A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), considerando que a única prova sobre a autoria do crime foi um depoimento colhido em inquérito, anulou uma condenação por homicídio e despronunciou o réu. Por unanimidade, o colegiado entendeu que não é possível admitir a pronúncia do acusado sem provas produzidas em juízo.
“Não havia prova idônea para fundamentar a decisão dos jurados, porquanto nada foi produzido em juízo, sob o crivo do contraditório, para sustentar a versão acusatória. Não foram arroladas testemunhas, e o réu, em seu interrogatório, negou as imputações feitas a ele”, observou o relator do recurso, ministro Rogerio Schietti Cruz.
O réu foi denunciado e pronunciado por supostamente ter esfaqueado a vítima após beberem e discutirem. No inquérito, a companheira da vítima teria dito que ela mencionou o nome do agressor antes de morrer. Contudo, em juízo – tanto na primeira quanto na segunda fase do procedimento do tribunal do júri –, essa testemunha não foi ouvida, e nenhum outro depoimento foi tomado.
Mesmo assim, os jurados condenaram o réu a seis anos de reclusão, por homicídio simples (artigo 121, caput, do Código Penal). O Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) negou o recurso da defesa por entender que a condenação não foi contrária às provas dos autos.
Controvérsia diz respeito à admissibilidade da prova
Ao STJ, o réu pleiteou novo julgamento, alegando que a decisão dos jurados não teve respaldo nos autos, ante a ausência de prova judicializada que comprovasse a versão do Ministério Público, e que o acórdão do TJAM violou os artigos 155 e 593, inciso III, alínea d, e parágrafo 3º, do Código de Processo Penal.
Para o ministro Rogerio Schietti, a questão diz respeito à admissibilidade da prova. Não se trata de discutir se a condenação foi ou não contrária às provas – acrescentou –, mas de reconhecer que a decisão não poderia ter sido tomada apenas com apoio em indícios colhidos no inquérito policial, não confirmados em juízo.
O magistrado explicou que a instrução na primeira fase do procedimento do júri existe para que só sejam submetidos ao julgamento popular os casos em que houver a comprovação da materialidade do crime e indícios suficientes de autoria.
Segundo ele, os elementos de informação produzidos na fase investigatória, sem a participação das partes, não podem, isoladamente, subsidiar a sentença de pronúncia (que manda o réu ao júri popular), muito menos uma condenação.
Nulidade absoluta antes mesmo do veredito
Schietti lembrou que esse era o entendimento da Sexta Turma até 2017, quando ele ficou vencido em um julgamento. Desde então, as duas turmas penais do STJ se alinharam na posição de que as provas do inquérito podiam ser suficientes para embasar a pronúncia.
Só em fevereiro deste ano, no julgamento do HC 589.270, acompanhando recente orientação do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, a Sexta Turma voltou a considerar indispensáveis para a pronúncia os indícios apurados sob o contraditório na fase judicial.
Embora a defesa tenha pedido um novo julgamento, o relator concluiu que houve nulidade absoluta antes mesmo do veredito do conselho de sentença, o que impõe a anulação do processo desde a sentença de pronúncia – a qual, segundo ele, “já foi manifestamente despida de legitimidade”. Em seu voto, o ministro apontou, porém, que é possível a apresentação de nova denúncia contra o réu, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, desde que surja uma nova prova.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO. SÚMULA N. 284 DO STF. DISPOSITIVO APONTADO COMO VIOLADO DISSOCIADO DAS RAZÕES RECURSAIS. TRIBUNAL DO JÚRI. ART. 593, III, “D”, e § 3º, DO CPP. AUSÊNCIA DE PROVAS JUDICIALIZADAS PARA SUSTENTAR A AUTORIA. ELEMENTOS DE INFORMAÇÃO EXCLUSIVAMENTE PRODUZIDOS NO INQUÉRITO POLICIAL. ART. 155 DO CPP VIOLADO. PRONÚNCIA INCABÍVEL. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E PROVIDO
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Não há como conhecer do especial em que a parte aponta como violado dispositivo legal com conteúdo normativo dissociado da tese formulada nas razões recursais, por desdobramento da Súmula n. 284 do STF. Na espécie, a defesa indicou a infringência do art. 3º-A do CPP – o qual reforça o princípio acusatório no processo penal –, mas sustentou que a decisão dos jurados não encontra respaldo nos autos, ante a ausência de prova judicializada que comprove a versão do Ministério Público, matéria que não se relaciona à afronta do referido preceito legal. Assim, não há como conhecer integralmente do recurso.
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O recente entendimento adotado pela Sexta Turma do STJ, firmado com observância da atual orientação do Supremo Tribunal Federal, é de que não se pode admitir a pronúncia do réu, dada a sua carga decisória, sem qualquer lastro probatório produzido em juízo, fundamentada exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase inquisitorial.
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Na hipótese, o ora recorrente foi pronunciado e condenado por homicídio, mas o único elemento dos autos que corrobora a tese acusatória acerca da autoria é um depoimento colhido na fase de inquérito. Em juízo, tanto na primeira quanto na segunda fase do procedimento do Tribunal do Júri, essa testemunha não foi ouvida e nenhum outro depoimento se produziu. Além disso, o acusado, em seu interrogatório, negou as imputações feitas a ele.
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A constatação de evidente vulneração ao devido processo legal, a incidir na inobservância dos direitos e das garantias fundamentais, habilita o reconhecimento judicial da patente ilegalidade, sobretudo quando ela enseja reflexos no próprio título condenatório. A decisão de pronúncia foi manifestamente despida de legitimidade, sobretudo porque, na espécie, o réu foi submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri com base exclusivamente em elementos informativos produzidos no inquérito e não confirmados em juízo.
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A solução mais acertada para o presente caso é não apenas desconstituir o julgamento pelo Conselho de Sentença, como também anular o processo desde a decisão de pronúncia – pois não havia como submeter o recorrente ao Tribunal do Júri com base em uma declaração colhida no inquérito policial e não corroborada em juízo – e impronunciar o acusado.
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Recurso especial parcialmente conhecido e provido, a fim de anular o processo desde a decisão de pronúncia e impronunciar o recorrente.
Leia o acórdão no REsp 1.932.774.