De acordo com a Lei 14.230/2021, que passou a dispor sobre os atos de improbidade administrativa, a ausência de dolo ou má-fé na execução de convênio pelo coordenador da Associação dos Povos Indígenas de Roraima (APIRR) descaracteriza ato ímprobo. O convênio tinha por objeto a realização de oficinas de capacitação em piscicultura e bovinocultura, e o Ministério Público Federal (MPF), em ação civil pública, afirmou que as contas eram irregulares.
Todavia, a sentença do Juízo da 2ª Vara da Seção Judiciária de Roraima negou o pedido de responsabilização do coordenador. Inconformado, o MPF apelou ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, e o recurso foi julgado pela 3ª Turma sob relatoria da desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso.
No recurso, o MPF alegou que as contas foram julgadas irregulares pelo Tribunal de Contas da União (TCU) pela falta de comprovação da aplicação dos recursos federais. Foi juntada ao processo a inicial da ação de execução ajuizada contra o ora recorrido em decorrência da não aprovação da Tomada de Contas referente ao convênio celebrado com a Associação do Povos Indígenas do Estado de Roraima.
Na análise do processo, a relatora verificou ser acertada a sentença e afirmou a necessidade de ponderação e razoabilidade na aplicação das sanções da Lei de Improbidade Administrativas, muito severas. As provas testemunhais e fotográficas contidas nos autos comprovam que as oficinas foram efetivamente realizadas, ainda que de forma desorganizada, com a falta de correlação exata entre os gastos e o objeto do contrato, pois o dinheiro foi utilizado também para despesas da Associação, prosseguiu a magistrada.
Verificou-se ainda que o coordenador, indígena, é uma pessoa simplória e não enriqueceu com o seu trabalho. Nesse contexto, não se poderia exigir do réu mais do que fora feito, ainda que constatada a desorganização das contas e a falta de correlação entre os gastos e o objeto do contrato. “Não se trata de conceder salvo conduto a ele para gastar o dinheiro público a seu bel prazer, mas de constatar que as circunstâncias da celebração do convênio já indicavam uma precariedade de tal monta que era até mesmo previsível sua consecução de forma atípica”, frisou Maria do Carmo.
Portanto, na ausência do elemento subjetivo da desonestidade, má-fé e dolo para com a Administração Pública, a conduta do coordenador pode caracterizar negligência ou imperícia (conduta culposa), mas insuficiente para caracterizar o ato de improbidade administrativa, concluiu a magistrada e votou por negar o recurso do MPF e confirmar a sentença.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/1992. ALTERAÇÃO PELA LEI 14.230/2021. NORMA PROCESSUAL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO TEMPUS REGIT ACTUM. NORMA MATERIAL. SUPERVENIÊNCIA DE LEI NOVA. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. INDÍGENA. EXECUÇÃO ATÍPICA DO CONVÊNIO. AUSÊNCIA DE DOLO OU MÁ-FÉ. EVENTUAL CULPA. INEXISTÊNCIA DE ATO ÍMPROBO. SENTENÇA MANTIDA.
- A Lei 8.429/1992, alterada pela Lei 14.230/2021, passou a vigorar na data da sua publicação, em 26/10/2021. As controvérsias em torno da aplicação imediata das novas disposições legais devem ser analisadas em relação às questões de natureza processual e material.
- Às questões de ordem processual são aplicáveis as leis em vigor no momento em que prolatado o decisum na instância a quo, em obediência ao princípio tempus regit actum (art. 14 do CPC e, por analogia, art. 2º do CPP). Já às questões de natureza material, a nova lei tem aplicação imediata aos feitos em andamento, nos termos do art. 1º, § 4º, que dispõe: aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.
- A novel legislação passa a exigir o dolo para caracterização do ato ímprobo no tocante às condutas previstas no arts. 9º, 10 e 11 da Lei 8.429/1992. A mesma estrutura se vê do teor do caput dos três referidos dispositivos, nos quais expressamente foi excluída a culpa como modalidade de ato de improbidade administrativa.
- O direito administrativo sancionador, como sub-ramo do Direito Administrativo, expressa o poder punitivo do Estado ante o administrado, seja ele o próprio servidor público ou o particular. Daí decorre sua aplicação aos atos de improbidade administrativa — notadamente para reconhecer a aplicação imediata de seus preceitos a condutas antes consideradas como suficientes para caracterizar o ato de improbidade, e agora tidas como irrelevantes, ou atípicas.
- A opção legislativa de revogar alguns preceitos da lei de improbidade administrativa é válida, pois decorre de previsão constitucional contida no art. 37, § 4º, o qual preceitua que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
- Ainda na vigência da Lei 8.429/1992, descabia falar em improbidade administrativa, à exceção da culpa grave, no caso do art. 10, sem a demonstração de dolo. Indispensável já era, pois, a demonstração do elemento anímico, ou seja, a vontade livre e consciente dirigida ao fim de praticar a conduta vedada pela norma jurídica.
- A situação dos autos é excepcional. O réu, Coordenador da Associação dos Povos Indígenas de Roraima — APIRR, era executor do Convênio MDA 58/2004, que tinha por objeto a capacitação de indígenas em piscicultura e bovinocultura. A prova dos autos, seja testemunhal ou fotográfica, revela que as oficinas foram realizadas. Constatou-se também que havia desorganização e falta de correlação exata entre os gastos e o objeto do contrato, pois o dinheiro foi utilizado também para despesas da Associação, como custeio de combustível e reparo de veículo, e ficava suscetível a reclames das lideranças indígenas, que acabavam por vincular o uso das verbas.
- O réu é indígena e, conforme constatado na sentença, é uma pessoa simplória, que vive nas comunidades indígenas e não enriqueceu com seu trabalho, pois não possui carro ou outro bem de valor. O réu inclusive mora em comunidade indígena. Nesse contexto, não se poderia exigir do réu mais do que fora feito. Não se trata de conceder salvo conduto a ele para gastar o dinheiro público a seu bel prazer, mas de constatar que as circunstâncias da celebração do Convênio já indicavam uma precariedade de tal monta que era até mesmo previsível sua consecução de forma atípica. Nisso, com mais acerto a sentença, ao considerar que os rigores da Tomada de Contas Especial não levam em consideração esses fatos e, por isso mesmo, não deve ser tido como parâmetro, para configuração, no caso, do ato ímprobo.
- O agir do réu, ao não dar rigoroso cumprimento ao objeto e destino da verba do Convênio, pode até indicar conduta culposa, por imperícia ou negligência. Tal, contudo, não é suficiente ou suscetível de caracterizar o ato de improbidade administrativa, por total ausência de previsão legal ou porque não caracteriza o elemento anímico, a desonestidade, a má-fé, o dolo para com a Administração Pública.
- Pelos mesmos fatos, o apelado foi condenado à pena de três anos e três meses de reclusão e 85 dias-multa, pelo crime de peculato, do art. 312 do Código Penal; e ainda responde a ação civil de execução da dívida, no montante atualizado de R$ 216.599,43, quanto o valor repassado à Associação foi de R$ 77.360,00. Tudo isso, aliado ao rigor dos pedidos condenatórios constantes desta ação de improbidade (todas as modalidades de previstas na Lei 8.429/1992: art. 9º – enriquecimento ilícito; art. 10 – prejuízo ao erário; e art. 11 – ofensa aos princípios que regem a Administração Pública), mesmo que haja independência entre as instâncias, faz recordar o brocardo latino summum jus suma injuria, aqui traduzido como: o excesso de justiça pode redundar grave injustiça.
- Apelação a que se nega provimento.
Processo: 0003912-64.2011.4.01.4200