Terceira Turma afasta inalienabilidade que causava mais prejuízo do que benefício aos donatários de imóvel

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) cancelou as cláusulas de inalienabilidade e de impenhorabilidade de um imóvel doado há cerca de 20 anos, o qual, com o passar do tempo, começou a trazer mais problemas do que benefícios aos donatários. Buscando uma interpretação alinhada com a finalidade da legislação, o colegiado entendeu que o levantamento do gravame do bem doado melhor atenderia à vontade dos doadores que o instituíram.

Na origem, um casal de idosos ajuizou ação para extinguir as cláusulas de inalienabilidade e de impenhorabilidade que incidiam sobre imóvel rural recebido como doação dos pais de um deles.

Os donatários afirmaram que a administração do imóvel se tornou inviável devido a uma série de fatores, como problemas de saúde, furto de gado, prejuízos econômicos e o fato de parte do terreno ser reserva florestal.

Instâncias ordinárias não viram motivo para flexibilizar a lei

Em primeira instância, a ação foi julgada improcedente, sob o argumento de que não foram verificadas situações excepcionais que justificassem a flexibilização das normas legais. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) manteve a decisão. No recurso ao STJ, foi requerida a revogação dos gravames ou a autorização para transferi-los a outros bens.

O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, destacou que, apesar de a doação ter sido feita sob o antigo Código Civil e de haver diferenças em relação às normas atuais, ambos os regramentos permitem a desconstituição das restrições em casos excepcionais.

O ministro destacou que a doação entre pai e filho é um adiantamento de legítima, o que permite a análise do caso concreto com o objetivo de se verificar a eventual existência de justa causa para o levantamento dos gravames.

Ele observou que os contextos fáticos atual e histórico dos envolvidos devem ser considerados na decisão quanto a haver ou não essa justa causa, e que os dispositivos de proteção da pessoa idosa, apontados pelos recorrentes, são normas fundamentais que devem ter uma interpretação em conjunto com as demais regras, sob a ótica dos critérios jurisprudencialmente desenvolvidos.

Para Villas Bôas Cueva, a justa causa como critério de cancelamento de cláusulas restritivas, deve ser entendida como uma formulação jurisprudencial, uma interpretação sistemática e valorativa da matéria.

Critérios jurisprudenciais do STJ foram preenchidos

De acordo com o ministro, o caso preenche os critérios adotados pela jurisprudência do STJ para o levantamento dos gravames – entre eles, o falecimento dos doadores, a inexistência do risco de dilapidação do patrimônio dos donatários ou de seus herdeiros, e o atendimento ao interesse das próprias pessoas em proteção das quais foram estabelecidas as cláusulas restritivas.

O relator comentou que os herdeiros dos atuais proprietários do imóvel concordam com a medida. Além disso, assinalou que, após o falecimento dos donatários, “essas cláusulas já deixariam de ter eficácia, e o bem poderia ser, de qualquer forma, vendido pelos herdeiros”.

Ao admitir o cancelamento dos gravames, o relator concluiu que não há prejuízos em se permitir a venda do imóvel quando os donatários ainda estão vivos, pois são pessoas idosas e doentes, e a medida poderá lhes proporcionar uma existência com mais dignidade.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. ESTATUTO DA PESSOA IDOSA. DOAÇÃO. IMÓVEL RURAL. CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE E IMPENHORABILIDADE. CANCELAMENTO. POSSIBILIDADE. ART. 1.848 DO CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA. CRITÉRIOS JURISPRUDENCIAIS. PRESENÇA.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3).
2. Cinge-se a controvérsia a definir se o cancelamento das cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade melhor promoveria os direitos fundamentais dos recorrentes, pessoas idosas, e se existente ou não justa causa para o levantamento dos gravames no imóvel rural dos recorrentes.
3. No caso, a alegação de afronta aos arts. 2º, 3º e 37 do Estatuto da Pessoa Idosa deve ser analisada em conjunto com a arguição de violação do art. 1.848 do CC/2002, por meio de interpretação sistemática e teleológica.
4. A possibilidade de cancelamento das cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade instituída pelos doadores depende da observação de critérios jurisprudenciais: (i) inexistência de risco evidente de diminuição patrimonial dos proprietários ou de seus herdeiros (em especial, risco de prodigalidade ou de dilapidação do patrimônio);
(ii) manutenção do patrimônio gravado que, por causa das circunstâncias, tenha se tornado origem de um ônus fin anceiro maior do que os benefícios trazidos; (iii) existência de real interesse das pessoas cuja própria cláusula visa a proteger, trazendo-lhes melhor aproveitamento de seu patrimônio e, consequentemente, um mais alto nível de bem-estar, como é de se presumir que os instituidores das cláusulas teriam querido nessas circunstâncias; (iv) ocorrência de longa passagem de tempo; e, por fim, nos casos de doação, (v) se já sejam falecidos os doadores.
5. Na hipótese, todos os critérios jurisprudenciais estão presentes.
6. Recurso especial provido.

Leia o acórdão no REsp 2.022.860.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 2022860

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