O endosso tem efeito de cessão de crédito e não exige a notificação do devedor, a não ser que o emitente do cheque tenha acrescentado ao título de crédito a cláusula “não à ordem”, hipótese em que o título somente se transfere pela forma de cessão de crédito.
Esse foi o entendimento adotado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgamento de recurso especial interposto por uma empresa de factoring condenada por danos morais por ter inscrito uma devedora de cheque endossado, devolvido por insuficiência de fundos, em cadastro de inadimplentes, sem antes notificá-la.
A mulher alegou que tentou saldar a dívida com o estabelecimento comercial onde realizou a compra, mas que este havia sido extinto. Apenas quando seu nome foi negativado é que descobriu que o cheque tinha sido endossado a uma empresa de factoring.
Consignação de pagamento
Segundo a devedora, ela ajuizou uma ação de consignação de pagamento, com depósito judicial do valor devido ao credor original. Um ano depois, no entanto, ela foi novamente surpreendida com o seu nome incluído no Serviço de Proteção ao Crédito (SPC), por solicitação da empresa de factoring, que estava com o seu cheque.
No STJ, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, deu provimento ao recurso da factoring. Segundo ele, “o endosso, no interesse do endossatário, tem efeito de cessão de crédito, não havendo cogitar de observância da forma necessária à cessão civil ordinária de crédito, disciplinada nos artigos 288 e 290 do Código Civil (CC)”.
“O cheque endossado – meio cambiário próprio para transferência dos direitos do título de crédito, que se desvincula da sua causa, conferindo ao endossatário as sensíveis vantagens advindas dos princípios inerentes aos títulos de crédito, notadamente o da autonomia das obrigações cambiais – confere, em benefício do endossatário, ainda em caso de endosso póstumo, os efeitos de cessão de crédito”, explicou Salomão.
Em relação ao fato de a devedora ter movido a ação de consignação em pagamento ao credor originário, o ministro entendeu que isso não afasta o direito do endossatário do título, pois a quitação regular de débito estampado em título de crédito só ocorre com o resgate do cheque.
Para Salomão, o devedor deve “exigir daquele que se apresenta como credor cambial a entrega do título de crédito (o artigo 324 do CC, inclusive, dispõe que a entrega do título ao devedor firma a presunção de pagamento)”.
O recurso ficou assim ementado:
FACTORING E DIREITO CAMBIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. CHEQUE À ORDEM. ENDOSSO. EFEITO DE CESSÃO DE CRÉDITO. DESNECESSIDADE DE NOTIFICAÇÃO EXIGIDA, PELO CÓDIGO CIVIL, PARA CESSÃO ORDINÁRIA DE CRÉDITO. RESPONSABILIZAÇÃO DO ESCRITÓRIO DE FACTORING PELO APONTAMENTO DO NOME DA ORA RECORRIDA A ÓRGÃO DO SISTEMA DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO, EM VISTA DA PRÉVIA DEVOLUÇÃO DO CHEQUE, PELO BANCO SACADO, POR INSUFICIÊNCIA DE FUNDOS. INVIABILIDADE. O ENDOSSO É PLENAMENTE APLICÁVEL À AVENÇA MERCANTIL DO FACTORING, NÃO CABENDO RESTRIÇÃO A DIREITOS ASSEGURADOS PELO DIREITO CAMBIÁRIO, SOB PENA DE INCIDÊNCIA EM DOMÍNIO CONSTITUCIONALMENTE RESERVADO AO ÂMBITO DE ATUAÇÃO MATERIAL DA LEI EM SENTIDO FORMAL. ALEGAÇÃO DA AUTORA DE TER EFETUADO O PAGAMENTO AO ENDOSSANTE, POR MEIO DE AÇÃO CONSIGNATÓRIA. O PAGAMENTO FEITO PELO DEVEDOR DE TÍTULO “À ORDEM”, SEM QUE A CÁRTULA LHE TIVESSE SIDO DEVOLVIDA, EVIDENTEMENTE, NÃO PODE SER OPOSTO AO ENDOSSATÁRIO PORTADOR DE BOA-FÉ.
1. Como é cediço, o interesse social visa proporcionar ampla circulação dos títulos de crédito, dando aos terceiros de boa-fé plena garantia e segurança na sua aquisição, constituindo a inoponibilidade das exceções fundadas em direito pessoal do devedor a mais importante afirmação do direito moderno em favor da segurança da circulação e negociabilidade dos títulos de crédito. (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 27 ed. Saraiva: São Paulo, v. 2, 2010, p. 415-423)
2. Dessarte, o cheque endossado – meio cambiário próprio para transferência dos direitos do título de crédito, que se desvincula da sua causa, conferindo ao endossatário as sensíveis vantagens advindas dos princípios inerentes aos títulos de crédito, notadamente o da autonomia das obrigações cambiais – confere, em benefício do endossatário, ainda em caso de endosso póstumo (art. 27 da Lei do Cheque), os efeitos de cessão de crédito. De fato, a menos que o emitente do cheque tenha aposto a cláusula “não à ordem” – hipótese em que o título somente se transfere pela forma de cessão de crédito -, o endosso, no interesse do endossatário, tem efeito de cessão de crédito, não havendo cogitar de observância da forma necessária à cessão civil ordinária de crédito, disciplinada nos arts. 288 e 290 do Código Civil.
3. Assim, o art. 20, caput, da Lei do Cheque – no que em nada discrepa da Lei Uniforme de Genebra – esclarece que o endosso transmite todos os direitos resultantes do cheque. Com efeito, a teor da legislação, fica límpido que “[o] cheque é um título que tem vocação de circular pela simples tradição manual”. (MARTINS, Fran. Títulos de crédito. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 313 e 314)
4. Como o endosso é plenamente compatível⁄aplicável ao fomento mercantil, é bem de ver que o princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, inclusive na sua função jurisdicional, que não se reveste de idoneidade jurídica que lhe permita criar ou restringir direitos conferidos por lei, “sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal”. (ACO 1048 QO, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 30⁄08⁄2007, DJe-134 DIVULG 30-10-2007 PUBLIC 31-10-2007 DJ 31-10-2007 PP-00077 EMENTA VOL-02296-01 PP-00001)
5. Embora o contrato de factoring não se encontre sistematizado na legislação pátria, é certo que “liga-se à necessidade de reposição do capital de giro nas empresas, geralmente nas pequenas e médias”. Bastante assemelhada ao desconto bancário, “a operação de factoring repousa na sua substância, numa mobilização dos créditos de uma empresa; necessitando de recursos, a empresa negocia os seus créditos cedendo-os à outra”, que se incumbe de cobrá-los, adiantando-lhe o valor desses créditos (conventional factoring) ou pagando-os no vencimento (maturity factoring); obriga-se contudo a pagá-los mesmo em caso de inadimplemento por parte do devedor da faturizada. (BULGARELLI, Waldirio. Contratos mercantis. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 541-546)
6. Em recente precedente da Primeira Seção, EREsp 1.236.002⁄ES, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, aquele Colegiado pacificou que os escritórios de factoring não precisam ser registrados nos conselhos regionais de administração, pois suas atividades são de natureza eminentemente mercantil – já que não envolve gestões estratégicas, técnicas e programas de execução voltados a um objetivo e ao desenvolvimento de empresa -, sendo o traço característico da operação a aquisição de um crédito a prazo da faturizada.
7. Por um lado, o art. 905, caput, do Código Civil estabelece que “[o] possuidor de título ao portador tem direito à prestação nele indicada, mediante a sua simples apresentação ao devedor”, e o parágrafo único estipula que a prestação é devida ainda que o título tenha entrado em circulação contra a vontade do emitente. Por outro lado, não se pode perder de vista que a exigência, sem nenhum supedâneo legal, de que, mesmo com endosso de cheque “à ordem”, a factoring endossatária terceira de boa-fé devesse se acautelar – demonstrando ter feito notificação à emitente e⁄ou procedido à pesquisa acerca de eventual ação judicial a envolver emitente e endossante -, mesmo adquirindo pelo meio próprio crédito de natureza autônoma (cambial), implica restrição a direitos conferidos por lei à recorrente, em manifesta ofensa a diversas regras, institutos e princípios do direito cambiário – e, até mesmo, a direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal (vide o art. 5º, II e XXII)
8. Ademais, a alegação da autora, ora recorrida, de ter feito a consignação em pagamento do crédito ao endossante da cártula (credor originário), não é relevante para afastar o direito do endossatário do título, pois a quitação regular de débito estampado em título de crédito é a que ocorre com o resgate da cártula – tem o devedor, pois, o poder-dever de exigir daquele que se apresenta como credor cambial a entrega do título de crédito (o art. 324 do Código Civil, inclusive, dispõe que a entrega do título ao devedor firma a presunção de pagamento).
9. A “negativação” do nome da autora, ora recorrida, em órgão do sistema de proteção ao crédito constituiu exercício regular de direito da Factoring. Com efeito, o art. 188, I, do Código Civil proclama não constituir ato ilícito os praticados no exercício regular de um direito reconhecido.
10. Recurso especial provido.