O princípio non reformatio in pejus e a sua aplicação pelo STJ

Quando o réu condenado em ação penal recorre da decisão, certamente não espera que, ao analisar os argumentos da defesa, o tribunal venha a piorar a sua situação processual – aumentando o tempo de pena, por exemplo. Essa hipótese, de fato, é vedada pelo princípio non reformatio in pejus, segundo o qual não é possível agravar a situação do réu no julgamento de recurso exclusivo da defesa.

Amplamente admitido pela doutrina e pela jurisprudência, o princípio está previsto, em especial, no artigo 617 do Código de Processo Penal (CPP).

Com base na impossibilidade da reformatio in pejus, após o julgamento de segunda instância, muitas partes recorrem ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob a alegação de indevida piora da sua situação no processo. A corte firmou vasta jurisprudência sobre o tema – ora acolhendo, ora rejeitando a tese de violação do princípio.

Restabelecimento da pena fixada em sentença não viola princípio non reformatio in pejus

O provimento de recurso especial do Ministério Público que leva ao restabelecimento da pena fixada em sentença não configura violação do princípio non reformatio in pejus, ainda que só a defesa tenha interposto apelação. O entendimento foi adotado de maneira unânime pela Sexta Turma ao negar provimento ao agravo regimental no AREsp 1.895.594.

No caso dos autos, o réu foi condenado por homicídio qualificado tentado a 14 anos de reclusão, tendo o juízo de primeira instância fixado a pena-base em dois anos acima do mínimo legal, diante da valoração negativa da culpabilidade do agente e das circunstâncias do crime. No julgamento da apelação, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) considerou que o aumento da pena havia sido desproporcional e a readequou para 13 anos.

Em decisão monocrática, o relator no STJ, ministro Rogerio Schietti Cruz, apontou que o tribunal de segundo grau não se pronunciou sobre a culpabilidade e fixou a pena-base considerando seis meses para cada circunstância judicial negativa. Isso, segundo o ministro, foi insuficiente para os objetivos de reprovação e prevenção do crime. “Deve, portanto, ser restabelecida a sanção fixada pelo juízo de primeira instância – 14 anos de reclusão –, haja vista a valoração desfavorável de duas vetoriais”, afirmou.

O réu recorreu da decisão monocrática, sustentando ter havido reformatio in pejus, porque apenas a defesa interpôs apelação e, portanto, o Ministério Público estadual não poderia ter recorrido ao STJ, em decorrência do trânsito em julgado para a acusação.

Schietti explicou que, embora somente a defesa tenha recorrido da sentença, a diminuição da pena pelo tribunal estadual deu ao órgão acusatório a legitimidade para interpor o recurso especial, a fim de que fosse mantida a condenação nos termos fixados em primeira instância. Nessas circunstâncias, não seria possível falar em reformatio in pejus.

Proibição da reformatio in pejus deve ser analisada item por item no dispositivo da pena

No julgamento do HC 251.417, de relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, a Sexta Turma definiu que, para o exame dos limites da proibição de reforma para pior, deve ser analisado cada item do dispositivo que fixou a pena, e não apenas a quantidade total da reprimenda.

De acordo com os autos, um homem foi condenado a 25 anos de reclusão por, junto com outras pessoas, praticar um assalto e, na sequência, matar a vítima. A sentença, na primeira etapa da dosimetria, considerou negativas a culpabilidade, a personalidade do agente e as circunstâncias do crime.

O tribunal de segunda instância, em apelação exclusiva da defesa, manteve a análise desfavorável somente das duas últimas circunstâncias judiciais, mas não alterou a pena aplicada, pois a julgou necessária e suficiente para a punição e a prevenção do crime.​​​​​​​​​​​​

 

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No STJ, Schietti observou que a proibição de reforma para pior garante ao réu o direito de não ter sua situação agravada, direta ou indiretamente. “Não obsta, entretanto, que o tribunal, para dizer o direito – ao exercer, portanto, sua soberana função de juris dictio –, encontre motivação própria, respeitada, insisto, a imputação deduzida pelo órgão de acusação, a extensão cognitiva da sentença impugnada e os limites da condenação imposta no juízo de origem”, declarou.

Contudo, o relator explicou que a proibição da reforma para pior diz respeito a cada item do dispositivo da pena, e não apenas à quantidade total da reprimenda. Nesse sentido, segundo o magistrado, se o tribunal admite uma atenuante excluída pelo juiz de primeiro grau, ou exclui uma agravante admitida por este último, deve reduzir o total da pena, não podendo mantê-la intacta.

“Deve ser reconhecido o constrangimento ilegal no ponto em que o tribunal de origem, na apelação da defesa, considerou desfavoráveis ao paciente duas circunstâncias judiciais – em vez das três valoradas na sentença –, mas não reduziu a pena básica, aumentando a quantidade de pena atribuída às vetoriais remanescentes”, disse o ministro ao conceder o habeas corpus e redimensionar a pena para 23 anos e quatro meses.

Efeito devolutivo da apelação permite nova ponderação acerca dos fatos

Em outro julgamento relevante da Quinta Turma, foi definido que o efeito devolutivo da apelação autoriza o tribunal de segundo grau, quando instado a se manifestar sobre a dosimetria da pena e a fixação do regime prisional, a fazer nova ponderação dos fatos e das circunstâncias do crime sem incorrer em reformatio in pejus, mesmo que só a defesa tenha recorrido, mas desde que não seja agravada a situação do réu.

No caso, o réu foi condenado por estupro de vulnerável, em regime inicial fechado. A defesa apelou, e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) – entendendo que não ficou provada a condição vulnerável da vítima – desclassificou a conduta para o crime de estupro, o que resultou na redução da pena, mantido o regime fechado.

Em habeas corpus, entre outras questões, a defesa alegou reformatio in pejus por parte do TJMG, pois a corte teria valorado negativamente a culpabilidade, enquanto o juízo sentenciante negativou apenas as consequências do crime.

O relator no STJ, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, observou que os tribunais de segundo grau, quando provocados a se manifestar sobre algum critério da dosimetria, ficam autorizados a reanalisar inclusive as circunstâncias judiciais e a rever todos os termos da individualização da pena definidos na sentença.​​​​​​​​​​​​

​​Dessa forma, segundo o magistrado, possibilita-se nova ponderação dos fatos e das circunstâncias em que ocorreu o delito, ainda que seja em recurso exclusivo da defesa, sem que ocorra reformatio in pejus, desde que não se aumente a pena final do acusado ou se agrave o regime de cumprimento – o que, no caso dos autos, não ocorreu.

“Apesar de o tribunal local ter valorado negativamente mais uma circunstância judicial, a pena do paciente foi efetivamente reduzida, uma vez que aplicada fração mais branda de aumento”, declarou.

Fundamentos da dosimetria podem ser revisados sem caracterizar reformatio in pejus

A jurisprudência do STJ considera que, mesmo havendo recurso exclusivo da defesa, é possível a revisão dos fundamentos da dosimetria da pena, desde que não seja modificada a quantidade de sanção imposta, sem que tal procedimento caracterize indevida reformatio in pejus.

Com esse entendimento, ao julgar o AREsp 993.413, a Quinta Turma manteve decisão monocrática do relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, que – em análise de recurso especial do Ministério Público – reformou acórdão de segundo grau para restabelecer o aumento de pena aplicado na sentença a um homem condenado por roubo.

O juízo de primeiro grau condenou o réu e, com base no critério quantitativo, por reconhecer a presença de duas majorantes (concurso de agentes e ameaça com arma de fogo), aumentou a pena em três oitavos.

No entanto, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) reduziu o acréscimo para o mínimo de um terço, aplicando a Súmula 443 do STJ. Embora admitisse que a conduta do réu foi mais reprovável do que a média nesse tipo de crime, a corte local considerou que eventual acréscimo de fundamentação, a fim de manter o aumento da pena em três oitavos, caracterizaria reformatio in pejus.

No STJ, o relator apontou que, nos termos da jurisprudência do tribunal, o princípio non reformatio in pejus prevê que o julgador não está vinculado aos fundamentos adotados na instância anterior; ele apenas não pode agravar a pena, o que seria inadmissível em recurso exclusivo da defesa. Reynaldo Soares da Fonseca disse também que a conclusão acerca da existência de peculiaridades que justificam o aumento da pena em três oitavos não exigia revisão das provas – o que seria inviável em recurso especial –, apenas a sua revaloração.

Com esses fundamentos, reconhecendo as peculiaridades do caso concreto que configuravam uma conduta mais reprovável – além do concurso de quatro agentes e do uso de arma de fogo, houve troca de tiros com a polícia –, o ministro considerou inaplicável a Súmula 443 e fixou o aumento da pena em três oitavos.

Princípio impede recurso especial adesivo da acusação

Para a Sexta Turma, a interposição de recurso especial adesivo pelo Ministério Público, veiculando pedido contra o réu, conflita com a regra non reformatio in pejus, segundo a qual a pena não pode ser agravada quando somente a defesa recorre.

Ao julgar o REsp 1.595.636, o ministro Sebastião Reis Júnior, relator, afirmou que há dúvidas acerca do cabimento de recurso adesivo no processo penal, em razão da falta de previsão no CPP. No caso específico de recurso especial criminal, segundo ele, nem o CPP nem a Lei 8.038/1990 previram essa hipótese. “Mesmo quando se entende cabível recurso adesivo em matéria criminal, inclusive o especial, também há ressalvas acerca da possibilidade de utilização desse recurso pelo Ministério Público” apontou.

O magistrado ressaltou que, não havendo norma do CPP sobre alguma questão, o artigo 3º do código admite a sua integração por meio de outros diplomas legais, inclusive o Código de Processo Civil (CPC). Contudo, segundo o ministro, nessa integração de normas, é preciso tomar cuidado para que a interpretação dada à regra utilizada para suprir a omissão não conflite com preceitos do CPP.

De acordo com Sebastião Reis Júnior, admitir a interposição de recurso especial adesivo do Ministério Público, com algum pedido contra o réu, conflita com a regra do artigo 617 do CPP, que proíbe a reformatio in pejus.

“Em razão da relação de subordinação, o recurso adesivo ministerial somente poderia ser conhecido caso fosse conhecido também o recurso da defesa, ou seja, a admissão do recurso defensivo acarretaria ao réu um efeito negativo, qual seja, o de que o recurso acusatório adesivo também passaria a ser analisado, caracterizando uma reformatio in pejus indireta”, concluiu.​​​​​​​​​​​​

 

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Reconhecimento da continuidade delitiva não leva à redução obrigatória da pena

A Sexta Turma, ao julgar o HC 301.882, decidiu que o reconhecimento da continuidade delitiva não importa na redução obrigatória da pena definitiva fixada em cúmulo material, pois há a possibilidade de aumento da pena do delito mais grave em até o triplo, nos termos do artigo 71, parágrafo único, do Código Penal (CP).

No caso, o réu foi condenado a 30 anos de reclusão, em cúmulo material de dois delitos de homicídio qualificado com decapitação e esquartejamento das vítimas. Na revisão criminal, foi reconhecido crime continuado, mas sem alteração da pena final. A defesa, então, sustentou a ilegalidade da dosimetria adotada pelo tribunal de segunda instância, por haver acrescentado circunstância judicial desfavorável em recurso exclusivo da defesa.

O ministro Antonio Saldanha Palheiro, relator, apontou que é pacífica a distinção entre os institutos da continuidade delitiva e da pena-base, apesar de aparentemente partilharem a necessidade de valoração de vetoriais semelhantes, mesmo porque cada crime permanece independente na cadeia delitiva, tanto que se permitem dosimetrias distintas para cada evento.

“A distinção entre os referidos institutos permite, inclusive, a valoração da mesma circunstância fática sob dois aspectos distintos, sem infringência ao princípio do ne bis in idem, afirmou Saldanha.

Nesse sentido, o magistrado destacou que a pena definitiva foi mantida no mesmo montante, modificados somente os institutos penais sem o decote de qualquer vetorial negativa ou causa de aumento.  “É de se considerar que a pena definitiva do agente não foi aumentada, o que afasta a alegação de reformatio in pejus“, concluiu o relator.

Tribunal não pode agravar situação do réu mesmo se houver erro na soma das penas

No julgamento do HC 250.455, a Sexta Turma entendeu que, no âmbito de recurso exclusivo da defesa, o tribunal de segundo grau não pode agravar a pena imposta ao condenado, ainda que reconheça equívoco na soma das penas aplicadas.

No caso julgado, o réu foi condenado a nove anos de reclusão por tráfico de drogas e associação para o tráfico. O tribunal de segundo grau negou provimento à apelação da defesa e, de ofício, corrigiu o erro aritmético da sentença, concluindo que a pena imposta totalizava, na verdade, nove anos, sete meses e seis dias de reclusão.

O ministro Nefi Cordeiro (aposentado), relator, explicou que, como o Ministério Público não questionou o erro material, o tribunal não poderia conhecê-lo de ofício, sob pena de configuração da reformatio in pejus.

O magistrado ressaltou que o STJ possui jurisprudência firmada no sentido de que configura inegável reformatio in pejus a correção de erro material no julgamento da apelação – ainda que para sanar evidente equívoco ocorrido na sentença condenatória – que importa em aumento da pena, sem que tenha havido recurso do Ministério Público para isso.

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