Em razão da paridade entre os cônjuges no exercício do poder familiar, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou nula uma cessão de cotas sociais de empresa feita a menores impúberes, que foram representados no negócio exclusivamente pelo pai, sem a anuência ou a ciência da mãe.
O colegiado reformou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que havia considerado válida a transferência das cotas por entender que, no caso, o pai não precisava da aquiescência da mãe para representar os interesses dos filhos.
Ao STJ, os filhos alegaram que o negócio foi nulo, uma vez que, na condição de menores impúberes, estariam impedidos de participar de sociedade comercial, além de não terem sido devidamente representados, pois o pai não detinha a sua guarda. Afirmaram ainda que o pai teria utilizado a sociedade na prática de crimes.
O relator do recurso, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, explicou que o fato de o genitor não visitar os filhos menores e não participar, na prática, da administração de seus bens, por si só, não interfere no poder de representá-los.
No caso, o ministro verificou que a cessão das cotas sociais ocorreu em 1993. Na época – destacou –, o Supremo Tribunal Federal já possibilitava a participação de menores em sociedade por cotas de responsabilidade limitada, desde que o capital estivesse integralizado, e o menor não tivesse poderes de gerência e administração.
Paridade
Sanseverino destacou que o artigo 380 do Código Civil de 1916, em sua redação original, determinava que, durante o casamento, o poder familiar era exercido pelo marido, como chefe de família, e – apenas na sua falta ou no seu impedimento – pela mulher.
Contudo, esse modelo paternalista já não existe. Segundo o relator, a Constituição de 1988 garantiu à mulher uma completa paridade em relação ao homem, estabelecendo, em seu artigo 5º, I, a igualdade jurídica entre os gêneros, além de afirmar, no parágrafo 5º do artigo 226, que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal devem ser exercidos de forma igualitária.
“Assim, a Constituição Federal, parâmetro de filtragem de todo o ordenamento jurídico, tornou inviável qualquer interpretação do artigo 380 do Código Civil de 1916 que pudesse ensejar uma posição hierarquicamente inferior da mulher em relação ao homem no ambiente familiar”, disse. O ministro lembrou que o artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente também dispõe no sentido da igualdade entre os pais no exercício do poder familiar.
Representação conjunta
Para o relator, havia, na época dos fatos, inegável paridade entre os cônjuges na administração da sociedade conjugal e no exercício do poder familiar – o que não implica a possibilidade de representação dos filhos menores exclusivamente por um ou por outro.
“Ambos devem estar não apenas cientes, mas devem formalmente representá-los nos negócios jurídicos em que eles eventualmente figurem como partes – sendo irrelevante, para tanto, o fato de os pais estarem casados, separados ou divorciados”, destacou Sanseverino.
O ministro ressaltou que a nulidade do negócio não decorre do fato de terem os filhos sido representados pelo pai, mas sim do fato de terem sido representados apenas pelo pai, quando a expressa concordância da mãe se fazia imprescindível.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA E SOCIETÁRIO. CESSÃO DE COTAS SOCIAIS A MENORES IMPÚBERES. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 1º E 129 DO CÓDIGO COMERCIAL DE 1850 NÃO CONFIGURADA. POSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO DE MENORES COMO SÓCIOS DE SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. ENTENDIMENTO JÁ ESPOSADO PELO STF À ÉPOCA DOS FATOS. VIOLAÇÃO DO ART. 145, IV, DO CC⁄16, CARACTERIZADA. MENORES REPRESENTADOS APENAS POR SEU GENITOR NA CELEBRAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO. IMPOSSIBILIDADE. PODER FAMILIAR EXERCIDO CONJUNTAMENTE PELOS PAIS. IMPRESCINDIBILIDADE DA CIÊNCIA E AUTORIZAÇÃO DA GENITORA PARA VALIDADE DO ATO. NULIDADE ABSOLUTA DO NEGÓCIO JURÍDICO.1. Controvérsia em torno da validade da cessão de cotas sociais de sociedade por quotas de responsabilidade limitada a menores impúberes, ocorrida em 1993 que, no negócio jurídico, foram representados exclusivamente por seu genitor, sem que houvesse anuência e tampouco ciência da sua genitora.2. Inocorrência de violação do art. 535, II, do CPC⁄73 quando o acórdão recorrido soluciona integralmente a lide, julgando-a de forma clara e suficiente e explicitando suas razões, não havendo falar em negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal apenas deixa de se manifestar sobre argumentos manifestamente irrelevantes para a solução da controvérsia.3. A possibilidade de participação de menores como sócios de sociedade por cotas de responsabilidade limitada já fora reconhecida pelo STF bem antes dos fatos objeto da presente ação, desde que o capital social fosse integralizado e que o menor não exercesse poderes de gerência e de administração. Entendimento jurisprudencial posteriormente incorporado à redação do enunciado normativo do § 3º ao art. 974 do CC⁄02.4. Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, assegurando expressa e inequivocamente o direito fundamental à igualdade entre os gêneros, inclusive no âmbito da sociedade conjugal, a interpretação da regra do art. 380 do CC⁄16 passou a ser no sentido de conferir, necessariamente, a ambos os cônjuges, de forma paritária, o poder familiar sobre os filhos menores. Inteligência também do art. 21 do ECA.5. O poder familiar deve ser exercido de forma igualitária e conjunta pelos pais, sendo imprescindível que a representação dos filhos menores seja efetivada pela atuação simultânea de ambos.6. Caso concreto em que menores impúberes figuraram como cessionários em contrato de cessão de cotas de sociedade por cotas de responsabilidade limitada, representados exclusivamente pelo genitor, não tendo a genitora sequer tido ciência do negócio jurídico.7. A representação inadequada de pessoas absolutamente incapazes maculou a validade do negócio jurídico, desde sua formação, ensejando a sua nulidade absoluta, nos termos do art. 145, IV, do CC⁄16.8. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
Leia o acórdão.