Amicus curiae (amigo da corte) é uma expressão latina utilizada para designar o terceiro que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador. Com o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), tal modalidade de intervenção – cujas regras se encontravam dispersas pela legislação processual civil extravagante – foi sistematizada.
Segundo o artigo 138 do código, o juiz ou o relator do processo, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema ou a sua repercussão social, poderá solicitar ou admitir a participação no feito de pessoa física ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada.
No STJ, a atuação dos amigos da corte é destinada, especialmente, ao julgamento de recursos especiais repetitivos, em que são analisadas questões jurídicas presentes em múltiplas ações. Essa função foi fortalecida pela previsão legal de que o amicus curiae, apesar de, em geral, não poder interpor recursos, está autorizado a opor embargos de declaração e a recorrer da decisão que julgar o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR).
Apesar do avanço trazido pelo CPC/2015 com a sistematização dessa importante figura, ainda restam muitos questionamentos sobre os requisitos de admissão, as funções e os limites do amicus curiae no processo judicial – em especial, diante do impacto gerado pelas decisões em matéria repetitiva. Veja, a seguir, algumas teses construídas pelo STJ sobre o tema.
Admitir amicus curiae é faculdade do magistrado
Ao julgar recurso repetitivo (REsp 1.696.396), a Corte Especial do STJ entendeu que a decisão monocrática que trate da admissibilidade do amicus curiae não é impugnável por agravo interno. A relatoria foi da ministra Nancy Andrighi, a qual destacou ser a admissão dos amigos da corte uma faculdade do magistrado, como preceitua o artigo 138 do CPC/2015.
Leia também: O que é recurso repetitivo
“A leitura do artigo 138 do CPC/2015 não deixa dúvida de que a decisão unipessoal que verse sobre a admissibilidade do amicus curiae não é impugnável por agravo interno, seja porque o caput expressamente a coloca como uma decisão irrecorrível, seja porque o parágrafo 1º expressamente diz que a intervenção não autoriza a interposição de recursos, ressalvada a oposição de embargos de declaração ou a interposição de recurso contra a decisão que julgar o IRDR”.
Nancy Andrighi salientou ainda que, apesar de haver precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) – especialmente em ações diretas de inconstitucionalidade – no sentido de que o candidato a amicus curiae teria legitimidade para recorrer da decisão que o inadmite, a questão não era tratada expressamente no ordenamento jurídico brasileiro até o advento do CPC/2015.
“Esse entendimento é fruto de construção jurisprudencial consolidada na ausência de regra jurídica específica que disciplinasse a recorribilidade pelo amicus curiae, lacuna legislativa que veio a ser amplamente sanada pelo CPC/2015″, afirmou a magistrada.
Interesse na causa não basta
Sob a relatoria da ministra Isabel Gallotti, a Segunda Seção indeferiu pedido de atuação como amicus curiae da Defensoria Pública da União (DPU) no REsp 1.333.977, o qual discutia, no sistema dos repetitivos, encargos de crédito rural destinado ao fomento de atividade comercial. Na ocasião, firmou-se a tese de que “a legislação sobre cédulas de crédito rural admite o pacto de capitalização de juros em periodicidade inferior à semestral”.
A DPU alegou representar consumidores em milhares de ações sobre o tema. O colegiado, que não acolheu o pedido de intervenção, entendeu que a matéria, em regra, não configura hipótese de atuação típica da Defensoria Pública. A relatora classificou a argumentação da DPU como “insuficiente” para justificar uma intervenção formal em processo submetido ao rito dos repetitivos.
“Considero que a representatividade das pessoas, órgãos ou entidades referidos deve relacionar-se, diretamente, à identidade funcional, natureza ou finalidade estatutária da pessoa física ou jurídica que a qualifique para atender ao interesse público de contribuir para o aprimoramento do julgamento da causa, não sendo suficiente o interesse em defender a solução da lide em favor de uma das partes (interesse meramente econômico)”, declarou Gallotti.
“Apenas a situação de eventual devedor necessitado justificaria, em casos concretos, a defesa da tese jurídica em debate pela Defensoria, tese esta igualmente sustentada por empresas de grande porte econômico”, acrescentou.
A relatora ressaltou que a impossibilidade de a Defensoria Pública intervir no feito como amicus curiae não impediria a devida assistência judiciária como representante processual.
Intervenção deve ser pedida antes do julgamento
Em questão de ordem suscitada no julgamento do REsp 1.152.218, a Corte Especial relembrou a jurisprudência do STJ no sentido de que o pedido de intervenção, na qualidade de amicus curiae, em recurso submetido ao rito dos repetitivos, deve ser feito antes do início do julgamento pelo colegiado, e fica a critério do relator.
No caso analisado pelos ministros, a Fazenda Nacional pleiteou seu ingresso como amigo da corte para discutir questão relacionada à classificação do crédito de honorários advocatícios na falência. O órgão defendeu seu interesse jurídico na demanda, em razão do fato de ser credora de inúmeras massas falidas e por força da interpretação atribuída ao artigo 186 do Código Tributário Nacional (CTN).
Em seu voto, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, com base em precedentes do STF e do próprio STJ, afirmou não haver “utilidade prática” nem “espaço” para o ingresso da Fazenda Nacional como amicus curiae, pois o julgamento já havia sido iniciado, com diversos votos proferidos.
De acordo com o magistrado, naquele momento processual não seria mais cabível forma alguma de intervenção do pretenso amigo da corte, e, “segundo assevera remansosa jurisprudência, o amicus curiae não tem legitimidade recursal, inviabilizando-se a pretensão de intervenção posterior ao julgamento”.
OAB na discussão de honorários
Ao relatar os EDcl no EREsp 1.645.719, o ministro Villas Bôas Cueva negou pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção do Rio de Janeiro, por intermédio de sua Comissão de Prerrogativas, para ingressar como amicus curiae em defesa dos profissionais que patrocinaram a causa, os quais teriam tido seus honorários aviltados.
Seguido por unanimidade pela Segunda Seção, o relator lembrou posicionamento do STJ no sentido de não admitir a intervenção da OAB como amicus curiae em processos nos quais se discute o valor de honorários, quando o interesse da autarquia se vincula diretamente ao julgamento favorável em prol de uma das partes.
Cueva destacou ainda que a intervenção de amicus curiae é prevista para as ações de natureza objetiva, que são aquelas em que o fornecimento de elementos informativos é capaz de melhor respaldar a decisão judicial que irá dirimir a questão posta nos autos.
“No caso de ações de natureza subjetiva, sua admissão é excepcional, justificando-se em hipóteses nas quais seja identificada uma multiplicidade de demandas similares, a indicar a generalidade do tema discutido, devendo ficar demonstrado que a intervenção tem como finalidade colaborar com a corte e defender interesse público relevante, objetivos que não restam demonstrados na presente hipótese”, considerou o ministro.
Nessa mesma linha, votaram a ministra Isabel Gallotti, no REsp 1.023.053, e o ministro Og Fernandes, no AgRg na PET no REsp 1.336.026.
Na ocasião da relatoria do agravo, Og Fernandes lembrou que o STF ressaltou ser imprescindível a demonstração, pela entidade pretendente a colaborar com a corte, de que não está a defender interesse privado, mas sim relevante interesse público.
Sem legitimidade para embargar
Ao analisar os EDcl no REsp 1.815.055, a Corte Especial definiu que não configurou nulidade o julgamento do recurso sem ter sido apreciado antes o pedido de intervenção do Conselho Federal da OAB, e, por não ostentar a condição de amicus curiae, a autarquia não tinha legitimidade para embargar. A relatoria foi da ministra Nancy Andrighi.
Com esse entendimento, o colegiado não conheceu dos embargos de declaração opostos pela OAB contra acórdão proferido pela própria Corte Especial. A entidade alegou que a decisão embargada foi omissa ao não apreciar seu pedido de ingresso no feito.
Em seu voto, a relatora destacou que, em hipótese análoga, o STF não conheceu de embargos de declaração opostos com fundamento em nulidade do julgamento – atribuída à não apreciação do requerimento de ingresso do embargante na condição de amicus curiae – por reconhecer a ilegitimidade recursal e a ausência de nulidade.
“Conquanto o referido julgamento tenha sido realizado sob a égide do CPC/1973, cabe salientar que o parágrafo 1º do artigo 138 do CPC/2015, invocado nas razões recursais, admite a oposição dos embargos de declaração pelo amicus curiae que participa do processo, condição essa que não ostenta o embargante”, concluiu Nancy Andrighi.
Sustentação oral do amigo da corte
Em questão de ordem suscitada pelo ministro Benedito Gonçalves no repetitivo REsp 1.205.946, a Corte Especial, por maioria, firmou a orientação de não reconhecer o direito do amicus curiae de exigir sustentação oral.
Segundo o voto vencedor, o tratamento que se deve dar ao amicus curiae em relação à sustentação oral é o mesmo dos demais atos do processo: o STJ tem a faculdade de convocá-lo ou não. Dessa forma, definiu-se que, se o tribunal entender que deve ouvir a sustentação oral, poderá convocar um ou alguns dos amici curiae, mas não há por parte deles o direito de exigir a sustentação.
Defesa dos associados em processo alheio
Recentemente, em EDcl na QO no REsp 1.813.684, a Corte Especial entendeu que não há legitimidade recursal do amicus curiae para, no interesse específico de seus associados, opor embargos de declaração em questão de ordem em processo subjetivo. Para o colegiado, a contribuição dos amigos da corte para a formação do convencimento, por ocasião do julgamento de mérito, não se estende a questão de ordem que apenas declara o objeto da deliberação anterior, como ocorreu no caso analisado.
A relatoria foi da ministra Nancy Andrighi, que destacou que o papel do amicus curiae consiste em subsidiar e qualificar o debate em questões controvertidas, e não em “defender interesses subjetivos, corporativos ou classistas”, especialmente quando tal intervenção ocorrer em processos subjetivos – isto é, que não sejam recursos especiais repetitivos ou nos quais não tenham sido instaurados incidente de resolução de demandas repetitivas ou incidente de assunção de competência.
“A intervenção do amicus curiae em processo subjetivo é lícita, mas a sua atuação está adstrita aos contributos que possa eventualmente fornecer para a formação da convicção dos julgadores, não podendo assumir a defesa dos interesses de seus associados ou representados em processo alheio”, afirmou a ministra.