Para a 3ª Turma, a situação caracteriza dano existencial.
A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho condenou a Souza Cruz S.A. ao pagamento de indenização por dano moral a um motorista por exigir dele o cumprimento de jornada excessiva. De acordo com o processo, ele chegava a trabalhar quase 15 horas por dia. Por maioria, a Turma entendeu configurado o dano existencial e arbitrou a reparação em R$ 50 mil.
Rastreador
Na reclamação trabalhista, o motorista disse que quase não tinha tempo para refeição e descanso e que as jornadas eram longas e excessivas, com poucas pausas e excesso de controle. Segundo ele, como o veículo era equipado com rastreador, a empresa tinha controle da saída dos motoristas, que deveriam comunicar caso o caminhão ficasse parado por mais de 20 minutos.
Em sua defesa, a Souza Cruz considerou “descabida e inverídica” a jornada descrita pelo empregado. Segundo ela, os clientes (mercados, bares e restaurantes) só aceitam receber mercadoria entre as 7h e as 17h. A empresa argumentou ainda que o empregado, como motorista de entrega, exercia seu trabalho sem qualquer fiscalização e fazia seu próprio horário. Em relação ao dano existencial, sustentou que não fora comprovado pelo empregado que a jornada prejudicasse seu convívio familiar e social.
Dignidade humana
Para o juízo da 57ª Vara do Trabalho de São Paulo, ficou demonstrado que o motorista sofria limitações em sua vida fora do ambiente de trabalho, o que feria o princípio da dignidade humana. Com isso, condenou a empresa ao pagamento de R$ 50 mil a título de indenização.
Entretanto, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo) reformou a sentença para excluir a indenização. Segundo o TRT, o dano existencial deveria ter sido comprovado mediante a indicação objetiva e clara de ao menos um projeto de vida que teria sido frustrado em razão das condições de trabalho.
Limites
No exame do recurso de revista, o relator, ministro Mauricio Godinho Delgado, considerou que o fato de o empregado trabalhar quase 15 horas por dia, conforme registrado pelo TRT, mostra que ele era submetido a “reiterada e contínua jornada extenuante, muito acima dos limites legais”. Segundo o relator, a situação caracteriza o dano existencial, pois consiste em lesão ao tempo razoável e proporcional, assegurado pela ordem jurídica, à pessoa humana do trabalhador, para que possa se dedicar às atividades individuais, familiares e sociais inerentes a todos os indivíduos.
O recurso ficou assim ementado:
A) AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017 . DANO EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO EXCESSIVA, CONTÍNUA E DESARRAZOADA DE HORAS EXTRAS. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. Demonstrado no agravo de instrumento que o recurso de revista preenchia os requisitos do art. 896 da CLT, dá-se provimento ao agravo de instrumento para melhor análise da alegada violação do art. 927 do CCB. Agravo de instrumento provido.
B) RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017 . DANO EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO EXCESSIVA, CONTÍNUA E DESARRAZOADA DE HORAS EXTRAS. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. O excesso de jornada extraordinária, para muito além das duas horas previstas na Constituição e na CLT, cumprido de forma habitual e por longo período , tipifica, em tese, o dano existencial, por configurar manifesto comprometimento do tempo útil de disponibilidade que todo indivíduo livre, inclusive o empregado, ostenta para usufruir de suas atividades pessoais, familiares e sociais. A esse respeito é preciso compreender o sentido da ordem jurídica criada no País em cinco de outubro de 1988 (CF/88). É que a Constituição da República determinou a instauração, no Brasil, de um Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF), composto, segundo a doutrina, de um tripé conceitual: a pessoa humana, com sua dignidade; a sociedade política, necessariamente democrática e inclusiva; e a sociedade civil, também necessariamente democrática e inclusiva ( Constituição da República e Direitos Fundamentais – dignidade da pessoa humana, justiça social e Direito do Trabalho . 3ª ed. São Paulo: LTr, 2015, Capítulo II). Ora, a realização dos princípios constitucionais humanísticos e sociais (inviolabilidade física e psíquica do indivíduo; bem-estar individual e social; segurança das pessoas humanas, ao invés de apenas da propriedade e das empresas, como no passado; valorização do trabalho e do emprego; justiça social; subordinação da propriedade à sua função social, entre outros princípios) é instrumento importante de garantia e cumprimento da centralidade da pessoa humana na vida socioeconômica e na ordem jurídica, concretizando sua dignidade e o próprio princípio correlato da dignidade do ser humano. Essa realização tem de ocorrer também no plano das relações humanas, sociais e econômicas, inclusive no âmbito do sistema produtivo, dentro da dinâmica da economia capitalista, segundo a Constituição da República Federativa do Brasil. Dessa maneira, uma gestão empregatícia que submeta o indivíduo a reiterada e contínua jornada extenuante, que se concretize muito acima dos limites legais, ( o autor praticava jornada extraordinária de forma habitual, chegando a trabalhar 14 horas e 30 minutos diários , conforme registrado pelo TRT ), em dias sequenciais, agride todos os princípios constitucionais acima explicitados e a própria noção estruturante de Estado Democrático de Direito. Se não bastasse, essa jornada gravemente excessiva reduz acentuadamente e de modo injustificável, por longo período, o direito à razoável disponibilidade temporal inerente a todo indivíduo, direito que é assegurado pelos princípios constitucionais mencionados e pelas regras constitucionais e legais regentes da jornada de trabalho. Tal situação anômala deflagra, assim, o dano existencial, que consiste em lesão ao tempo razoável e proporcional, assegurado pela ordem jurídica, à pessoa humana do trabalhador, para que possa se dedicar às atividades individuais, familiares e sociais inerentes a todos os indivíduos, sem a sobrecarga horária desproporcional, desarrazoada e ilegal, de intensidade repetida e contínua, em decorrência do contrato de trabalho mantido com o empregador. Logo, configurada essa situação no caso dos autos, em que a jornada de trabalho do Autor foi avaliada, em média, em 14 horas e 30 minutos diários, não há dúvida sobre a necessidade de reparação do dano moral sofrido, devendo ser condenada a Reclamada ao pagamento de uma indenização. Recurso de revista conhecido e provido.
Contra a decisão, a Souza Cruz opôs embargos de declaração, que também foram rejeitados.
Processo: RR-1000993-77.2017.5.02.0057