Para a SDC, houve extrapolação do poder de regular as questões coletivas de trabalho.
A Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC) do Tribunal Superior do Trabalho anulou cláusulas da convenção coletiva firmada entre o Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias (Snea) e o Sindicato Nacional dos Aeronautas (SNA) que excluíam da base de cálculo das vagas para aprendizes e pessoas com deficiência os aeronautas (chefes de cabine, pilotos, copilotos e comissários). De acordo com a SDC, a norma coletiva extrapolou o poder de regular as questões coletivas de trabalho, avançando sobre direitos difusos, de toda a sociedade, e indisponíveis.
Ordem pública
O Ministério Público do Trabalho (MPT), ao pedir a anulação das cláusulas da convenção coletiva 2017/2018, sustentou que a legislação sobre a matéria (artigo 93 da Lei 8.213/1991 e 9º do Decreto 5.598/2005) reúne normas de ordem pública, que não podem ser objeto de negociação coletiva para fins de redução de direitos. Por outro lado, segundo os sindicatos, a restrição decorria da impossibilidade, prevista em regulamentos do setor, de que pessoas com deficiência ou aprendizes exerçam as atribuições da categoria.
Restrição de direito
Como questão preliminar levantada pelos sindicatos, a relatora, ministra Kátia Arruda, afastou a aplicação ao caso do entendimento do Supremo Tribunal Federal (Tema 1046 de repercussão geral) sobre a validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente. Segundo ela, o próprio STF já decidiu que a controvérsia jurídica em torno do cumprimento das cotas de aprendizes e pessoas com deficiência tem natureza constitucional.
A relatora assinalou, ainda, que a norma coletiva em discussão vigorou já na vigência da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), que, por sua vez, considera que as medidas de proteção legal de crianças e adolescentes (artigo 611-B, inciso XXIV, da CLT) não podem ser objeto de convenção coletiva, o que inclui as cotas de aprendizagem.
Direitos difusos
Sobre a limitação da contratação de pessoas com deficiência, a ministra afirmou que a cláusula transpassou o interesse coletivo das categorias representadas, para alcançar e regular direito difuso dissociado das condições de trabalho dos empregados. Trata-se, segundo ela, de matéria de ordem e de políticas públicas. A seu ver, a cláusula, ao limitar direito de pessoas com deficiência, tratou de matéria estranha à relação entre empregado e empregador.
Limites
De acordo com a relatora, a vontade manifestada em acordo ou convenção coletiva de trabalho encontra limite nas normas que tratam de direitos absolutamente indisponíveis. Ela destacou que o artigo 93 da Lei 8.213/1991 e o 141 do Decreto 3.048/1999, que estabelecem o percentual de cargos a serem ocupados por empregados com deficiência ou beneficiários da previdência reabilitados, não estabelecem ressalva ou exceção de cargos ou atividades. “A base de cálculo deve considerar a totalidade dos empregados contratados pela empresa”, concluiu.
Segurança
Quanto à segurança nas operações aeroviárias, a relatora frisou que esse quesito não é afetado, pois a cota de pessoas com deficiência pode ser facilmente cumprida nos quadros administrativos das empresas. “Obviamente, não se exige a atuação de trabalhador sem a devida competência técnica para operar as aeronaves”, observou. “Porém, existe uma série de funções na cadeia da atividade econômica desenvolvida pelas empresas aéreas que, com tranquilidade, é capaz de absorver a mão de obra dessas pessoas, na forma da lei”.
Aprendizes
Para a relatora, a cláusula que trata da contratação de aprendizes também ultrapassa o interesse privado passível de negociação e, portanto, não deve constar em instrumento coletivo autônomo.
O recurso ficou assim ementado:
AÇÃO ANULATÓRIA. CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO FIRMADA ENTRE O SINDICATO NACIONAL DAS EMPRESAS AEROVIÁRIAS E O SINDICATO NACIONAL DOS AERONAUTAS. 1. CONTROVÉRSIA JURÍDICA QUE GIRA EM TORNO DO CUMPRIMENTO DAS COTAS DE CONTRATAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E APRENDIZES. PREVISÃO EM CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DE SUPRESSÃO DE FUNÇÕES PARA COMPOSIÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. NÃO APLICABILIDADE AO CASO CONCRETO DO QUE DECIDIDO NO AGRAVO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.121.633 (TEMA 1.046 DA REPERCUSSÃO GERAL). A 1ª Turma da Suprema Corte decidiu, no julgamento da RCL 40.013 AGR/MG, que a controvérsia jurídica que gira em torno do cumprimento das cotas para a contratação de aprendizes e pessoas com deficiência tem assento constitucional previsto nos arts. 7º, XXXI, 203, IV, e 227, caput e § 1º, II. Dessa forma, concluiu que a referida matéria não está abarcada pelo Tema 1046 da Repercussão Geral (Validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente). 2. PEDIDO DE INGRESSO NA DEMANDA NA QUALIDADE DE AMICUS CURIAE. A CEBRASSE – Central Brasileira do Setor de Serviços postula ingresso nesta demanda na condição de amicus curiae. Conforme o ordenamento jurídico vigente e a jurisprudência desta Corte, é bastante restrita a legitimidade para atuação em ação anulatória de instrumento normativo autônomo. No caso, não vislumbro necessidade e pertinência para o ingresso da requerente na demanda na qualidade de Amicus Curiae. Indefere-se o pedido. 3. CLÁUSULA 3.1.19 – CONTRATAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA. A norma impugnada encontra-se fixada em instrumento normativo que vigorou pelo período de 1/12/2017 a 30/11/2018, portanto, já na vigência da Lei nº 13.467/2017. Quando instada pela via da ação anulatória, compete à Justiça do Trabalho, por meio dos seus Tribunais, apreciar o teor das normas firmadas em instrumento normativo autônomo, à luz do ordenamento jurídico vigente. E, se for o caso, extirpar do diploma negociado pelos seres coletivos as regras que retiram direitos assegurados por norma estatal de caráter indisponível. O art. 7º, XXVI, da Constituição Federal de 1988, assegura o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, que são elaborados e firmados pelos entes coletivos. A autonomia de vontade dos seres coletivos, manifestada mediante os instrumentos normativos autônomos, encontra limite nas normas heterônomas de ordem cogente, que tratam de direitos de indisponibilidade absoluta e normas constitucionais de ordem e de políticas públicas. O art. 611 da CLT dispõe que “Convenção Coletiva de Trabalho é o acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho” Efetivamente, a autonomia coletiva dos sindicatos, assegurada pela Carta Magna, abrange a elaboração de normas de natureza coletiva, atinentes às condições aplicadas no âmbito das relações bilaterais de trabalho. No caso, a primeira questão que deve ser examinada nesta ação anulatória é se a matéria objeto da cláusula tem natureza coletiva. Observa-se que, ao excluir os aeronautas do cômputo na base de cálculo da cota prevista no artigo 93, da lei nº 8.213/91 e artigo 141, do Decreto nº 3.048/99, a norma impugnada trata de matéria que envolve interesse difuso (direito indivisível em que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato), no caso, interesse das pessoas com deficiência. Ou seja, a regra ora atacada transpassa o interesse coletivo das categorias representadas, para alcançar e regular direito difuso, tratando-se, inclusive, de matéria de ordem e de políticas públicas, e, por isso, não é passível de regulação pela via da negociação coletiva. Há, portanto, flagrante violação do art. 611 da CLT, que autoriza a pactuação de instrumento normativo autônomo (convenção coletiva de trabalho) entre dois ou mais sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais, a fim de fixar condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho. Nessa condição, contata-se que a cláusula não atende os requisitos de validade estabelecidos no art. 104 do CCB, notadamente quanto à falta da capacidade dos agentes convenentes, para consentir e de dar função à regra, cujo objeto, repita-se, ultrapassa os interesses coletivos das categorias representadas, avançando sobre interesse de caráter difuso, que não são passíveis de negociação coletiva. Esta SDC já se pronunciou algumas vezes no sentido de declarar a nulidade de cláusula que trata de matéria estranha ao âmbito das relações bilaterais de trabalho, por afronta ao art. 611 da CLT (há julgados da SDC). Acrescente-se que, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proibição de discriminação no tocante ao salário e aos critérios de admissão do trabalhador com deficiência (art. 7º, XXXI, da CF), da isonomia (art. 5º, “caput”, da CF) e da valorização do trabalho (art. 170, III, da CF), a jurisprudência desta Corte Superior orienta-se no sentido de que o art. 93 da Lei nº 8.213/91, estabeleceu cota mínima para contratação de pessoas com deficiência ou reabilitados pela Previdência Social com base no percentual de incidência sobre o número total de empregados da empresa, não estabelecendo nenhuma ressalva ou exceção de cargos ou atividades para o cômputo do cálculo. Nessa perspectiva, forçoso declarar a nulidade da norma. Julga-se procedente esta ação anulatória, a fim de declarar nula a Cláusula 3.1.19 da Convenção Coletiva de Trabalho da Aviação Regular – 2017/2018 – SNA/SNEA – registro no MTE Nº MR085025/2017. 4. CLÁUSULA 3.1.20. APRENDIZ. O art. 7º, XXVI, da Constituição Federal de 1988, assegura o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, que são elaborados e firmados pelos entes coletivos. Nos termos do art. 611 da CLT, a autonomia coletiva dos seres coletivos, assegurada pela Carta Magna, abrange a elaboração de normas de natureza coletiva, atinentes às condições aplicadas no âmbito das relações bilaterais de trabalho. No caso, observa-se que, ao excluir os aeronautas do cômputo na base de cálculo da cota prevista no artigo 429 da CLT, também esta cláusula atinge interesse difuso, que transpassa o interesse privado passível de negociação pelas categorias representadas, regulando direito dissociado das condições de trabalho dos trabalhadores e, portanto, não deve constar em instrumento normativo autônomo, por afronta do disposto nos arts. 611 da CLT e art. 104 do CCB. Desse modo, forçoso declarar a nulidade da cláusula. Registre-se que, por óbvio, a declaração de nulidade da cláusula não elide as limitações e exclusões fixadas em regramento normativo estatal vigente, para efeito do calculo do percentual de contratação de aprendizes. Julga-se procedente esta ação anulatória, a fim de declarar nula a Cláusula 3.1.20 da Convenção Coletiva de Trabalho da Aviação Regular – 2017/2018 – SNA/SNEA – registro no MTE Nº MR085025/2017. 5. PEDIDO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E NÃO FAZER. O Ministério Público do Trabalho postula a imposição de obrigação de não fazer relativa à pactuação de cláusulas futuras com idêntico conteúdo normativo, bem como obrigação de fazer, com a fixação de cópias da decisão que vier a ser proferida por esta Corte, com a finalidade de dar ciência aos trabalhadores. A jurisprudência desta Seção Especializada firmou-se no sentido de que a imposição aos réus de obrigação de fazer, mediante a publicidade da decisão ou de não fazer, com a imposição de multa, consubstanciada na abstenção de repetir, em instrumentos normativos futuros, idêntico teor das cláusulas anuladas, é incompatível com a natureza da ação anulatória, que é meramente declaratória, o que não impede a ampla divulgação da decisão, caso seja interesse das partes. Há julgados da SDC. Julga-se improcedente o pedido quanto a este tópico.
Processo: AACC-1000639-49.2018.5.00.0000