A história de Maria Luiza da Silva, reconhecida como a primeira transexual dos quadros da Força Aérea Brasileira (FAB), ganhou um novo capítulo em abril de 2021, quando o STJ confirmou que ela não poderia ter sido aposentada no posto de cabo.
Ao negar recurso da União e confirmar decisão do ministro Herman Benjamin, a Segunda Turma manteve acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que garantiu a ela o direito de se aposentar no último posto da carreira militar no quadro de praças, o de suboficial.
Maria Luiza foi posta na reserva após ter realizado cirurgia de mudança de sexo – o que lhe retirou a chance de progredir na carreira. Na decisão monocrática, o ministro Herman Benjamin avaliou a medida como prematura e ilegal, o que já havia sido reconhecido no primeiro e no segundo graus de jurisdição.
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Para Herman Benjamin, era inconcebível que a militar tivesse direito à aposentadoria integral apenas no posto de cabo engajado. “Prestigiar tal interpretação dos julgados da origem acentua, ainda mais, a indesculpável discriminação e os enormes prejuízos pessoais e funcionais sofridos pela recorrida nos últimos 20 anos em que vem tentando – agora com algum êxito – anular a ilegalidade contra si praticada pelas Forças Armadas do Brasil”, concluiu o ministro.
Neste vídeo, o psiquiatra Gabriel Graça fala do preconceito enfrentado pelas pessoas que fazem a transição de gênero – como a militar Maria Luiza, cujo caso foi julgado pelo STJ:
Militar transgênero não pode ser reformado compulsoriamente
Em outubro do mesmo ano, a Quinta Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), em consonância com a posição do STJ, condenou as Forças Armadas, em ação civil pública, a reconhecer o nome social dos militares transgênero e a não reformá-los sob alegação da doença “transexualismo”.
Em circunstâncias similares ao caso de Maria Luiza, servidores federais civis e militares foram postos em licença médica ou submetidos a processos de aposentadoria compulsória, devido ao fato de serem trans.
O relator, desembargador federal Ricardo Perlingeiro, destacou que a Classificação Internacional de Doenças CID-11, com vigência a partir de 2022, exclui a orientação de gênero do rol de patologias. A decisão ainda apontou que o direito à autodeterminação de gênero está garantido no sistema jurídico, sendo eficaz contra todos e dotado de efeito vinculante, o que inclui instituições como a Marinha, o Exército e a Aeronáutica.
Entre os instrumentos normativos referenciados para amparar esse entendimento está o Decreto 8.727/2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais na administração pública federal. No âmbito do STF, a decisão citou o Tema 761 da repercussão geral e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275, que estabeleceram o direito fundamental do transgênero à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil.
Capitã reformada se queixa da falta de amparo legal
A história de Maria Luiza e a ação civil pública julgada pelo TRF2 são exemplos da dificuldade de reconhecimento dos direitos de transexuais que ingressam nas Forças Armadas. Foi nesse contexto que a advogada Bianca Figueira Santos, oficial superior da Marinha no posto de capitã de corveta, reformada em 2008 em razão de sua transexualidade, iniciou as atividades de pesquisa acadêmica e a defesa de militares que, assim como ela, enfrentam adversidades na carreira. Ela detalha sua trajetória e a de mais cinco militares transexuais no livro Deixadas para trás, baseado em seu trabalho de conclusão de mestrado.
Segundo Bianca, a evolução prática mais relevante no tema, nos últimos anos, foi a retirada da transexualidade do rol de transtornos mentais da CID-11. “As Forças Armadas não podem mais reformar os militares trans, porque anteriormente eles utilizavam a patologia como justificativa”, explica.
Bianca observa que decisões recentes do STF – como o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção 4.733, que reconheceu a homofobia e a transfobia como racismo – reforçam esse entendimento. No entanto, afirma que ainda é difícil assegurar os direitos dessas pessoas. “Se não existe lei, encontramos um óbice grande em relação ao princípio da legalidade da administração pública, seja ela civil ou militar. Como a administração poderá nos amparar? Aí temos que propor ações judiciais para conseguir nossos direitos, desde os mais simples possíveis”, lamenta.
Ministério da Defesa tem orientações sobre alistamento militar de transexuais
A judicialização de casos de licenças médicas ou aposentadorias compulsórias de militares após a transição de gênero não é o único foco de insegurança na relação da população trans com as Forças Armadas. O serviço militar obrigatório, previsto no artigo 143 da Constituição Federal e imposto a todo cidadão brasileiro do sexo masculino, já foi alvo de questionamentos por não apresentar um regramento expresso em lei para esse segmento da sociedade.
Em 2018, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro obteve resposta a ofício enviado ao Ministério da Defesa com o objetivo de esclarecer os procedimentos que devem ser adotados, no momento do alistamento militar obrigatório, por pessoas trans que já mudaram de nome e sexo nos documentos.
De acordo com o Ministério da Defesa, se o homem trans fizer a alteração antes de completar 18 anos, ele deverá se apresentar ao serviço militar no ano em que completar a maioridade, podendo ser recrutado. Caso a alteração ocorra com 18 anos, ele deverá se apresentar ao serviço militar em até 30 dias da mudança oficial.
Se a mudança ocorrer entre 19 e 45 anos, ele precisará se apresentar ao serviço militar em até 30 dias após a mudança oficial para entrar no cadastro de reservistas, podendo vir a ser convocado em caso de guerra. Ao homem trans que não se apresentar no prazo após a mudança oficial, serão impostos os mesmos impedimentos previstos em lei para todos, como o de obter passaporte ou de participar de concurso público. Após os 45 anos, não é obrigatório o alistamento, nem haverá convocação em caso de guerra.
Para mulheres trans, se a alteração ocorrer antes dos 18 anos, não é necessário se apresentar às Forças Armadas. Caso a alteração seja realizada após o alistamento ou o serviço militar, o documento comprobatório torna-se dispensável, não podendo mais ser exigido.
A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) elaborou o Guia de orientação sobre o alistamento militar, voltado para pessoas cujos nome e sexo foram retificados.