Falta de emissão da guia de depósito não pode prejudicar coerdeiro que invocou direito de preferência no prazo

Nas ações que discutem a preferência de um herdeiro em relação a direitos sucessórios cedidos pelos demais a terceiros, o depósito judicial da quantia referente ao quinhão da herança em discussão é condição de procedibilidade do processo. Caso o autor da ação não deposite o valor espontaneamente, ele deve ser intimado pelo juiz a fazê-lo.

Por outro lado, se o processo foi ajuizado no prazo de 180 dias previsto pelo artigo 1.795 do Código Civil, eventual omissão do magistrado em analisar o pedido de expedição da guia de depósito não pode prejudicar a parte.

Com base nesse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) e determinou que uma ação de preferência retorne à primeira instância para que o seu autor possa depositar a quantia relativa aos direitos reivindicados.

No primeiro julgamento, o juiz se omitiu quanto ao pedido de expedição da guia de depósito e julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito preferencial de aquisição da cota-parte pertencente aos coerdeiros, sob o argumento de que o autor não depositou o valor correspondente no prazo decadencial de 180 dias.

A sentença foi mantida pelo TJRS. Para o tribunal, mesmo que o juiz não tenha atendido o pedido de expedição das guias, o autor poderia ter solicitado sua confecção ao cartório judicial, ou mesmo feito o depósito em conta bancária destinada a essa finalidade.

Coproprietários temporários

Relatora do recurso especial, a ministra Nancy Andrighi explicou que, por força do artigo 1.791 do Código Civil, a herança é um bem indivisível – situação que se prolonga até a partilha. Havendo pluralidade de herdeiros – apontou –, eles são temporariamente equiparados à condição de coproprietários dos direitos hereditários.

Por isso – prosseguiu a relatora –, o artigo 1.794 prevê uma limitação à autonomia de vontade do coerdeiro que deseja ceder sua cota-parte a terceiros, impondo-lhe que ofereça anteriormente esses direitos aos demais herdeiros, para que eles manifestem seu interesse em adquiri-los nas mesmas condições de preço e pagamento.

Segundo a ministra, se um coerdeiro não for notificado para eventual exercício de sua preferência, o Código Civil lhe assegura a possibilidade de entrar em juízo para requerer seu direito, desde que o faça em até 180 dias após a transmissão da cota-parte. Nessa hipótese, é necessário fazer o depósito judicial do valor correspondente ao patrimônio reivindicado.

“Trata-se de espécie de direito potestativo, por meio do qual o coerdeiro sujeita o cessionário e o cedente ao seu poder jurídico de haver para si a cota dos direitos hereditários cedida indevidamente a pessoa alheia à sucessão”, afirmou.

Condição específica

Nancy Andrighi destacou que, conforme a jurisprudência do STJ, o depósito é condição de procedibilidade da ação de preferência. Por isso, para a relatora, se o depósito do valor da cessão de direitos hereditários é condição específica da ação de preempção, a omissão do titular deve resultar em sua notificação para a correção do vício.

“Se deve ser concedida ao autor a oportunidade de sanar vício procedimental, a parte que ajuíza a ação de preferência dentro do prazo, mas não realiza o depósito, não pode ser prejudicada pela demora do Judiciário em processar a referida ação e examinar o pedido de expedição da correspondente guia” – declarou a relatora, acrescentando que é vedado, nessas circunstâncias, o reconhecimento de decadência.

No caso dos autos, a ministra enfatizou que o autor ajuizou a ação dentro do prazo legal, mas não depositou o valor porque esperou o juiz examinar o pedido de expedição da guia.

“Dessa forma, nas circunstâncias dos autos, não pode o recorrente ser prejudicado pela omissão do julgador em examinar seu pedido expresso de expedição da guia para depósito, formulado logo na oportunidade do ingresso da ação, e tampouco a decadência pode ser reconhecida, haja vista que a parte não pode ser responsabilizada pela demora do Judiciário, à qual não deu causa” – concluiu Nancy Andrighi.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. DIREITO DE PREFERÊNCIA. ART. 1.795 DO CC⁄02. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS A TERCEIROS. COERDEIROS. PRÉVIA NOTIFICAÇÃO. AUSÊNCIA. EXERCÍCIO JUDICIAL DO DIREITO POTESTATIVO. DEPÓSITO DOS VALORES DA NEGOCIAÇÃO. NATUREZA JURÍDICA. EXPEDIÇÃO DE GUIAS. EXAME JUDICIAL. OMISSÃO NÃO IMPUTÁVEL AO AUTOR. PREJUÍZO AO TITULAR. IMPOSSIBILIDADE. DECADÊNCIA. INOCORRÊNCIA.
1. Cuida-se de ação de preferência na cessão direitos sucessórios a terceiros, fundada no art. 1.795 do CC⁄02, ajuizada dentro do prazo decadencial, mas sem o efetivo depósito dos valores envolvidos na cessão de direitos hereditários, embora houvesse pedido expresso de expedição das guias necessárias para tanto na inicial.
2. Recurso especial interposto em: 19⁄06⁄2019; concluso ao gabinete em: 24⁄03⁄2020; aplicação do CPC⁄15.
3. O propósito recursal consiste em determinar: a) em relação ao direito de preferência ou preempção, qual a natureza jurídica do depósito dos valores envolvidos na negociação de direitos sucessórios; e b) se o coerdeiro que formula pedido de expedição de guias para depósito da referida quantia pode ser prejudicado pela omissão judicial no exame de sua requisição.
4. Devidamente analisadas e discutidas as questões de mérito, e fundamentado corretamente o acórdão recorrido, de modo a esgotar a matéria em debate, não há que se falar em negativa de prestação jurisdicional.
5. O art. 1.794 do CC⁄02 prevê uma limitação à autonomia da vontade do coerdeiro que deseja ceder sua quota-parte a terceiros, impondo-lhe que ofereça anteriormente esses direitos aos demais coerdeiros, para que manifestem seu interesse em adquiri-los nas mesmas condições de preço e pagamento.
6. O exercício desse direito de preferência ocorre, pois, em regra, independentemente da atuação jurisdicional, bastando que, notificado, o coerdeiro adquira os direitos hereditários por valor idêntico e pelas mesmas condições oferecidas ao eventual terceiro estranho interessado na cessão.
7. Todavia, uma vez ultimado o negócio sem observância da notificação prévia do coerdeiro, a solução da questão somente pode se dar na via judicial, pela ação de preferência c.c. adjudicação compulsória. Precedente.
8. Nos termos da jurisprudência da Terceira Turma, a prova do depósito do preço para adjudicação do bem, na petição inicial, é condição de procedibilidade da referida ação. Precedente.
9. Por se tratar de condição de procedibilidade, a omissão do autor em depositar o valor da cessão de direitos hereditários deve ensejar a oportunidade de correção do citado defeito processual, em homenagem aos princípios da instrumentalidade das formas e da economia processual.
10. Portanto, sobretudo na hipótese em que a ação é ajuizada antes do termo final do prazo decadencial de 180 (cento e oitenta), sendo corrigido o defeito, com o depósito da quantia, o exercício do direito deve retroagir à data do ingresso em juízo.
11. Nessas condições, a demora do Judiciário no exame do pedido de depósito dos valores formulado na inicial não pode prejudicar o autor e não justifica o acolhimento da alegação de decadência. Aplicação analógica da Súmula 106⁄STJ.
12. Recurso especial provido.

Leia o acórdão.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1870836

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