Diante dos eventos climáticos extremos vividos neste 2023 e de previsões de impactos ainda mais intensos em 2024, a preservação do meio ambiente se firma entre as maiores preocupações mundiais, convidando cada um a refletir sobre a própria responsabilidade nesse tema. O cumprimento dos deveres individuais e coletivos em favor do desenvolvimento sustentável, fruto da consciência sobre o direito desta e das futuras gerações a um ambiente saudável e equilibrado, tem nome: cidadania ambiental.
A proteção do meio ambiente é uma das faces do exercício da cidadania.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o meio ambiente ecologicamente equilibrado foi erguido ao patamar de um verdadeiro direito fundamental. Na esteira das diretrizes constitucionais, surgiram diversas leis que disciplinam temas sobre o meio ambiente, como a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997) e o Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012).
Apesar da proteção garantida tanto pela CF/88 quanto pelas leis dela derivadas, o meio ambiente continua sob constante ameaça, em razão de atividades humanas descontroladas, que geram poluição, desmatamento, comprometimento do acesso à água, perda de biodiversidade e mudanças no clima. Nesse contexto, entre o direito assegurado na Carta Magna e a sua efetivação, há o Poder Judiciário e o seu papel de guardião do interesse público.
Esta terceira matéria da série especial Faces da Cidadania mostra como a construção de um futuro sustentável também passa pelos precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Constituição elevou o meio ambiente ao ápice do sistema normativo
Reconhecido internacionalmente por seu preparo técnico e sua atuação no ramo do direito ambiental, o ministro do STJ Herman Benjamin participou da construção de uma jurisprudência positiva para as presentes e as futuras gerações de brasileiros. Sua presença é constante em eventos que discutem problemas ambientais, a exemplo do debate sobre a busca de soluções para a poluição plástica no Brasil organizado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).
O ministro destacou que, embora a política ambiental brasileira já exista desde a promulgação da Lei 6.938/1981 – que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente –, a CF/88 elevou o tema ao ápice do sistema normativo. “Isso, por si só, já seria extraordinário, mas o constituinte incluiu uma série de dispositivos tratando da função ecológica da propriedade, dos deveres do Estado, dos instrumentos de tutela do meio ambiente. Ou seja, é um texto muito avançado”, declarou.
Além disso, Herman Benjamin apontou que, por ser uma das constituições mais minuciosas no tratamento da questão ambiental, a CF/88 facilitou o trabalho do Congresso Nacional e da administração pública e gerou impactos positivos no Poder Judiciário.
CF/88 incorporou princípios ecológicos ao sistema legal do Brasil
De acordo com o mestre em direito ambiental Fabricio Soler – advogado especializado em direito do ambiente e direito dos resíduos e ex-presidente da Comissão de Direito da Energia da seção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Paulo –, a Constituição de 1988 é um marco para o direito ambiental. O especialista explicou que, com ela, foi instituído um novo paradigma no campo ambiental, em que o Estado passou a ter objetivos e deveres de proteção e a coletividade passou a ter o direito e o dever de tutelar e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Soler apontou que a CF foi responsável pela incorporação de princípios ecológicos no sistema legal do país, a exemplo do artigo 225, que, além de explicitar uma forte preocupação com a sustentabilidade e o uso racional dos recursos naturais, tratou a proteção do meio ambiente, para as presentes e as futuras gerações, como um fundamento da nova ordem jurídica.
Por outro lado, o advogado destacou que, ao estabelecer os princípios da ordem econômica, o artigo 170 da CF incluiu a defesa do meio ambiente como um dos valores que devem nortear a atividade produtiva no país. “Assim, a Constituição de 1988 não apenas consagrou a proteção ambiental como um direito fundamental, mas também a integrou às bases econômica e social do país”, disse ele.
Tríplice responsabilização do agente poluidor por danos ambientais
O advogado Luís Gustavo Lazzarini, doutor em direito ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ressaltou que a CF/88 trouxe a exigência expressa de estudos de impacto ambiental no licenciamento de obras ou atividades que tenham potencial de causar degradação do meio ambiente, em atenção ao princípio da prevenção.
Além disso, Lazzarini comentou que, com a CF/88, passou-se a discutir de forma ampla a tríplice responsabilização do agente poluidor por danos ambientais (civil, administrativa e criminal), o que, segundo ele, reforça a prevenção e a reparação dos prejuízos ao meio ambiente, ao evitar a impunidade e estimular o comportamento ambientalmente positivo.
“Mais recentemente, a CF/88 foi alterada por emenda para incluir, entre os instrumentos para a efetivação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, a possibilidade de criação de regime fiscal favorecido para os biocombustíveis, a fim de assegurar-lhes tributação inferior àquela incidente sobre os combustíveis fósseis. Trata-se de importante sinalização da CF/88 para o enfrentamento de um grande problema, que são as mudanças climáticas e a necessidade de redução das emissões de gases de efeito estufa”, declarou.
O impacto da jurisprudência do STJ na consolidação da legislação ambiental
O ministro Herman Benjamin ressaltou que o STJ foi muito importante na fixação de centenas de precedentes nas mais variadas áreas ligadas ao meio ambiente: mineração, oceanos, meio ambiente urbano e rural, meio ambiente cultural, fauna, manguezais. “De uma maneira geral, o STJ, em suas três seções, tem grande sensibilidade para a questão ambiental” afirmou.
Ele ponderou que, antes da sua chegada ao STJ, vários outros ministros contribuíram para a construção de uma jurisprudência que dá efetividade a deveres e direitos fundamentais, a exemplo da ministra Eliana Calmon e dos ministros Franciulli Netto, José Delgado, Teori Zavascki e Luiz Fux.
Nesse mesmo sentido, o advogado Luís Gustavo Lazzarini comentou que a jurisprudência do STJ exerce papel essencial na efetivação de deveres e direitos ambientais, uma vez que o tribunal é responsável pela interpretação e pela harmonização da legislação federal.
Entre as decisões de maior repercussão no mundo jurídico, o advogado citou o julgamento do Incidente de Assunção de Competência (IAC) 13, em que a Primeira Seção fixou teses que consagraram o direito à informação ambiental e a obrigação do Estado com a transparência. Segundo Lazzarini, a publicidade é “direito fundamental para a efetivação da cidadania ambiental”.
A preocupação da corte com a responsabilização pelo dano ambiental
Tanto Luís Gustavo Lazzarini quanto Fabricio Soler ressaltaram que, nos últimos 35 anos, o STJ se preocupou em firmar uma jurisprudência sólida sobre a responsabilização pelo dano ambiental.
Em vários julgados, a corte consolidou o entendimento de que a responsabilidade civil pela reparação do dano acompanha a propriedade (obrigação propter rem), o que permite exigi-la do atual dono da área, mesmo que os danos tenham sido causados pelo proprietário anterior. Esse entendimento levou à edição da Súmula 623.
Recentemente, no julgamento do Tema 1.204 dos recursos repetitivos, o tribunal reafirmou que as obrigações ambientais têm natureza propter rem, dando à tese o peso de um precedente qualificado, aplicável a todos os processos que discutam a mesma questão. Em seu voto, a relatora, ministra Assusete Magalhães, enfatizou que as obrigações ambientais podem ser cobradas do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores ou de ambos, “ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente”.
Segundo a ministra, o atual titular que se mantém inerte em relação à degradação ambiental, ainda que preexistente, também comete ato ilícito, pois as áreas de preservação permanente e a reserva legal são “imposições genéricas, decorrentes diretamente da lei”, e “pressupostos intrínsecos ou limites internos do direito de propriedade e posse”.
Responsabilidade administrativa tem natureza subjetiva
Fabricio Soler destacou, porém, que, conforme a decisão da Segunda Turma no REsp 1.251.697, a aplicação de penalidades administrativas não segue a mesma lógica da responsabilidade objetiva da esfera cível. Enquanto a responsabilidade civil pela reparação do dano pode ser atribuída ao proprietário atual que não o causou, a multa administrativa pela degradação do meio ambiente só pode ser aplicada ao efetivo causador do dano. Para o advogado, essa decisão foi “precursora no reconhecimento de que a responsabilidade administrativa ambiental é de natureza subjetiva”.
No julgamento do Tema 1.159 dos recursos repetitivos, o STJ fixou a tese de que a validade das multas administrativas por infração ambiental, previstas na Lei 9.605/1998, independe da prévia aplicação da penalidade de advertência.
No caso, a relatora, ministra Regina Helena Costa, ponderou que a Lei 9.605/1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente, não estabeleceu nenhuma ordem hierárquica entre as penalidades administrativas, previstas no seu artigo 72. Para a ministra, não há previsão legal expressa que condicione a validade da aplicação da multa à prévia imposição da advertência.
Ao falar sobre a jurisprudência da corte no direito ambiental, Luís Gustavo Lazzarini enalteceu também a tese estabelecida no REsp 1.145.083, segundo a qual a reparação integral do dano ambiental na esfera civil deve compreender a restituição, ao patrimônio público, do proveito econômico do agente com a atividade degradadora – a chamada mais-valia ecológica, que o empreendedor indevidamente auferiu com a ação degradadora.
Lazzarini mencionou ainda as diversas súmulas editadas pelo STJ em matéria ambiental, como a Súmula 652, a Súmula 613 e a Súmula 618.
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Reciclus: implementando o sistema de logística reversa de lâmpadas com mercúrio
A cidadania ambiental exige educação e conscientização das pessoas sobre seu papel no esforço pelo desenvolvimento sustentável, que pode começar com as coisas mais corriqueiras da vida. Até na hora de trocar uma lâmpada.
Criada a partir da assinatura da Lei 12.305/2010 – que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) – e de um acordo setorial firmado com o Ministério do Meio Ambiente, a Reciclus é uma associação sem fins lucrativos gestora da logística reversa de lâmpadas no Brasil.
Camilla Horizonte, gerente de operações e marketing da associação, explica que ela operacionaliza a logística reversa das lâmpadas que contém mercúrio, disponibilizando pontos de coleta em todo o Brasil, para que os produtos usados possam ser descartados de maneira segura, transportados e destinados corretamente em recicladores homologados.
Segundo Camilla, a Reciclus estimula os consumidores a não descartarem lâmpadas no lixo comum. Confira os pontos de descarte na sua cidade pelo site da Reciclus.
A gerente também destacou que o trabalho da entidade promove uma economia circular, em que a lâmpada descartada retorna para o setor produtivo como matéria-prima, otimizando a produtividade de recursos e minimizando os riscos sistêmicos.
Esse processo ainda evita a extração de novos recursos naturais. De acordo com o site da Reciclus, a reciclagem de mil quilos de alumínio evita aproximadamente o uso de 5 mil quilos de bauxita. Da mesma forma, mil quilos de vidro reciclado evitam a extração de 1,3 mil quilos de areia; e 10 mil quilos de plástico reciclado evitam a extração de 1,01 quilo de petróleo.
O que se faz como cidadão reflete no meio ambiente
Camilla Horizonte observou que um dos maiores desafios da entidade é promover a conscientização dos cidadãos em relação aos resíduos perigosos, como lâmpadas, pneus e óleos lubrificantes. Segundo ela, toda unidade gestora de resíduos perigosos deve ter a missão de conscientizar as pessoas sobre duas coisas: “Tudo aquilo que a gente faz como cidadão volta para a gente, e existem consequências no meio ambiente que não são imediatas, mas futuras”.
A gerente comentou que o resíduo perigoso, se descartado em lixo comum, pode ir parar em um lixão a céu aberto ou em qualquer outro lugar, passando a contaminar solo, rios, ar e, consequentemente, alimentos como vegetais ou peixes. Para ela, todos têm responsabilidade diante do meio ambiente, e “cada um tem que entender o seu papel como cidadão”.
Reciclus Educa: educação ambiental para crianças e jovens
Foi a partir desse objetivo de conscientizar a população que a associação lançou o programa Reciclus Educa, expressando seu compromisso de contribuir para a educação ambiental, especialmente de crianças e jovens.
O programa oferece, gratuitamente, materiais educativos sobre educação ambiental para professores e alunos de escolas públicas e privadas, desenvolvidos pelo professor Samuel Cunha, que tem um canal de biologia no YouTube com mais de 1 milhão de inscritos. Para ter acesso aos materiais de apoio, basta preencher o formulário no site da Reciclus Educa.
Por meio de parcerias regionais, o programa foi expandido e vem se consolidando em todo o Brasil. Em abril de 2022, o Reciclus Educa realizou, em parceria com a Secretaria de Educação do Município de Antônio Carlos (SC) e com o programa Penso, Logo Destino, do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA-SC), uma iniciativa piloto de educação ambiental, que envolveu 410 alunos do primeiro ao quinto ano do ensino fundamental.
Após o recebimento de cartilhas e orientações produzidas pela Reciclus e pelo IMA-SC, o município promoveu várias ações para crianças e pais, voltadas para a educação ambiental.
Em parceria com a Reciclus, a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, seção São Paulo (Abes-SP), elaborou a Cartilha do Bem: Aprendendo a Cuidar do Meio Ambiente, uma reedição da cartilha de PNRS para crianças e jovens, que foi integrada à campanha de conscientização DiadeSol 2022.
Promovida pela Abes-SP e pela Associação Interamericana de Engenharia Sanitária e Ambiental (Aidis), a campanha – alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 das Nações Unidas – busca incentivar o público estudantil a refletir sobre o problema dos resíduos sólidos e seus impactos no meio ambiente e na saúde.