A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou nova aplicação de questão de prova discursiva para um candidato que alegou ofensa ao princípio da vinculação ao edital no concurso para promotor de justiça de Santa Catarina realizado em 2019.
Segundo ele, a banca examinadora, em um dos pontos do edital, estabeleceu que o processo seletivo preambular discursivo seria constituído por dois grupos de provas, compostas de questões teóricas e práticas.
No primeiro grupo, seriam cobradas as disciplinas direito penal, direito processual penal e execução penal; no segundo, figurariam as matérias direito civil, direito processual civil, direito da infância e adolescência, e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
O edital previa também que as provas das matérias citadas poderiam conter “incursões incidentais” em outras áreas do direito – entre elas, o direito falimentar.
Cobrança do tema de forma aprofundada
O candidato relatou que uma das questões tratou inteiramente de direito falimentar – e de forma aprofundada, não apenas em “incursões incidentais”. A comissão do concurso, por outro lado, afirmou que o conteúdo só foi cobrado de forma transversal na questão.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) entendeu não caber ao Judiciário tal análise, sob pena de discutir tema afeto ao mérito administrativo. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), invocada pela corte catarinense, considera que “não compete ao Judiciário, no controle de legalidade, substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos e notas a eles atribuídas”.
No recurso ao STJ, o candidato pediu o reconhecimento do erro da banca, com atribuição de pontuação integral à questão.
Controle judicial da legalidade dos atos administrativos
Em seu voto, o relator do recurso, ministro Sérgio Kukina, lembrou que a banca examinadora é livre para escolher os temas e os critérios avaliativos do concurso, os quais devem ser previamente indicados no edital de abertura. Entretanto, destacou que essas decisões se tornam vinculantes para a banca, tanto na elaboração quanto na aplicação da prova.
O magistrado ressaltou que, de fato, não cabe ao Judiciário intervir na discricionariedade dos avaliadores, mas, no caso analisado, há uma situação “singular e inusitada” criada pelo examinador – o que afasta a proibição imposta ao juiz.
“De incursão incidental ou cobrança de forma transversal, certamente, não se trata: a referida questão aborda o direito falimentar de modo aprofundado, e não incidental. O enunciado demandava do candidato conhecimento prospectivo sobre a prática e a atuação do Ministério Público nos processos de falência e recuperação judicial”, comentou o relator.
Edital constitui lei entre as partes
Sérgio Kukina reconheceu que, dependendo das atribuições exercidas na instituição, o conhecimento da matéria pode ser muito importante para os membros do Ministério Público. No entanto, se o edital do concurso para ingresso na carreira limita a cobrança da matéria na forma de “incursões incidentais”, a banca deve observar estritamente o que foi preestabelecido – e isso não ocorreu.
O relator recordou que a jurisprudência do STJ é firme no sentido de que “o edital do concurso público constitui lei entre as partes, gerando direitos e obrigações tanto para a administração pública quanto para o candidato, compelidos ambos à sua fiel observância”.
Ele observou ainda que o próprio Conselho Superior do Ministério Público de Santa Catarina, em aparente reconhecimento da falha, alterou o edital do concurso subsequente, excluindo a expressão “incursões incidentais”.
Razões para não dar a pontuação integral
Quanto ao pedido do candidato para receber a pontuação integral da questão, Kukina afirmou que seria “paradoxal” reconhecer a arbitrariedade na inserção do conteúdo e atribuir pontuação a ele.
“Seria trocar uma arbitrariedade administrativa por outra, de ordem judicial, em clara violação dos princípios da razoabilidade e dos preceitos constitucionais que regulam os concursos públicos, sobretudo os da imparcialidade e da isonomia”, disse.
Acompanhando o relator, a turma determinou à banca que, em dez dias úteis após o trânsito em julgado da decisão, aplique ao candidato nova questão de prova, elaborada em conformidade com o edital.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PARA INGRESSO NA CARREIRA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SANTA CATARINA. EMPATE NA VOTAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. REGIMENTO INTERNO DO TJSC. PREVALÊNCIA DO ATO IMPUGNADO. CONTEÚDO DE QUESTÃO EM DESCONFORMIDADE COM O EDITAL DO CERTAME. OFENSA AO PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO AO EDITAL. NECESSIDADE DE REELABORAÇÃO DA QUESTÃO EM CONFORMIDADE COM AS REGRAS EDITALÍCIAS. ORDEM CONCEDIDA EM MENOR EXTENSÃO.1. Embora sejam remédios constitucionais que visam a proteger direitos e garantias fundamentais, o Mandado de Segurança e o Habeas Corpus não se confundem. Enquanto o remédio constitucional do Habeas Corpus tem por escopo resguardar o direito à liberdade de locomoção (art. 5.º, inciso LXVIII, da CF), o Mandado de Segurança possui o objetivo de proteger direito líquido e certo, quando o responsável pela ilegalidade ou pelo abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (art. 5.º, inciso LXIX, da CF).2. Não há qualquer incoerência na disposição regimental do TJSC de que, na hipótese de empate na votação, deve prevalecer a decisão ou o ato administrativo impugnado; tal regra, aliás, encontra previsão equivalente no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.3. A Banca Examinadora é livre na escolha dos temas e de critérios avaliativos a serem observados no certame, os quais devem ser previamente indicados no edital de abertura. Contudo, essa mesma escolha, por óbvio, condiciona e determina o posterior comportamento do colegiado, tanto na elaboração como na aplicação da prova.4. No caso, o item 6.3 do edital previa que “As provas a que alude o item 6.1 poderão conter incursões incidentais sobre Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Eleitoral, Direito Falimentar e Legislação Institucional”.5. Entretanto, o conteúdo da questão impugnada pelo autor impetrante revela frontal descompasso com essa regra editalícia, pois nela se exigiu do candidato, em sua totalidade e não apenas de modo incidental, conhecimento específico e aprofundado em direito falimentar, em clara violação ao postulado de que o edital é a lei do concurso. Nesse sentido: RMS 61.995⁄RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe 1°⁄6⁄2020).6. Recurso ordinário provido para reformar o acórdão recorrido e conceder a ordem, porém em menor extensão que a inicialmente requerida pelo impetrante.