A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mesmo diante do fato de que o diretor-geral de futebol de base do Cruzeiro Esporte Clube não tinha poderes para representar a entidade em contratos, considerou válido o termo de compromisso firmado por ele com uma empresa que gerencia a carreira de atletas profissionais. Com a decisão, o clube mineiro terá de pagar cerca de R$ 300 mil à empresa.
Ao dar provimento ao recurso especial da empresa, o colegiado aplicou ao caso a teoria da aparência, pois o diretor-geral atuou em nome e no interesse do clube, em negócio jurídico que gerou proveito econômico a este.
Por meio do termo de compromisso, a empresa indicou ao Cruzeiro um jovem atacante e, em contrapartida, faria jus a 30% do valor líquido a ser recebido pelo clube em caso de futura negociação do atleta. Em ação de cobrança, a empresa afirmou que, em 2011, pelo valor de R$ 3,5 milhões, o clube vendeu 50% dos direitos econômicos sobre o jogador para o Clube de Regatas Vasco da Gama.
O juízo de primeira instância condenou o Cruzeiro a pagar R$ 300 mil à empresa. No entanto, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) reformou a sentença, sob o entendimento de que o diretor-geral de futebol de base, à luz do estatuto social do clube, não tinha poderes para representá-lo na assinatura do termo de compromisso. Para o TJMG, a teoria da aparência não poderia ser invocada para contornar a negligência da empresa ao firmar o acordo com quem não tinha poderes para tanto.
Diretor aparentava ter poderes para representar o clube
O relator do recurso no STJ, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, observou que, nos termos do artigo 47 do Código Civil (CC), como regra, as pessoas jurídicas apenas se obrigam pelos atos exercidos por seus administradores nos limites dos poderes definidos no ato constitutivo. Contudo, o magistrado destacou que, de acordo com o Enunciado 145 da III Jornada de Direito Civil, aquele dispositivo legal não afasta a teoria da aparência, que se mostra perfeitamente aplicável ao caso.
Segundo o relator, se o signatário do termo de compromisso não detinha poderes para representar o clube mineiro no negócio, ele ao menos aparentava tê-los, sendo imperiosa a proteção da legítima confiança gerada na parte contratante.
“O termo de compromisso não foi assinado por qualquer funcionário do clube, mas pelo próprio diretor-geral do futebol de base, justamente o departamento responsável por jovens atletas, como aquele cujos direitos econômicos estavam sendo negociados. Razoável, assim, que o instrumento contratual em questão, referente a jovem e promissor talento futebolístico, pudesse ser assinado pelo diretor-geral do futebol de base, especialmente quando o documento parece ter sido confeccionado pelo próprio clube”, declarou.
Sanseverino também ressaltou que ficou evidenciado, por parte do Cruzeiro, um comportamento contraditório, manifestamente contrário à boa-fé objetiva, visto que o clube buscou impor a terceiro a observância de norma prevista em seu estatuto social, a qual ele próprio não observou ao fazer um negócio que lhe gerou proveito econômico.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. TERMO DE COMPROMISSO FIRMADO QUANDO DA APRESENTAÇÃO DE JOVEM TALENTO AO CRUZEIRO ESPORTE CLUBE. AÇÃO DE COBRANÇA. ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 932, III, E 1.173, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. INVIABILIDADE DA APRESENTAÇÃO DE DECISÃO MONOCRÁTICA COMO PARADIGMA. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 47 E 1.015, PARÁGRAFO ÚNICO, I, II E III, DO CC. OCORRÊNCIA. TERMO DE COMPROMISSO FIRMADO POR FUNCIONÁRIO QUE NÃO TINHA PODERES PARA REPRESENTAR O CLUBE. SIGNATÁRIO QUE ERA O DIRETOR GERAL DO FUTEBOL DE BASE. TEORIA DA APARÊNCIA. COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO DO CLUBE. TENTATIVA DE IMPOR AO CONTRATANTE A OBSERVÂNCIA DE REGRA DE SEU ESTATUTO SOCIAL QUE ELE PRÓPRIO DEIXOU DE OBSERVAR. NEGÓCIO JURÍDICO QUE LHE GEROU PROVEITO ECONÔMICO.
1. Ausente o prequestionamento quando o Tribunal de origem não emite juízo de valor acerca dos dispositivos legais apontados como violados. Aplicação da Súmula 211/STJ.
2. Impossibilidade de conhecimento do recurso especial por suposto dissídio jurisprudencial quando o julgado paradigma é decisão monocrática, sendo imprescindível, para tanto, a apresentação de acórdão.
3. Caso concreto que versa acerca de ação de cobrança proposta com o objetivo de buscar o adimplemento dos valores devidos em razão de Termo de Compromisso firmado com o Cruzeiro Esporte Clube pela apresentação, ao clube, de jovem e promissor atleta.
4. Clube recorrido que não nega ter sido assinado Termo de Compromisso por meio do qual o jogador foi apresentado ao clube e nele efetivamente atuou, tendo sido posteriormente negociado ao Clube de Regatas Vasco da Gama.
5. Alegação, porém, de que o referido Termo de Compromisso foi assinado por quem não tinha poderes para representá-lo.
6. Teoria da aparência que deve ser aplicada ao caso, porquanto o signatário, Diretor Geral do Futebol de Base, atuou em nome e no interesse do clube, em negócio jurídico que lhe gerou proveito econômico.
7. Comportamento contraditório e, portanto, contrário à boa-fé objetiva que se verifica na conduta do clube, de tentar impor a seu contratante a observância de norma prevista em seu Estatuto Social que foi por ele próprio descumprida. Vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa.
8. Aplicação da ‘teoria dos atos próprios’, como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos ‘tu quoque’ e ‘venire contra factum proprium’, segundo a qual ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes e a boa-fé.
9. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E PROVIDO.
“Àquele que deu causa ao vício não é dado invocá-lo para arguir a nulidade do negócio jurídico”, concluiu o magistrado.
Leia o acórdão no REsp 1.902.410.