Coisa julgada impede rediscussão do valor a ser pago a empresas que participaram de socorro no mar

Por entender que não é possível alterar a sentença em fase de cumprimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso de uma empresa que pretendia readequar a decisão que a condenou a ressarcir as companhias envolvidas em um resgate no mar. A proprietária do barco resgatado alegava o risco de ter que pagar mais do que o valor da própria embarcação, o que é vedado por lei.

Na origem do caso, quatro companhias marítimas ajuizaram ação de cobrança a fim de serem ressarcidas pelos gastos com o salvamento de uma embarcação que estava na iminência de naufragar na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.

Em primeira instância, foi determinado o pagamento com base na avaliação da embarcação (R$ 404 mil), dividido entre as companhias envolvidas, e autorizada a utilização do valor arrecadado com o leilão do barco resgatado. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve a decisão.

A empresa ré recorreu ao STJ alegando que a avaliação foi exagerada, pois se tratava de uma barcaça em péssimo estado, que só serviria ao comprador como sucata – tanto que no primeiro leilão não houve interessados e, em outra tentativa, acabou sendo arrematada por R$ 79 mil.

Além disso, a empresa informou que foi condenada em outra ação a ressarcir uma quinta empresa de transporte marítimo pelo mesmo fato. Dessa forma, requereu a adaptação da condenação ao que foi efetivamente arrecadado no leilão, bem como a inclusão da quinta empresa na divisão desse valor. Sem isso – ponderou a recorrente –, ela acabaria tendo de pagar mais do que o valor da embarcação resgatada.

Proteção da coisa julgada não permite alterar o valor

A relatora, ministra Nancy Andrighi, lembrou que o direito à remuneração daqueles que participam de salvamento marítimo está previsto no artigo 8º da Lei 7.203/1984 e que o artigo 10, parágrafo 1º, da mesma lei estabelece que esse pagamento não pode exceder o valor da embarcação.

Por outro lado, a ministra destacou que, em razão da proteção da coisa julgada sobre o título executivo, não há como reverter, no julgamento do recurso especial, o valor a ser ressarcido pelo resgate. Conforme apontou, a recorrente não produziu prova, em momento oportuno, que demonstrasse a desproporção entre a avaliação da embarcação e o valor obtido na arrematação.

“A coisa julgada integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, não se admitindo alteração ou rediscussão posterior, seja pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário”, afirmou.

Não se pode incluir nova parte na sentença em execução

Também em razão da coisa julgada – prosseguiu a relatora –, não é possível readequar a sentença, nessa fase processual, para incluir a outra empresa envolvida no salvamento – a qual nem sequer participou da demanda originária – na distribuição do valor do ressarcimento.

“Se o montante remuneratório não pode superar o valor da embarcação, de acordo com o artigo 10, parágrafo 1º, da Lei 7.203/1984, e se, porventura, a totalidade do valor foi destinada apenas a uma parcela das empresas salvadoras do mesmo barco, tais fatos necessitam ser analisados no cômputo total da indenização. Todavia, não há como alterar – sobretudo em sede de recurso especial – o título devidamente constituído”, concluiu Nancy Andrighi.

Segundo ela, o meio processual adequado para combater a coisa julgada seria a ação rescisória, desde que presente algum dos requisitos do artigo 966 do Código de Processo Civil – mas esse tema não pôde ser analisado no julgamento do recurso, pois nem foi levantado pelo recorrente.

O recurso ficou assim ementado:

DIREITO MARÍTIMO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA PELO SALVAMENTO E ASSISTÊNCIA DE EMBARCAÇÃO MERCANTE. VIOLAÇÃO DO ART. 1.022 DO CPC⁄15. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE OU ERRO DO ACÓRDÃO EMBARGADO. AUSÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 489, § 1º, DO CPC⁄15. NÃO OCORRÊNCIA. SALVAMENTO DE NAVIO. ATRIBUIÇÃO DA MARINHA DO BRASIL. ATIVIDADE DELEGADA A PARTICULARES. EFETIVO SALVAMENTO POR DIVERSAS EMPRESAS. DEVER DE REMUNERAÇÃO POR PARTE DO PROPRIETÁRIO DO BEM. PREVISÃO NO ART. 10º DA LEI Nº 7.203⁄84. INDENIZAÇÃO EQÜITATIVA, QUE NÃO PODERÁ EXCEDER O VALOR DA EMBARCAÇÃO, COISAS OU BENS SALVOS. AVALIAÇÃO DO BEM. SENTENÇA QUE OBSERVOU O REGRAMENTO PREVISTO NA LEGISLAÇÃO. FORMAÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL. FASE DE CUMPRIMENTO DEFINITIVO DE SENTENÇA. SUPOSTO EXCESSO NA EXECUÇÃO SOB DOIS FUNDAMENTOS. PRIMEIRO. SUPERVENIÊNCIA DA VENDA DA EMBARCAÇÃO EM HASTA PÚBLICA POR VALOR INFERIOR AO DA PRIMEIRA AVALIAÇÃO. FORMAÇÃO DE COISA JULGADA. INEXISTÊNCIA DE FATO SUPERVENIENTE EXTINTIVO OU MODIFICATIVO DA OBRIGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAR O COMANDO DA SENTENÇA. SEGUNDO. SUPERVENIÊNCIA DE CONDENAÇÃO EM PROCESSO DISTINTO, NO QUAL TERCEIRO QUE TAMBÉM PARTICIPOU DO SALVAMENTO MOVE AÇÃO DE COBRANÇA. RECORRENTE QUE PRETENDE READEQUAR O COMANDO DO TÍTULO EXECUTIVO. IMPOSSIBILIDADE EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL. LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA. ART. 506 DO CPC⁄15. DECISÃO INEFICAZ EM RELAÇÃO A TERCEIRO QUE NÃO PARTICIPOU DO PROCESSO, SOB PENA DE VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. Ação de cobrança, ajuizada em 2⁄9⁄2015, atualmente em fase de cumprimento de sentença, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 1º⁄4⁄2022 e concluso ao gabinete em 6⁄12⁄2022.
2. O propósito recursal consiste em decidir se, em razão do art. 10º, § 1º, da Lei nº 7.203⁄84, o qual estabelece que a remuneração decorrente de salvamento marítimo não pode exceder o valor da embarcação, é possível alterar o comando do título executivo judicial, sob o fundamento de excesso de execução, diante (I) da alienação da embarcação salva por preço inferior ao da avaliação; e (II) da superveniência de ação proposta por outra empresa salvadora – não participante da relação processual que originou o título executivo –, a fim de determinar novo rateio proporcional do montante condenatório, em atenção ao teto estipulado no referido dispositivo legal.
3. Não há ofensa aos arts. 489 e 1.022 do CPC⁄15 quando o Tribunal de origem examina, de forma fundamentada, a questão submetida à apreciação judicial na medida necessária para o deslinde da controvérsia, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte. Precedentes desta Corte.
4. A Lei nº 7.203⁄1984 regulamenta importante seção do Direito Marítimo e estabelece que o salvamento deve ser compreendido como ato ou atividade efetuado para assistir e salvar uma embarcação, coisa ou bem em perigo no mar, nos portos e nas vias navegáveis interiores (art. 1º, §§ 1º e 2º).
5. A legislação também prevê o direito de remuneração para aqueles que prestarem serviços de busca e salvamento e participarem de operações de assistência e salvamento (art. 8º). Como regra, a remuneração devida será objeto de acordo entre as partes ou, quando não houver concórdia, determinada por arbitragem ou tribunal competente. Para seu arbitramento, é imperioso considerar que: “qualquer ato de assistência e salvamento que tenha resultado útil, dará direito a uma remuneração eqüitativa, que não poderá exceder o valor da embarcação, coisas ou bens salvos” (art. 8º, § 2º, da Lei nº 7.203⁄1984). No mesmo sentido, tem-se a Convenção Internacional para a Unificação de Regras Relativas à Limitação da Responsabilidade dos Proprietários de Embarcações Marítimas (art. 1º) e a Convenção Internacional sobre Salvamento Marítimo – SALVAGE-89 (art. 13).
6. O cumprimento de sentença deve obedecer ao estabelecido no título executivo, sob pena de violar a coisa julgada, instituto consagrado de modo expresso na Constituição Federal (art. 5º, XXXVI) e que integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica. O art. 506 do CPC⁄15 dispõe que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Concepção que prestigia os princípios da ampla defesa e do contraditório. Impossibilidade de alterar os limites subjetivos da coisa julgada em sede de recurso especial. Precedentes desta Corte.
7. A impugnação ao cumprimento de sentença, com fundamento no excesso de execução exige a demonstração da desconformidade entre o pleiteado e o devido, de acordo com os parâmetros estabelecidos no título executivo (art. 525, § 1º, V, do CPC⁄15). Na impugnação, permite-se também que o executado alegue causa extintiva ou modificativa da obrigação, desde que superveniente à sentença (art. 525, § 1º, VII, do CPC⁄15).
8. Hipótese em que o recorrente foi condenado ao pagamento de remuneração pelo salvamento de embarcação, arbitrada no valor da avaliação do bem e repartida, proporcionalmente, entre os salvadores recorridos (autores na ação de cobrança originária). Em fase de cumprimento definitivo de sentença, o recorrente insurge-se com fundamento nos arts. 525, V e VII, do CPC⁄15. Todavia, não apresenta excesso de execução e tampouco configura causa superveniente extintiva ou modificativa da obrigação a alienação da embarcação, em momento posterior à sentença, por valor inferior ao estabelecido no título judicial. Ademais, a sentença prolatada faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, inexistindo possibilidade de “readequar”, em recurso especial decorrente de impugnação em fase de cumprimento de sentença, o título devidamente constituído a fim de “incluir” outra empresa salvadora – que sequer participou da demanda originária – na distribuição proporcional do quantum. Necessidade de manutenção da decisão.
9. Recurso especial conhecido e desprovido.

Leia o acórdão no REsp 2.043.324.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 2043324

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