase três meses após o fato, reforçada a memória da vítima pela apresentação de fotografias do suspeito na delegacia, circunstâncias que contaminariam a idoneidade do reconhecimento realizado em juízo”, concluiu o ministro ao conceder o habeas corpus e absolver o réu.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. NULIDADE. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO. DISTÂNCIA TEMPORAL DOS FATOS. AUSÊNCIA DE VEROSSIMILHANÇA. DEPOIMENTOS CONTRADITÓRIOS. AUSÊNCIA DE OUTRAS PROVAS. CONDENAÇÃO LASTREADA SOMENTE NO DEPOIMENTO DA VÍTIMA. POSSÍVEL VIÉS DE CONFIRMAÇÃO. NULIDADE RECONHECIDA. ABSOLVIÇÃO.
1. “Em julgamento concluído no dia 23⁄2⁄2022, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal deu provimento ao RHC n. 206.846⁄SP (Rel. Ministro Gilmar Mendes), para absolver um indivíduo preso em São Paulo depois de ser reconhecido por fotografia, tendo em vista a nulidade do reconhecimento fotográfico e a ausência de provas para a condenação. Reportando-se ao decidido no julgamento do referido HC n. 598.886⁄SC, no STJ, foram fixadas três teses: 4.1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa; 4.2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas; 4.3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos.” (HC n. 712.781⁄RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15⁄3⁄2022, DJe de 22⁄3⁄2022.)
2. No caso em tela, a vítima foi assaltada por 3 agentes em janeiro de 2018, na delegacia não reconheceu nenhuma das fotos que lhe foram apresentadas, afirmou categoricamente não ser capaz de realizar retrato falado e que os 3 assaltantes aparentavam ser menores de idade. Já em abril do mesmo ano, quase 3 meses após o fato, a vítima alega ter reconhecido um dos assaltantes em uma maca em um hospital, momento em que se deslocou à Delegacia para denunciar o fato, o que ensejou a nova apresentação de fotografias, e o réu foi então efetivamente reconhecido em solo policial, bem como pessoalmente em juízo.
3. Tal narrativa não se mostra suficiente para atribuir a autoria ao paciente. Isso, porque a vítima afirmou categoricamente não ser capaz de realizar retrato falado no dia dos fatos, e alegou aparentarem ser os assaltantes menores de idade, mas, 3 meses após o evento, afirmou com convicção ter reconhecido agente que, à época do delito, já contava com 27 anos de idade, e o reconhecimento foi reforçado pela apresentação das fotografias do suspeito na delegacia.
4. Todos esses elementos considerados em conjunto e somados ao fato de que nenhuma outra prova independente e idônea – que não o depoimento da vítima – ter sido apresentada configuram a nulidade do reconhecimento, porquanto realizado quase 3 meses após o fato, reforçada a memória da vítima pela apresentação de fotografias do suspeito na delegacia, circunstâncias que contaminariam a idoneidade do reconhecimento realizado em juízo.
5. Ordem concedida para anular a ação penal, com a consequente absolvição do paciente.
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