Os quatro lados de um projeto de ruína: as pirâmides financeiras segundo a jurisprudência do STJ

De um lado, um grupo interessado em ganhar dinheiro por meio de uma estrutura montada apenas para beneficiar seus criadores, mediante a captação de recursos de indivíduos “recrutados”; do outro lado, uma grande quantidade de pessoas atraídas pela perspectiva de lucro fácil, mas normalmente alheia ao verdadeiro objetivo dos captadores; na terceira face, um discurso que mistura marketing, falsas promessas e a “venda” de sonhos; na última face, o verdadeiro propósito dessa suposta oportunidade: o pagamento para aderir ao sistema ou a exigência de compra dos produtos oferecidos pelos recrutadores, trazendo cada vez mais dinheiro para os idealizadores do negócio.

Essas são as quatro faces das chamadas pirâmides financeiras (ou Esquema Ponzi), sistema fraudulento identificado pela primeira vez há mais de cem anos, nos Estados Unidos.

Conforme explicou o ministro Reynaldo Soares da Fonseca no julgamento do CC 146.153, a pirâmide financeira se caracteriza por prometer ganhos cujo pagamento depende do ingresso de novos investidores. “Como, a partir de determinado momento, mostra-se inviável manter o ingresso de investidores em proporção suficiente para que suas novas contribuições arquem com os lucros prometidos àqueles que ingressaram previamente, o sistema não tem como se alimentar de recursos e entra em colapso, prejudicando aqueles que aderiram por último, uma vez que não chegam a recuperar nem mesmo o montante investido” – descreveu o magistrado.

O objetivo é beneficiar os que estão no topo da pirâmide

Outra forma de pirâmide, segundo o ministro, ocorre sob o disfarce de marketing multinível – um tipo de negócio, em princípio, legítimo, explorado por empresas sérias. Com frequência, porém, os negócios apresentados como marketing multinível escondem um esquema similar aos das pirâmides financeiras, no qual é oferecida aos associados uma perspectiva de lucros futuros irreais, cujo pagamento também depende do ingresso de novos investidores ou da aquisição de produtos para uso próprio pelos participantes, em vez de vendas para consumidores que não integram o esquema.

Como o objetivo é beneficiar os que estão no topo da pirâmide – em regra, os seus idealizadores –, o sistema acaba prejudicando a maior parte daqueles que são recrutados pela estrutura. No final, como são necessários cada vez mais recursos para manter a pirâmide, a tendência é o colapso do esquema – e a ruína dos participantes, que, muitas vezes de boa-fé, aceitaram integrar a organização, dedicando tempo e dinheiro ao projeto, e que jamais recuperam o seu investimento.

Organizar pirâmide financeira é crime, mas em que tipo penal a conduta se enquadra? E qual ramo da Justiça é competente para o julgamento do delito? Essas são algumas questões decididas nos muitos processos sobre pirâmide que já chegaram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Pirâmides são definidas como crime contra a economia popular

No CC 146.153, a Terceira Seção estabeleceu que a captação de recursos por meio de pirâmide não se enquadra no conceito de atividade financeira para fins de incidência da Lei 7.492/1986 (que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), amoldando-se mais ao delito previsto no artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951 (que dispõe sobre os crimes contra a economia popular).

No caso que deu origem ao conflito de competência, as investigações identificaram um esquema no qual as pessoas seriam atraídas para a realização de testes de jogos on-line, mediante aquisição dos produtos, com a promessa de remuneração pela participação nos testes e pela indicação de novos usuários para aderir ao programa. Na realidade, segundo a apuração policial, o dinheiro captado servia apenas para a remuneração dos idealizadores do esquema – um golpe que vitimou pessoas no Brasil e no exterior, com uma movimentação suspeita de mais de R$ 200 milhões.

Instaurado o inquérito, a Justiça estadual de São Paulo se declarou incompetente para conduzir o caso, por entender que a ação continha indícios de crime contra o Sistema Financeiro Nacional – o que caracterizaria a competência da Justiça Federal. Ao receber os autos, a Justiça Federal suscitou o conflito, por entender que, em tese, seria o caso de crime contra a economia popular, de competência da Justiça estadual.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca lembrou que, nos termos da Súmula 498 do Supremo Tribunal Federal (STF), compete à Justiça estadual, em ambas as instâncias, o julgamento de crimes contra a economia popular.

Com base em informações do Ministério da Fazenda, o ministro apontou sete características que permitem identificar um esquema de pirâmide financeira:

No caso dos autos, Reynaldo Soares da Fonseca destacou que a conduta das empresas – correspondente a pelo menos quatro das sete características indicadas pelo Ministério da Fazenda – configurava não um delito contra o sistema financeiro, mas, sim, um crime contra a economia popular e, por consequência, de competência da Justiça estadual.

bis in idem na imputação de estelionato e de crime contra a economia popular

No RHC 132.655, a Sexta Turma analisou a possibilidade da configuração do chamado bis in idem por causa da imputação ao réu, de forma conjunta, das condutas descritas nos artigos 171 do Código Penal (estelionato) e 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951 (crime contra a economia popular).

Os autos foram derivados da Operação Faraó, investigação que apurou pirâmide financeira estruturada sob a aparência de negócio de apostas em sites esportivos. Segundo a polícia, as vítimas eram induzidas a adquirir planos em dólares, cujos rendimentos seriam pagos em bitcoins. A empresa prometia que os ganhos na intermediação das apostas seriam suficientes para pagar os rendimentos dos investidores e, como prova do sucesso do negócio, seus administradores ostentavam carros e outros bens luxuosos, com o objetivo de despertar novos interessados.

No curso das investigações, foi constatada a desvinculação entre a captação de recursos e a aplicação no sistema de apostas, além da imposição de limitações aos investidores que desejavam retirar o dinheiro aplicado.

Com base nesses elementos, o Ministério Público denunciou os réus tanto por crime contra a economia popular – em virtude da especulação financeira e da falsa promessa de rendimentos fora da realidade – quanto pelo delito de estelionato – em razão do engano imposto às vítimas, que acreditavam estar investindo em bolsas de apostas estrangeiras quando, na verdade, estavam entregando seus recursos para usufruto dos empresários.

O ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do recurso em habeas corpus, destacou que as circunstâncias dos autos – que motivaram as duas capitulações penais – são semelhantes, pois mencionam a prática de golpe e a indução das vítimas em erro.

Com base nos precedentes do STJ sobre a relação entre a identificação dos ofendidos e a tipificação do crime de estelionato, o ministro entendeu que, no caso, não havia justificativa plausível para a manutenção da denúncia em relação ao estelionato, sob pena de indevido bis in idem. Por consequência, a Sexta Turma determinou o prosseguimento da ação penal apenas pelo crime contra a economia popular.

Pirâmides não constituem crime contra o mercado de capitais

Ao realizar o enquadramento penal das pirâmides financeiras, no HC 293.052, a Quinta Turma entendeu que esse tipo de estrutura fraudulenta também não se insere nos crimes contra o mercado de capitais (Lei 6.385/1976).

No caso analisado, uma empresa oferecia aos consumidores a oportunidade de se “associarem” a um sistema de venda de rastreadores, desde que pagassem uma taxa mensal para utilização do equipamento e comprassem um dos planos oferecidos, além de ficarem responsáveis pela venda de rastreadores. A empresa também prometia a distribuição de brindes milionários àqueles que trouxessem novos associados para o grupo.

Para o Ministério Público, na verdade, a negociação dos rastreadores escondia verdadeiro esquema de pirâmide financeira e, por isso, os réus foram denunciados pela prática de crimes contra o mercado de capitais, contra o sistema financeiro nacional, de lavagem de dinheiro e de organização criminosa.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou que, embora o MP tenha apontado que as empresas exerciam atividades típicas de instituições financeiras, a própria descrição dos fatos afastava a ideia da existência de uma instituição financeira, o que impedia a aplicação da Lei 7.492/1986.

O relator também fez referência ao artigo 27-E da Lei 6.385/1976 – apontado pelo MP na denúncia –, o qual define como crime contra o mercado de capitais o exercício da atividade de administrador de carteira de investimentos ou assemelhado, sem autorização ou registro na autoridade administrativa competente.

Para o ministro, contudo, o dispositivo não atinge a conduta imputada aos réus, o que afastou a configuração de crime contra o mercado de capitais e a competência da Justiça Federal para julgar a ação penal.

Determinação das vítimas diferencia estelionato do delito contra a economia popular

A Sexta Turma, no HC 464.608, estabeleceu as diferenças entre o crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal) e o crime de ganhos fraudulentos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas (artigo 2º, inciso IX, da Lei 1.521/1951), tendo como base o cometimento do crime contra vítimas determinadas ou indeterminadas.

Na ação, o réu foi denunciado por estelionato, devido à participação em esquema que atraía pessoas por meio da oferta de opções de investimento com lucro acima da média do mercado. Segundo o depoimento de vítimas, a empresa da qual participava o réu prometia ganho mensal de 60% do valor investido em anúncios na internet, além de garantir que aquele que entrasse no sistema com a indicação de outro investidor receberia, imediatamente, 40% do valor aplicado.

No decorrer das investigações, a polícia constatou o esquema de pirâmide financeira, identificou diversos investidores lesados e, ao mesmo tempo, apreendeu com os administradores da empresa vários veículos de luxo e milhares de dólares.

Para o Ministério Público, estava configurado o delito de estelionato porque o réu, por meio da empresa, utilizava meios fraudulentos para a obtenção de vantagem indevida, por meio da atração de pessoas físicas e jurídicas pela internet.

Relator do habeas corpus, o ministro aposentado Nefi Cordeiro apontou que, de acordo com as informações dos autos, ficou claro que o esquema era direcionado para a captação de pessoas de forma genérica, em número indeterminado, “escapando da caracterização do tipo penal do estelionato, que exige vítimas específicas”.

Como resultado desse entendimento, a Sexta Turma corrigiu a imputação penal para o delito contra a economia popular e, na sequência, reconheceu a prescrição da pretensão punitiva contra o réu.

Competência da Justiça Federal só ocorre se houver lesão a interesses da União

Na Terceira Seção, no CC 170.392, os ministros entenderam que, na falta de elementos que demonstrem a evasão de divisas ou a lavagem de dinheiro em detrimento de interesses da União, era de competência da Justiça estadual julgar crimes relacionados a uma pirâmide financeira focada em investimentos em criptomoedas.

Na ação que deu origem ao conflito de competência, uma das vítimas alegou que foi persuadido a investir nas moedas digitais, sob a promessa de que receberia lucro mensal de 55% sobre o valor aplicado.

Após o primeiro investimento, a vítima relatou que foi incluída em um grupo de WhatsApp cujos integrantes eram convidados a investir novos valores e a convencer outras pessoas a participarem do negócio. No total, a vítima aplicou mais de R$ 24 mil. Contudo, ela disse que, dois meses após o início dos investimentos, não era mais possível ter contato com a empresa, a qual teria se apropriado dos valores aplicados.

O inquérito policial foi inicialmente remetido à Justiça Federal, mas o juízo suscitou o conflito de competência.

O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, citou precedentes no sentido de que, em se tratando de crime contra a economia popular, de competência da Justiça estadual, o deslocamento dos autos para a Justiça Federal só seria possível se demonstrada a evasão de divisas ou o crime de lavagem de dinheiro em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.

“Como se vê, o juízo estadual suscitado discordou da capitulação jurídica de estelionato, mas deixou de verificar a prática, em tese, de crime contra a economia popular, cuja apuração compete à Justiça estadual, nos termos da Súmula 498/STF. Ademais, ao declinar da competência, o juízo suscitado não demonstrou especificidades do caso que revelassem conduta típica praticada em prejuízo de bens, serviços ou interesse da União”, afirmou o ministro.

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