O intuito protetivo da norma relacionada aos absolutamente incapazes não poderá acarretar situação que acabe por prejudicá-los. Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afastou a aplicação do artigo 169, inciso I, do Código Civil de 1916 (artigo 198 do Código Civil de 2002) ao julgar recurso especial da seguradora Porto Seguro, pois considerou que suas disposições teriam no caso um efeito contrário à sua própria finalidade de proteger o menor.
A tese agora fixada pelo colegiado se alinha a posicionamento já adotado pela Quarta Turma. Com isso, foi superada a divergência anterior existente entre os órgãos competentes para julgar matéria de direito privado no STJ.
No caso julgado, um homem ajuizou ação de cobrança contra a seguradora buscando o pagamento da indenização do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT), em virtude da morte de seu pai em acidente de trânsito ocorrido em 1991. Na época do acidente, ele era menor. Tendo atingido 16 anos em 2001, propôs a ação em 2010.
Prescrição
No STJ, a seguradora alegou que a ação estaria prescrita. Segundo ela, quando o filho da vítima completou 16 anos, em 2001, ainda não havia transcorrido mais da metade do prazo de 20 anos previsto no Código Civil de 1916 (CC/1916), portanto – conforme a regra de transição do artigo 2.028 do Código Civil de 2002 (CC/2002) – deveria ser aplicado o prazo prescricional de três anos estabelecido no novo código, que entrou em vigor em janeiro de 2003. Por isso, a ação deveria ter sido proposta até 2006.
Conforme explicou o relator do recurso, ministro Villas Bôas Cueva, na vigência do CC/1916, o prazo prescricional para propor ação de cobrança do seguro obrigatório DPVAT era de 20 anos. Com a entrada em vigor do novo Código Civil, passou a ser trienal.
Todavia, “o autor era menor impúbere quando sucedeu o sinistro (acidente de trânsito de seu genitor), de modo que a prescrição não poderia correr em seu desfavor até que completasse a idade de 16 anos, já que era absolutamente incapaz”.
Segundo o ministro, “a aplicação do artigo 169 do CC/1916 (artigo 198 do CC/2002), norma criada para proteger o menor impúbere, no lugar de beneficiá-lo, vai, na realidade, ser-lhe nociva. Como sabido, a finalidade de tal dispositivo legal é amparar, em matéria de prescrição, os absolutamente incapazes, visto que não podem exercer, por si próprios, ante a tenra idade, os atos da vida civil”.
Espírito da norma
Para ele, “nunca se pode perder de vista a finalidade da lei”, ou seja, “a razão pela qual foi elaborada e os resultados ao bem jurídico que visa proteger”, não podendo resultar em um sentido contrário ao fim criado pelo legislador, nem gerar “contradições ou incoerências jurídicas”.
Nesse sentido, não pode o autor, menor à época do acidente, ser prejudicado por uma norma criada justamente com o intuito de protegê-lo, “sendo de rigor o afastamento, no caso concreto, do artigo 169, inciso I, do CC/1916 (artigo 198 do CC/2002), sob pena de as suas disposições irem de encontro à própria mens legis”, disse o ministro.
“O intuito protetivo da norma relacionada aos absolutamente incapazes não poderá acarretar situação que acabe por prejudicá-los, fulminando o exercício de suas pretensões, sobretudo se isso resulta em desvantagem quando comparados com os considerados maiores civilmente”, concluiu Villas Bôas Cueva.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SEGURO DPVAT. BENEFICIÁRIO. MENOR IMPÚBERE. ÉPOCA DO SINISTRO. PRESCRIÇÃO. CONTAGEM. NOVO CÓDIGO CIVIL. PRAZO. REDUÇÃO. REGRA DE TRANSIÇÃO. DIREITO INTERTEMPORAL. TERMO INICIAL. REGRA PROTETIVA. MENORIDADE ABSOLUTA. PREJUÍZO. INAPLICABILIDADE. FINALIDADE DA NORMA. PRESERVAÇÃO. INCOERÊNCIA JURÍDICA. AFASTAMENTO.1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3⁄STJ).2. A questão controvertida na presente via recursal consiste em saber se ocorreu a prescrição da ação de cobrança de indenização securitária advinda de seguro obrigatório (DPVAT), considerando a situação do autor, menor impúbere à época do sinistro, ocorrido sob a égide do CC⁄1916, e as novas regras de prescrição surgidas com a aprovação do CC⁄2002.3. Na vigência do Código Civil de 1916, o prazo prescricional para a propositura de ação objetivando a cobrança do seguro obrigatório DPVAT era de 20 (vinte) anos, pois, tratando-se de pretensão de natureza pessoal, aplicava-se o prazo do art. 177 do CC⁄1916 (Súmula nº 124⁄TFR). A partir da entrada em vigor do novo Código Civil, o prazo passou a ser trienal, nos termos do art. 206, § 3º, IX, do CC⁄2002 (Súmula nº 405⁄STJ). Como houve diminuição do lapso atinente à prescrição, para efeitos de cálculo, deve ser observada a regra de transição de que trata o art. 2.028 do CC⁄2002 (Enunciado nº 299 da IV Jornada de Direito Civil).4. Na hipótese, o autor era menor impúbere quando sucedeu o sinistro (acidente de trânsito de seu genitor), de modo que a prescrição não poderia correr em seu desfavor até que completasse a idade de 16 (dezesseis) anos, já que era absolutamente incapaz (art. 169 do CC⁄1916 e art. 198 do CC⁄2002). Em outras palavras, seria, em tese, beneficiado com tal norma que prevê uma causa impeditiva do prazo prescricional.5. Ocorre que, no caso, a aplicação do art. 169 do CC⁄1916 (art. 198 do CC⁄2002), norma criada para proteger o menor impúbere, no lugar de lhe beneficiar, vai, na realidade, ser-lhe nociva. Como sabido, a finalidade de tal dispositivo legal é amparar, em matéria de prescrição, os absolutamente incapazes, visto que não podem exercer, por si próprios, ante a tenra idade, os atos da vida civil.6. O intérprete não deve se apegar simplesmente à letra da lei, mas deve perseguir o espírito da norma, inserindo-a no sistema como um todo, para extrair, assim, o seu sentido mais harmônico e coerente com o ordenamento jurídico. Além disso, nunca se pode perder de vista a finalidade da lei (ratio essendi), isto é, a razão pela qual foi elaborada e os resultados ao bem jurídico que visa proteger (art. 5º da LINDB). De fato, a exegese não pode resultar em um sentido contraditório com o fim colimado pelo legislador.7. A norma impeditiva do curso do prazo de prescrição aos menores impúberes deve ser interpretada consoante sua finalidade para não gerar contradições ou incoerências jurídicas. É dizer, o intuito protetivo da norma relacionada aos absolutamente incapazes não poderá acarretar situação que acabe por lhes prejudicar, fulminando o exercício de suas pretensões, sobretudo se isso resulta em desvantagem quando comparados com os considerados maiores civilmente.8. Não pode o autor, menor impúbere à época do sinistro, ser prejudicado por uma norma criada justamente com o intuito de protegê-lo, sendo de rigor o afastamento, no caso concreto, do art. 169, I, do CC⁄1916 (art. 198 do CC⁄2002), sob pena de as suas disposições irem de encontro à própria mens legis. Precedente da Quarta Turma.9. Recurso especial não provido.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1458694