Ainda que o instrumento contratual contenha cláusula que preveja a possibilidade de rescisão injustificada por qualquer das partes contratantes, o eventual rompimento deve ser realizado de forma responsável, com a avaliação dos investimentos realizados por força do acordo firmado e com a observância de princípios como a boa-fé e a finalidade social do contrato.
O entendimento foi adotado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para restabelecer parcialmente sentença que condenou instituições financeiras ao pagamento de indenização por lucros cessantes e danos materiais a empresa que teve contrato prematuramente rompido. A decisão foi unânime.
“Não se trata, é bom que se diga, da assunção, por uma das partes, dos infortúnios que porventura sejam experimentados pela outra, por quaisquer razões, pela influência de quaisquer elementos. A responsabilidade que se atribui ao contratante que se utilizada da faculdade de romper o pacto diz respeito apenas aos danos experimentados pelo contratante diretamente ligados ao fato de não mais subsistir o que fora avençado, quando as condições da avença apontavam para destino diametralmente diverso”, afirmou em seu voto o relator, ministro Luis Felipe Salomão.
O recurso julgado pelo STJ teve origem em ação indenizatória proposta por empresa de cobrança contra diversas instituições de financiamento e arrendamento mercantil, sob a alegação de que a empresa, após contrato firmado com as instituições, teria feito grandes investimentos para atender a demanda pactuada.
Contudo, após 11 meses de vigência, a empresa foi informada de que o contrato seria rescindido de forma unilateral, pois não atendia mais os interesses das instituições financeiras.
Responsabilização
Em primeira instância, as empresas rés foram condenadas ao pagamento de indenização de cerca de R$ 900 mil por danos morais e materiais. Todavia, em julgamento de apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) declarou improcedente o pedido indenizatório, por entender que o contrato não possuía prazo determinado, podendo ser validamente rescindido por qualquer das partes, ressalvado apenas o dever de comunicação no prazo mínimo de cinco dias úteis.
Em recurso especial, a empresa de cobrança alegou a impossibilidade de resilição unilateral dos contratos firmados por prazo indeterminado sem que haja responsabilização por perdas e danos, tendo em vista a legítima expectativa de que o contrato tenha duração compatível com os investimentos realizados.
Evolução de entendimento
O ministro Luis Felipe Salomão ressaltou, inicialmente, a evolução dos temas relativos à responsabilidade civil no sentido de inserir dentro do conceito de “ilicitude” um ato contrário à boa-fé, à finalidade social e econômica ou “se praticado com ofensa aos bons costumes”.
No caso específico analisado, o ministro entendeu que as instituições financeiras agiram de forma contraditória ao exigir investimentos necessários à prestação dos serviços e, de forma injustificada, rescindir unilateralmente o contrato.
“É inconteste que inexistiu qualquer conduta desabonadora da empresa recorrente, seja na conclusão ou na execução do contrato, que somado ao progressivo e constante aumento dos serviços prestados, dada a crescente demanda, conferiram aos autores a legítima impressão de que a avença perduraria ainda por tempo razoável. Agrava a antijuridicidade da conduta das recorridas a recusa na concessão de prazo para a reestruturação econômica da contratada”, apontou o ministro.
O relator lembrou que o STJ, inclusive em julgamento de resilição de contrato pelo Poder Público em que foram alegados princípios como a precariedade e a discricionariedade, já estabeleceu que a rescisão prematura e imotivada gerou à Administração a obrigação de indenização o contratado.
Comprovação
Apesar do reconhecimento da obrigação de indenizar, o ministro Salomão salientou que, conforme o artigo 473, parágrafo único, não é juridicamente possível indenizar expectativa de direito, ante a necessidade da comprovação dos prejuízos materiais efetivamente sofridos.
“É que o dispositivo do código civil pretende a indenização, tão somente, do ‘interesse positivo’, identificado pela doutrina como o interesse no cumprimento do contrato, ou seja, o montante que necessariamente deveria ter sido despendido para a execução do contrato e que, tendo em vista o abrupto desenlace, não se recompôs”, concluiu o relator ao prover parcialmente o recurso da empresa de cobrança, afastando, porém, a indenização por danos morais.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CLÁUSULA CONTRATUAL. RESILIÇÃO UNILATERAL. DENÚNCIA IMOTIVADA. VULTOSOS INVESTIMENTOS PARA REALIZAÇÃO A DA ATIVIDADE. DANO INJUSTO. BOA-FÉ OBJETIVA. FINS SOCIAL E ECONÔMICO. OFENSA AOS BONS COSTUMES. ART. 473, PARÁGRAFO ÚNICO DO CC⁄2002. PERDAS E DANOS DEVIDOS. LUCROS CESSANTES AFASTADOS.
1. É das mais importantes tendências da responsabilidade civil o deslocamento do fato ilícito, como ponto central, para cada vez mais se aproximar da reparação do dano injusto. Ainda que determinado ato tenha sido praticado no exercício de um direito reconhecido, haverá ilicitude se o fora em manifesto abuso, contrário à boa-fé, à finalidade social ou econômica do direito, ou, ainda, se praticado com ofensa aos bons costumes.
2. Tendo uma das partes agido em flagrante comportamento contraditório, ao exigir, por um lado, investimentos necessários à prestação dos serviços, condizentes com a envergadura da empresa que a outra parte representaria, e, por outro, após apenas 11 (onze) meses, sem qualquer justificativa juridicamente relevante, a rescisão unilateral do contrato, configura-se abalada a boa-fé objetiva, a reclamar a proteção do dano causado injustamente.
3. Se, na análise do caso concreto, percebe-se a inexistência de qualquer conduta desabonadora de uma das partes, seja na conclusão ou na execução do contrato, somada à legítima impressão de que a avença perduraria por tempo razoável, a resilição unilateral imotivada deve ser considerada comportamento contraditório e antijurídico, que se agrava pela recusa na concessão de prazo razoável para a reestruturação econômica da contratada.
4. A existência de cláusula contratual que prevê a possibilidade de rescisão desmotivada por qualquer dos contratantes não é capaz, por si só, de afastar e justificar o ilícito de se rescindir unilateralmente e imotivadamente um contrato que esteja sendo cumprindo a contento, com resultados acima dos esperados, alcançados pela contratada, principalmente quando a parte que não deseja a resilição realizou consideráveis investimentos para executar suas obrigações contratuais.
5. Efetivamente, a possibilidade de denúncia “por qualquer das partes” gera uma falsa simetria entre os contratantes, um sinalagma cuja distribuição obrigacional é apenas aparente. Para se verificar a equidade derivada da cláusula, na verdade, devem ser investigadas as consequências da rescisão desmotivada do contrato, e, assim, descortina-se a falácia de se afirmar que a resilição unilateral era garantia recíproca na avença.
6. O mandamento constante no parágrafo único do art. 473 do diploma material civil brasileiro se legitima e se justifica no princípio do equilíbrio econômico. Com efeito, deve-se considerar que, muito embora a celebração de um contrato seja, em regra, livre, o distrato é um ônus, que pode, por vezes, configurar abuso de direito.
7. Estando claro, nos autos, que o comportamento das recorridas, consistente na exigência de investimentos certos e determinados como condição para a realização da avença, somado ao excelente desempenho das obrigações pelas recorrentes, gerou legítima expectativa de que a cláusula contratual que permitia a qualquer dos contratantes a resilição imotivada do contrato, mediante denúncia, não seria acionada naquele momento, configurado está o abuso do direito e a necessidade de recomposição de perdas e danos, calculadas por perito habilitado para tanto. Lucros cessantes não devidos.
8. Recurso especial parcialmente provido.