A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com base no princípio tempus regit actum e na teoria do isolamento dos atos processuais, considerou válida a desconsideração inversa da personalidade jurídica decretada e publicada na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), mesmo sem a realização de contraditório prévio e embora a intimação de uma das empresas atingidas pela decisão tenha ocorrido já na vigência do CPC/2015.
Segundo o colegiado, o CPC/1973 permitia a abertura do contraditório só após o deferimento da desconsideração, de modo que o CPC/2015, apesar de ter modificado essa regra, não poderia retroagir para atingir os atos anteriores à sua vigência.
O recurso teve origem em cumprimento de sentença no qual, em primeiro grau, em 2014, o juízo decretou a desconsideração da personalidade jurídica de uma importadora de veículos, a fim de localizar bens e ativos de sociedade integrante do mesmo grupo econômico. A intimação dessa decisão, entretanto, ocorreu apenas em 2019, na vigência do novo código.
A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Para a corte, tendo em vista que a desconsideração foi requerida e deferida sob o CPC/1973, não haveria violação às regras do CPC/2015. Ainda segundo o tribunal, na época em que vigorava o código anterior, a jurisprudência entendia pela possibilidade de diferimento do contraditório nos casos de desconsideração da personalidade jurídica.
No recurso especial, a importadora alegou que, na condição de terceira afetada pela decisão, teria direito ao contraditório diante do pedido de desconsideração da pessoa jurídica executada, especialmente porque, embora a medida tenha ocorrido na vigência do CPC/1973, ela só teve ciência quando intimada, já sob o CPC/2015, sendo necessário aplicar a nova lei ao caso.
Nova lei não pode atingir atos processuais anteriores
A ministra Nancy Andrighi, relatora, explicou que, na vigência do CPC/1973, a desconsideração da personalidade jurídica poderia ser decretada de forma incidental no processo, dispensando-se o ajuizamento de ação autônoma. Nessas hipóteses, acrescentou, o direito de defesa era exercido após a adoção das medidas decorrentes da desconsideração, por meio dos recursos cabíveis – impugnação ao cumprimento de sentença ou embargos, por exemplo.
Já no CPC/2015, afirmou a ministra, os artigos 133 e seguintes dispõem que a desconsideração pressupõe a instauração de incidente processual próprio e o contraditório prévio, e não mais diferido, como acontecia no código anterior.
A magistrada também lembrou que, no âmbito do conceito de direito intertemporal, a teoria do isolamento dos atos processuais prevê que a lei nova não atinja os atos processuais anteriores, assim como os seus efeitos. Com base nessa orientação, ressaltou a relatora, é que o TJPE considerou não ser cabível a adoção das regras do CPC/2015, pois os seus dispositivos não vigiam quando o juízo decretou a desconsideração.
“Não é possível defender o argumento da recorrente, no sentido de validar uma intimação ocorrida cinco anos depois da decisão de desconsideração, objetivando anular todos os atos processuais, com fulcro na vigência do CPC/2015, quando esse ato guarda, inequivocamente, nexo imediato e inafastável com o próprio ato praticado sob o regime da lei anterior, consubstanciado na decisão propriamente dita de desconsideração” – concluiu a ministra.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. SOCIEDADES DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. DECISÃO PUBLICADA NA VIGÊNCIA DO CPC⁄1973. INTIMAÇÃO APÓS A VIGÊNCIA DO CPC⁄2015. CONTRADITÓRIO PRÉVIO. DIREITO INTERTEMPORAL. TEMPUS REGIT ACTUM.1- Recurso especial interposto em 24⁄11⁄2020 e concluso ao gabinete em 17⁄8⁄2021.2- O propósito recursal consiste em dizer se é possível o decreto de desconsideração da personalidade jurídica, sem o prévio contraditório, quando a referida decisão foi publicada na vigência do Código de Processo Civil de 1973, tendo a parte, no entanto, sido intimada somente após a vigência do Código de Processo Civil de 2015.3- À luz do princípio tempus regit actum e da Teoria do Isolamento dos Atos Processuais, os atos do processo devem observar a legislação vigente ao tempo de sua prática, sob pena de indevida retroação da lei nova para alcançar atos pretéritos. Nesse sentido, as normas processuais incidem imediatamente nos processos em curso, mas não alcançam atos processuais anteriores. Precedentes.4- Consoante reiterado no acórdão recorrido, ocorreu a formação de sucessão de “empresas” entre ARNOM PARTICIPAÇÕES e ARNON VEÍCULOS, ambas com os mesmos sócios, decisão que não foi objeto de recurso, apesar de possuírem também os mesmos advogados. Assim, não é crível o desconhecimento da decisão de desconsideração. Por sua vez, a recorrente ficou completamente inerte, e, assim, reveste-se preclusa a possibilidade de arguição de nulidade dos atos praticados, nos termos do art. 278 do CPC⁄2015.5- A aplicação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, nos termos previstos no art. 133 do CPC⁄2015, não é exigível ao presente caso, pois a decisão que procedeu à desconsideração da executada originária foi proferida em meados de 2014, isto é, enquanto vigente o CPC⁄1973.6- Não é possível defender o argumento no sentido de validar uma intimação ocorrida 5 (cinco) anos depois da decisão de desconsideração, entre empresas do mesmo grupo econômico, objetivando anular todos os atos processuais, com fulcro na vigência do CPC⁄2015, quando esse ato guarda, inequivocamente, nexo imediato e inafastável com o próprio ato praticado sob o regime da lei anterior, consubstanciado na decisão propriamente dita de desconsideração. Deve-se, pois, ser respeitada a eficácia do ato processual pretérito.7. Recurso especial não provido.
Leia o acórdão no REsp 1.954.015.