Em decisão unânime, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve condenação do Banco do Brasil a confeccionar em braile todos os documentos necessários para o atendimento de clientes com deficiência visual. As medidas terão de ser adotadas em 60 dias, sob pena de multa diária de R$ 1 mil.
O recurso julgado teve origem em ação civil pública promovida pela Associação Fluminense de Amparo aos Cegos. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) determinou a confecção em braile de todos os documentos fundamentais para a relação de consumo; o envio mensal de extratos, também impressos na linguagem dos cegos, e o desenvolvimento de cartilhas para os funcionários do banco com normas de conduta para o atendimento de deficientes visuais.
A decisão da Justiça fluminense, válida para todo o território nacional (efeito erga omnes), estabeleceu o prazo de 60 dias para a adoção das medidas, sob pena de multa diária de R$ 50 mil, e determinou ainda o pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 500 mil em favor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, vinculado ao Ministério da Justiça.
Litisconsórcio passivo
No recurso ao STJ, o Banco do Brasil alegou, essencialmente, ausência de previsão legal para a imposição da medida, inobservância do litisconsórcio passivo necessário (necessidade de inclusão das demais instituições financeiras do país no processo) e exorbitância do montante fixado como indenização e multa.
O relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, deu parcial provimento ao recurso apenas para reduzir para R$ 50 mil e R$ 1 mil, respectivamente, o valor da indenização por dano moral coletivo e o da multa diária no caso de descumprimento da decisão.
Em relação à formação de litisconsórcio passivo necessário, Bellizze destacou que “a lesão ou a ameaça de lesão aos direitos dos portadores de deficiência visual, nos termos da causa de pedir delineada na inicial, fora imputada única e exclusivamente à instituição financeira demandada. Por consectário, o provimento judicial a ser exarado na presente demanda não produz qualquer repercussão na esfera jurídico-patrimonial de outras instituições financeiras”.
“Quando muito”, acrescentou o ministro, “estar-se-ia diante de qualquer das hipóteses previstas no artigo 46 do Código de Processo Civil (litisconsórcio facultativo)”.
Dignidade humana
Quanto à alegação de inexistência de norma que imponha aos bancos a obrigação de confeccionar documentos em braile, o relator afirmou que “ainda que não houvesse, como de fato há, um sistema legal protetivo específico das pessoas portadoras de deficiência, a obrigatoriedade da utilização do método braile nas contratações bancárias estabelecidas com pessoas com deficiência visual encontra lastro, para além da legislação cosumerista in totum aplicável à espécie, no próprio princípio da dignidade da pessoa humana, norteador do Estado Democrático de Direito”.
Bellizze citou ainda diversas normas que asseguram tratamento igualitário, acessibilidade, inclusão social e autonomia às pessoas com deficiência, como a Lei 4.169/62, a Lei 10.048/00, a Lei 10.098/00 e o Decreto 6.949/09.
“A obrigatoriedade de confeccionar em braile os contratos bancários de adesão e todos os demais documentos fundamentais para a relação de consumo estabelecida com indivíduo portador de deficiência visual, além de encontrar esteio no ordenamento jurídico nacional, afigura-se absolutamente razoável”, afirmou o ministro.
Segundo ele, impõe-se à instituição financeira “encargo próprio de sua atividade, adequado e proporcional à finalidade perseguida, consistente em atender ao direito de informação do consumidor, indispensável à validade da contratação, e, em maior extensão, ao princípio da dignidade da pessoa humana”, concluiu.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. AÇÃO DESTINADA A IMPOR À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DEMANDADA A OBRIGAÇÃO DE ADOTAR O MÉTODO BRAILLE NOS CONTRATOS BANCÁRIOS DE ADESÃO CELEBRADOS COM PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA VISUAL. 1. FORMAÇÃO DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. DESCABIMENTO, NA HIPÓTESE. 2. DEVER LEGAL CONSISTENTE NA UTILIZAÇÃO DO MÉTODO BRAILLE NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS BANCÁRIAS ESTABELECIDAS COM CONSUMIDORES PORTADORES DE DEFICIÊNCIA VISUAL. EXISTÊNCIA. NORMATIVIDADE COM ASSENTO CONSTITUCIONAL E LEGAL. OBSERVÂNCIA. NECESSIDADE. 3. CONDENAÇÃO POR DANOS EXTRAPATRIMONIAIS COLETIVOS. CABIMENTO. 4. IMPOSIÇÃO DE MULTA DIÁRIA PARA O DESCUMPRIMENTO DAS DETERMINAÇÕES JUDICIAIS. REVISÃO DO VALOR FIXADO. NECESSIDADE, NA ESPÉCIE. 5. EFEITOS DA SENTENÇA EXARADA NO BOJO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA DESTINADA À TUTELA DE INTERESSES COLETIVOS STRICTO SENSU. DECISÃO QUE PRODUZ EFEITOS EM RELAÇÃO A TODOS OS CONSUMIDORES PORTADORES DE DEFICIÊNCIA VISUAL QUE ESTABELECERAM OU VENHAM A FIRMAR RELAÇÃO CONTRATUAL COM A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DEMANDADA EM TODO O TERRITÓRIO NACIONAL. INDIVISIBILIDADE DO DIREITO TUTELADO. ARTIGO 16 DA LEI N. 7.347⁄85. INAPLICABILIDADE, NA ESPÉCIE. PRECEDENTES. 7. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.1. A instituição financeira demandada, a qual se imputa o descumprimento de um dever legal, não mantém com as demais existentes no país (contra as quais nada se alega) vínculo jurídico unitário e incindível, a exigir a conformação de litisconsórcio passivo necessário. A existência, por si, de obrigação legal a todas impostas não as une, a ponto de, necessariamente, serem demandadas em conjunto. In casu, está-se, pois, diante da defesa coletiva de interesses coletivos stricto sensu, cujos titulares, grupo determinável de pessoas (consumidores portadores de deficiência visual), encontram-se ligados com a parte contrária por uma relação jurídica base preexistente à lesão ou à ameaça de lesão. E, nesse contexto, os efeitos do provimento judicial pretendido terão repercussão na esfera jurídica dos consumidores portadores de deficiência visual que estabeleceram, ou venham a firmar relação contratual com a instituição financeira demandada, exclusivamente.2. Ainda que não houvesse, como de fato há, um sistema legal protetivo específico das pessoas portadoras de deficiência (Leis ns. 4.169⁄62, 10.048⁄2000, 10.098⁄2000 e Decreto n. 6.949⁄2009), a obrigatoriedade da utilização do método braille nas contratações bancárias estabelecidas com pessoas com deficiência visual encontra lastro, para além da legislação consumerista in totum aplicável à espécie, no próprio princípio da Dignidade da Pessoa Humana.2.1 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência impôs aos Estados signatários a obrigação de assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas pessoas portadoras de deficiência, conferindo-lhes tratamento materialmente igualitário (diferenciado na proporção de sua desigualdade) e, portanto, não discriminatório, acessibilidade física e de comunicação e informação, inclusão social, autonomia e independência (na medida do possível, naturalmente), e liberdade para fazer suas próprias escolhas, tudo a viabilizar a consecução do princípio maior da Dignidade da Pessoa Humana.2.2 Valendo-se das definições trazidas pelo Tratado, pode-se afirmar, com segurança, que a não utilização do método braille durante todo o ajuste bancário levado a efeito com pessoa portadora de deficiência visual (providência, é certo, que não importa em gravame desproporcional à instituição financeira), impedindo-a de exercer, em igualdade de condições com as demais pessoas, seus direitos básicos de consumidor, a acirrar a inerente dificuldade de acesso às correlatas informações, consubstancia, a um só tempo, intolerável discriminação por deficiência e inobservância da almejada “adaptação razoável”.2.3 A adoção do método braille nos ajustes bancários com pessoas portadoras de deficiência visual encontra lastro, ainda, indiscutivelmente, na legislação consumerista, que preconiza ser direito básico do consumidor o fornecimento de informação suficientemente adequada e clara do produto ou serviço oferecido, encargo, é certo, a ser observado não apenas por ocasião da celebração do ajuste, mas também durante toda a contratação. No caso do consumidor deficiente visual, a consecução deste direito, no bojo de um contrato bancário de adesão, somente é alcançada (de modo pleno, ressalta-se), por meio da utilização do método braille, a facilitar, e mesmo a viabilizar, a integral compreensão e reflexão acerca das cláusulas contratuais submetidas a sua apreciação, especialmente aquelas que impliquem limitações de direito, assim como dos extratos mensais, dando conta dos serviços prestados, taxas cobradas, etc.2.4 O Termo de Ajustamento de Conduta, caso pudesse ser conhecido, o que se admite apenas para argumentar, traz em si providências que, em parte convergem, com as pretensões ora perseguidas, tal como a obrigação de envio mensal do extrato em braille, sem prejuízo, é certo, de adoção de outras medidas destinadas a conferir absoluto conhecimento das cláusulas contratuais à pessoa portadora de deficiência visual. Aliás, a denotar mais uma vez o comportamento contraditório do recorrente, causa espécie a instituição financeira assumir uma série de compromissos, sem que houvesse – tal como alega – lei obrigando-a a ajustar seu proceder.3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem perfilhado o posicionamento de ser possível, em tese, a configuração de dano extrapatrimonial coletivo, sempre que a lesão ou a ameaça de lesão levada a efeito pela parte demandada atingir, sobremodo, valores e interesses fundamentais do grupo, afigurando-se, pois, descabido negar a essa coletividade o ressarcimento de seu patrimônio imaterial aviltado.3.1 No caso, a relutância da instituição financeira demandada em utilizar o método Braille nos contratos bancários de adesão estabelecidos com pessoas portadoras de deficiência visual, conferindo-se-lhes tratamento manifestamente discriminatório, tem o condão de acirrar sobremaneira as inerentes dificuldades de acesso à comunicação e à informações essenciais dos indivíduos nessa peculiar condição, cuja prática, para além de consubstanciar significativa abusividade contratual, encerrar verdadeira afronta à dignidade do próprio grupo, coletivamente considerado.4. Não obstante, consideradas: i) a magnitude dos direitos discutidos na presente ação, que, é certo, restaram, reconhecidamente vilipendiados pela instituição financeira recorrente; ii) a reversão da condenação ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, a ser aplicado em políticas que fulminem as barreiras de comunicação e informação enfrentadas pelas pessoas portadoras de deficiência visual, o que, em última análise, atende ao desiderato de reparação do dano; iii) o caráter propedêutico da condenação; e iv) a capacidade econômica da demandada; tem-se que o importe da condenação fixado na origem afigura-se exorbitante, a viabilizar a excepcional intervenção desta Corte de Justiça.5. A fixação a título de astreintes, seja de montante ínfimo ou exorbitante, tal como se dá na hipótese dos autos, importa, inarredavelmente, nas mesmas consequências, quais sejam: Prestigiar a conduta de recalcitrância do devedor em cumprir as decisões judiciais, além de estimular a utilização da via recursal direcionada a esta Corte Superior, justamente para a mensuração do valor adequado. Por tal razão, devem as instâncias ordinárias, com vistas ao consequencialismo de suas decisões, bem ponderar quando da definição das astreintes.6. A sentença prolatada no bojo da presente ação coletiva destinada a tutelar direitos coletivos stricto sensu – considerada a indivisibilidade destes – produz efeitos em relação a todos os consumidores portadores de deficiência visual que litigue ou venha a litigar com a instituição financeira demandada, em todo o território nacional. Precedente da Turma.7. Recurso especial parcialmente provido.
Leia o voto do relator.