A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, concedeu habeas corpus para suspender decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) que, em execução de condenação por improbidade administrativa, havia mandado apreender o passaporte e suspender a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) do ex-prefeito de Foz do Iguaçu (PR) Celso Samis da Silva.
A controvérsia teve origem em execução fiscal originada de acórdão do Tribunal de Contas do Paraná que responsabilizou o município de Foz do Iguaçu por débitos trabalhistas decorrentes de terceirização ilícita de mão de obra. Como forma de regresso, o município emitiu Certidão de Dívida Ativa e iniciou a execução fiscal contra o ex-prefeito. À época, dezembro de 2013, o débito era de R$ 24.645,53.
Em primeiro grau, foi determinada a penhora de 30% do salário recebido pelo ex-prefeito na Companhia de Saneamento do Paraná, com a retenção do valor em folha de pagamento. Posteriormente, o TJPR deferiu pedido do município para inscrever o réu em cadastro de inadimplentes, nos órgãos de proteção de crédito, e suspendeu seu passaporte e a CNH como forma de coagi-lo a pagar a dívida.
Ao apresentar o habeas corpus no STJ, o ex-prefeito alegou desproporcionalidade na medida e afirmou que já estão sendo retidos 30% do seu salário para saldar a dívida. Argumentou, ainda, que a restrição em relação ao passaporte e à CNH lhe traz vários prejuízos.
Medida excessiva
De acordo com o relator, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, foi desproporcional o ato do TJPR ao apreender o passaporte e suspender a CNH do ex-prefeito.
“O caderno processual aponta que há penhora de 30% dos vencimentos que o réu aufere na Companhia de Saneamento do Paraná. Além disso, rendimentos de sócio majoritário que o executado possui na Rádio Cultura de Foz do Iguaçu Ltda. – EPP também foram levados a bloqueio”, destacou.
Para o ministro, o réu foi submetido a notória restrição do direito constitucional de ir e vir, num contexto de “execução fiscal já razoavelmente assegurada”. Segundo ele, a restrição torna-se mais aguda para alguém que vive em cidade onde se situa a tríplice fronteira Brasil-Paraguai-Argentina.
“É notório que, por residir nessa localidade fronteiriça, o paciente está a sofrer mais limitações em seu direito de ir e vir pela supressão de passaporte do que outra pessoa que esteja a milhares de quilômetros de qualquer área limítrofe”, afirmou o relator.
Privilégios processuais
Napoleão Maia Filho explicou que a lógica de mercado não se aplica às execuções fiscais, pois o poder público já é dotado, pela Lei 6.830/1980, de privilégios processuais.
\”Para se ter uma ideia do que o poder público já possui de privilégios ex ante, a execução só é embargável mediante a plena garantia do juízo (artigo 16, parágrafo 1º, da Lei de Execução Fiscal), o que não encontra correspondente na execução que se pode dizer comum. Como se percebe, o crédito fiscal é altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental\”, observou.
Ao votar pela concessão do habeas corpus, o ministro acrescentou que são excessivas \”medidas atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para dirigir\”, quando aplicadas no âmbito de execução fiscal.
O recurso ficou assim ementado:
CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. DIREITO DE LOCOMOÇÃO, CUJA PROTEÇÃO É DEMANDADA NO PRESENTE HABEAS CORPUS, COM PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR. ACÓRDÃO DO TC⁄PR CONDENATÓRIO AO ORA PACIENTE À PENALIDADE DE REPARAÇÃO DE DANO AO ERÁRIO, SUBMETIDO À EXECUÇÃO FISCAL PROMOVIDA PELA FAZENDA DO MUNICÍPIO DE FOZ DO IGUAÇU⁄PR, NO VALOR DE R$ 24 MIL. MEDIDAS CONSTRICTIVAS DETERMINADAS PELA CORTE ARAUCARIANA PARA GARANTIR O DÉBITO, EM ORDEM A INSCREVER O NOME DO DEVEDOR EM CADASTRO DE MAUS PAGADORES, APREENDER PASSAPORTE E SUSPENDER CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. CONTEXTO ECONÔMICO QUE PRESTIGIA USOS E COSTUMES DE MERCADO NAS EXECUÇÕES COMUNS, NORTEANDO A SATISFAÇÃO DE CRÉDITOS COM ALTO RISCO DE INADIMPLEMENTO. RECONHECIMENTO DE QUE NÃO SE APLICA ÀS EXECUÇÕES FISCAIS A LÓGICA DE MERCADO, SOBRETUDO PORQUE O PODER PÚBLICO JÁ É DOTADO, PELA LEI 6.830⁄1980, DE ALTÍSSIMOS PRIVILÉGIOS PROCESSUAIS, QUE NÃO JUSTIFICAM O EMPREGO DE ADICIONAIS MEDIDAS AFLITIVAS FRENTE À PESSOA DO EXECUTADO. ADEMAIS, CONSTATA-SE A DESPROPORÇÃO DO ATO APONTADO COMO COATOR, POIS O EXECUTIVO FISCAL JÁ CONTA COM A PENHORA DE 30% DOS VENCIMENTOS DO RÉU. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DA ORDEM. HABEAS CORPUS CONCEDIDO, DE MODO A DETERMINAR, COMO FORMA DE PRESERVAR O DIREITO FUNDAMENTAL DE IR E VIR DO PACIENTE, A EXCLUSÃO DAS MEDIDAS ATÍPICAS CONSTANTES DO ARESTO DO TJ⁄PR, APONTADO COMO COATOR, QUAIS SEJAM, (I) A SUSPENSÃO DA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO, (II) A APREENSÃO DO PASSAPORTE, CONFIRMANDO-SE A LIMINAR DEFERIDA.
1. O presente Habeas Corpus tem, como moto primitivo, Execução Fiscal adveniente de acórdão do Tribunal de Contas do Estado do Paraná que responsabilizou o Município de Foz do Iguaçu⁄PR a arcar com débitos trabalhistas decorrentes de terceirização ilícita de mão de obra. Como forma de regresso, o Município emitiu Certidão de Dívida Ativa, com a consequente inicialização de Execução Fiscal. À época da distribuição da Execução (dezembro⁄2013), o valor do débito era de R$ 24.645,53.
2. Para além das diligências deferidas tendentes à garantia do juízo, tais como as consultas Bacenjud, Renajud, pesquisa on-line de bens imóveis, disponibilização de Declaração de Imposto de Renda, o Magistrado determinou a penhora de 30% do salário auferido pelo Paciente na Companhia de Saneamento do Paraná-SANEPAR, com retenção imediata em folha de pagamento.
3. O Magistrado de Primeiro Grau indeferiu, porém, o pedido de expedição de ofício aos órgãos de proteção ao crédito e suspensão de passaporte e de Carteira Nacional de Habilitação. Mas a Corte Araucariana deu provimento a recurso de Agravo de Instrumento interposto pela Fazenda de Foz do Iguaçu⁄PR, para deferir as medidas atípicas requeridas pela Municipalidade exequente, consistentes em suspensão de Carteira Nacional de Habilitação e apreensão de passaporte.
4. A discussão lançada na espécie cinge-se à aplicação, no Executivo Fiscal, de medidas atípicas que obriguem o réu a efetuar o pagamento de dívida, tendo-se, como referência analítica, direitos e garantias fundamentais do cidadão, especialmente o de direito de ir e vir.
5. Inicialmente, não se duvida que incumbe ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. É a dicção do art. 139, IV do Código Fux.
6. No afã de cumprir essa diretriz, são pródigas as notícias que dão conta da determinação praticada por Magistrados do País que optaram, no curso de processos de execução, por limitar o uso de passaporte, suspender a Carteira de Habilitação para dirigir e inscrever o nome do devedor no cadastro de inadimplentes. Tudo isso é feito para estimular o executado a efetuar o pagamento, por intermédio do constrangimento de certos direitos do devedor.
7. Não há dúvida de que, em muitos casos, as providências são assim tomadas não apenas para garantir a satisfação do direito creditício do exequente, mas também para salvaguardar o prestígio do Poder Judiciário enquanto autoridade estatal; afinal, decisão não cumprida é um ato atentatório à dignidade da Justiça.
8. De fato, essas medidas constrictivas atípicas se situam na eminente e importante esfera do mercado de crédito. O crédito disponibilizado ao consumidor, à exceção dos empréstimos consignados, é de parca proteção e elevado risco ao agente financeiro que concede o crédito, por não contar com garantia imediata, como sói acontecer com a alienação fiduciária. Diferentemente ocorre nos setores de financiamento imobiliário, de veículos e de patrulha agrícola mecanizada, por exemplo, cujo próprio bem adquirido é serviente a garantir o retorno do crédito concedido a altos juros.
9. Julgadores que promovem a determinação para que, na hipótese de execuções cíveis, se proceda à restrição de direitos do cidadão, como se tem visto na limitação do uso de passaporte e da licença para dirigir, querem sinalizar ao mercado e às agências internacionais de avaliação de risco que, no Brasil, prestigiam-se os usos e costumes de mercado, com suas normas regulatórias próprias, como força centrífuga à autoridade estatal, consoante estudou o Professor JOSÉ EDUARDO FARIA na obra O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 64⁄85.
10. Noutras palavras, em virtude da falta de garantias de adimplemento, por ocasião da obtenção do crédito, são contrapostas as formas aflitivas pessoais de satisfação do débito em âmbito endoprocessual. Essa modalidade de condução da lide, que ressalta a efetividade, é válida mundivisão acerca do que é o processo judicial e o seu objetivo, embora ela [a visão de mundo] não seja única, não se podendo dizer paradigmática.
11. Porém, essa almejada efetividade da pretensão executiva não está alheia ao controle de legalidade, especialmente por esta Corte Superior, consoante se verifica dos seguintes arestos: o habeas corpus é instrumento de previsão constitucional vocacionado à tutela da liberdade de locomoção, de utilização excepcional, orientado para o enfrentamento das hipóteses em que se vislumbra manifesta ilegalidade ou abuso nas decisões judiciais. O acautelamento de passaporte é medida que limita a liberdade de locomoção, que pode, no caso concreto, significar constrangimento ilegal e arbitrário, sendo o habeas corpus via processual adequada para essa análise (RHC 97.876⁄SP, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 9.8.2018; AgInt no AREsp. 1.233.016⁄SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 17.4.2018).
12. Tratando-se de Execução Fiscal, o raciocínio toma outros rumos quando medidas aflitivas pessoais atípicas são colocadas em vigência nesse procedimento de satisfação de créditos fiscais. Inegavelmente, o Executivo Fiscal é destinado a saldar créditos que são titularizados pela coletividade, mas que contam com a representação da autoridade do Estado, a quem incumbe a promoção das ações conducentes à obtenção do crédito.
13. Para tanto, o Poder Público se reveste da Execução Fiscal, de modo que já se tornou lugar comum afirmar que o Estado é superprivilegiado em sua condição de credor. Dispõe de varas comumente especializadas para condução de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas causas, e possui lei própria regedora do procedimento (Lei 6.830⁄1980), com privilégios processuais irredarguíveis. Para se ter uma ideia do que o Poder Público já possui privilégios ex ante, a execução só é embargável mediante a plena garantia do juízo (art. 16, § 1o. da LEF), o que não encontra correspondente na execução que se pode dizer comum. Como se percebe, o crédito fiscal é altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental.
14. Não se esqueça, ademais, que, muito embora cuide o presente caso de direito regressivo exercido pela Municipalidade em Execução Fiscal (caráter não tributário da dívida), sempre é útil registrar que o crédito tributário é privilegiado (art. 184 do Código Tributário Nacional), podendo, se o caso, atingir até mesmo bens gravados como impenhoráveis, por serem considerados bem de família (art. 3o., IV da Lei 8.009⁄1990). Além disso, o crédito tributário tem altíssima preferência para satisfação em procedimento falimentar (art. 83, III da Lei de Falências e Recuperações Judiciais – 11.101⁄2005). Bens do devedor podem ser declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do Código Tributário Nacional). São providências que não encontram paralelo nas execuções comuns.
15. Nesse raciocínio, é de imediata conclusão que medidas atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para dirigir, não se firmam placidamente no Executivo Fiscal. A aplicação delas, nesse contexto, resulta em excessos.
16. Excessos por parte da investida fiscal já foram objeto de severo controle pelo Poder Judiciário, tendo a Corte Suprema registrado em Súmula que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos (Súmula 323⁄STF).
17. Na espécie, consoante relata o ato apontado como coator, trata-se de Execução Fiscal manejada pela Fazenda do Município de Foz do Iguaçu⁄PR em desfavor do ora Paciente, então Prefeito da urbe paranaense, a partir da qual visa à satisfação de crédito como direito de regresso, uma vez que a Municipalidade fora condenada à restituição de dano ao Erário como sanção aplicada pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná (débitos trabalhistas com origem em contratação ilegal de funcionários terceirizados, contratações essas ordenadas pelo então Alcaide, ora Paciente). O caderno aponta que o valor histórico do crédito vindicado é de R$ 24.645,53 (fls. 114).
18. O TJ⁄PR deu provimento a recurso de Agravo de Instrumento interposto pelo Município de Foz do Iguaçu⁄PR contra a decisão de Primeiro Grau que indeferiu o pedido de medidas aflitivas de inscrição do nome do executado em cadastro de inadimplentes, de suspensão do direito de dirigir e de apreensão do passaporte. O acórdão do TJ⁄PR, ora apontado como ato coator, deferiu as indicadas medidas no curso da Execução Fiscal.
19. Ao que se dessume do enredo fático-processual, a medida é excessiva. Para além do contexto econômico de que se lançou mão anteriormente, o que, por si só, já justificaria o afastamento das medidas adotadas pelo Tribunal Araucariano, registre-se que o caderno processual aponta que há penhora de 30% dos vencimentos que o réu aufere na Companhia de Saneamento do Paraná-SANEPAR. Além disso, rendimentos de sócio-majoritário que o executado possui na Rádio Cultura de Foz do Iguaçu Ltda.-EPP também foram levados a bloqueio (fls. 163⁄164).
20. Submeteu-se o réu à notória restrição constitucional do direito de ir e vir num contexto de Execução Fiscal já razoavelmente assegurada, pelo que se dessume da espécie.
21. Assinale-se como de altíssima nomeada para o caso o art. 22 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao estabelecer, nos seus itens 1 e 2, que toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir conformidade com as disposições legais, bem como toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio.
22. Frequentemente, tem-se visto a rejeição à ordem de Habeas Corpus sob o argumento de que a limitação de CNH não obstaria o direito de locomoção, por existir outros meios de transporte de que o indivíduo pode se valer. É em virtude dessa linha de pensamento que a referência ao Pacto de São José da Costa Rica se mostra crucial, na medida em que a existência de diversos meios de deslocamento não retira o fato de que deve ser amplamente garantido ao cidadão exercer o direito de circulação pela forma que melhor lhe aprouver, pois assim se efetiva o núcleo essencial das liberdades individuais, tal como é o direito e ir e vir.
23. Cumpre registrar que a opinião do douto parecer do Ministério Público Federal é por conceder-se o remédio constitucional, sob a premissa de que, apresentada a questão com tais contornos, estritamente atrelada ao arcabouço probatório encartado nos autos, não há outra possibilidade senão reconhecer que, não sendo a medida restritiva adequada e necessária, ainda que sob o escudo da busca pela efetivação da legítima Execução Fiscal promovida originariamente, a sua efetivação tornou-se contrária à ordem jurídica, porquanto adentrou demasiadamente na esfera pessoal, e não patrimonial, do executado⁄impetrante, configurando, certamente, ato punitivo, não constritivo, atentando, portanto, contra a sua liberdade de ir e vir (fls. 262⁄264). O Paciente está a merecer, em confirmação da medida liminar, a tutela da liberdade de ir a vir pelo remédio de Habeas Corpus.
24. Parecer do MPF pela concessão da medida. Habeas Corpus concedido em favor do Paciente, confirmando-se a medida liminar anteriormente concedida, apta a determinar sejam excluídas as medidas atípicas constantes do aresto do TJ⁄PR apontado como coator (suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, apreensão do passaporte).
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): HC 453870