Com base no princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve decisão que obrigou a Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de São Paulo a aceitar a inscrição definitiva de um bacharel em direito acusado de homicídio qualificado. A acusação decorre de sua atuação como policial militar no chamado “Caso Castelinho”.
A Operação Castelinho, comandada pelo Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância (Gradi), da Polícia Militar de São Paulo, aconteceu em março de 2002, na rodovia Castelinho, perto de Sorocaba, e culminou na morte de 12 supostos integrantes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) no interior de um ônibus.
O relator do recurso especial, ministro Humberto Martins, afirmou que, ao menos por enquanto, não pesa contra o bacharel a condenação por crime infamante, uma vez que ainda não há sentença penal condenatória transitada em julgado, mas apenas uma ação penal de competência do júri na fase de instrução.
De acordo com o ministro, nessa fase processual não é possível afirmar a culpa do réu. Ele acrescentou que, no ordenamento jurídico brasileiro, tem primazia o princípio da presunção de inocência.
Legitimação da OAB
Em seu voto, o ministro Martins destacou que o Estatuto da Advocacia confere à OAB o poder-dever de avaliar a idoneidade daqueles que pretendem se inscrever definitivamente em seu quadro profissional, conforme prevê o artigo 8º, inciso VI, da Lei 8.906/94.
“Tal legitimação conferida à OAB é de suma importância para a preservação da essencialidade da advocacia na administração da Justiça e para a sociedade como um todo”, completou o ministro.
Entretanto, Martins ressaltou que, a despeito da gravidade das condutas imputadas ao bacharel, não se pode atestar, a partir delas, sua idoneidade ou predizer sua culpa sem que transite em julgado sentença penal que o condene e sem que se tenham esgotado os recursos cabíveis.
“Registre-se que o Estatuto da OAB, em seu artigo 11, inciso V, autoriza a autarquia, dentro da capacidade de autotutela que lhe é conferida, a cancelar, posteriormente, a inscrição do profissional que vier a perder qualquer um dos requisitos constantes do artigo 8º”, disse o relator.
O caso
O bacharel em direito impetrou mandado de segurança com pedido de liminar contra o presidente da comissão de seleção e inscrição da OAB/SP, sustentando o seu direito à inscrição definitiva nos quadros da entidade.
A sentença de primeiro grau concedeu a segurança e determinou que a OAB procedesse à inscrição como advogado e expedisse a respectiva carteira profissional.
A OAB apelou, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) rejeitou o recurso ao fundamento de que ainda não há sentença penal condenatória com trânsito em julgado.
No recurso especial, a autarquia sustentou que para a inscrição como advogado é necessária idoneidade moral, ao passo que o bacharel é parte em processo criminal como incurso 12 vezes no artigo 121, parágrafo 2º, incisos II, III e IV; artigo 69; artigo 61, inciso II, alínea “g”, e artigo 29, todos do Código Penal.
A OAB alegou ainda que o indeferimento da inscrição do recorrido “decorre do processo administrativo, cujo juízo não se vincula ao processo judicial, quando os elementos probatórios forem suficientes para formá-lo. Portanto, mesmo antes da condenação judicial, a inscrição pode ser negada se os fatos forem suficientes para a configuração da inidoneidade moral”.
O recurso ficou assim ementado:
ADMINISTRATIVO. INSCRIÇÃO DEFINITIVA NA OAB. INCIDENTE DE INIDONEIDADE MORAL. SUPOSTA PRÁTICA DE CRIME INFAMANTE. AÇÃO PENAL DE COMPETÊNCIA DO JÚRI EM FASE DE INSTRUÇÃO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. INEXISTÊNCIA DE SENTENÇA COM TRÂNSITO EM JULGADO. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.
1. Na origem, o recorrido impetrou mandado de segurança contra o Presidente da Comissão de Seleção e Inscrição da OAB⁄SP, aduzindo direito líquido e certo à inscrição definitiva nos quadros da OAB⁄SP. A autarquia indeferiu a inscrição por ser o impetrante corréu em ação penal pública, na qual está incurso, por doze vezes, nas penas do art. 121, § 2º, incs. II, III e IV, do CP (homicídio qualificado decorrente de sua atuação como policial militar no “Caso Castelinho”).
2. A inscrição como advogado requer, entre outros requisitos, idoneidade moral, a qual não será atendida se houver condenação por crime infamante, ressalvada a reabilitação judicial (art. 8º, inc. VI, § 4º, do Estatuto da OAB).
3. Por ora, não há sentença penal condenatória transitada em julgado contra o recorrido, e sim ação penal de competência do júri na fase de instrução, de modo que não se pode predizer sua culpa.
4. No ordenamento jurídico pátrio, tem primazia o princípio da presunção de inocência, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII, da CF⁄1988).
5. A OAB, dentro da capacidade de autotutela que lhe é conferida, tem autoridade para cancelar, posteriormente, a inscrição do profissional que vier a perder qualquer um dos requisitos para a inscrição (art. 11, inc. V, do Estatuto da OAB).
6. A alteração das conclusões que levaram as instâncias ordinárias a aferir a existência de direito líquido e certo a amparar a ordem mandamental exige revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, providência vedada pela Súmula 7⁄STJ.
Recurso especial conhecido em parte e improvido.