Para Sexta Turma, retroatividade da representação no estelionato não gera extinção automática de punibilidade

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que é possível a aplicação retroativa do parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal, inserido pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime).

Para o colegiado, a retroatividade da exigência de representação da vítima no crime de estelionato alcança todos os processos ainda não transitados em julgado, mas não gera a extinção da punibilidade automática naqueles em que a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal.

A decisão da turma foi aplicada no julgamento de habeas corpus impetrado contra acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) que manteve o réu condenado à pena de reclusão por estelionato.

No habeas corpus dirigido ao STJ, a defesa alegou que a norma deveria retroagir por ser benéfica para o réu e, como não houve representação da vítima, pediu que fosse declarada extinta a punibilidade pela decadência.

Caráter misto

Para definir a possibilidade de aplicar o novo dispositivo legal a fatos anteriores, o relator do caso, ministro Sebastião Reis Júnior, disse que é preciso estabelecer o caráter – processual ou penal – da norma que cria uma condição de procedibilidade da ação, como a exigência de representação.

Segundo ele, as normas que regulam a ação penal são de natureza mista, regidas pelos princípios da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva. Com isso, a aplicação da lei nova ou antiga dependerá de qual seja mais benéfica ao réu no caso concreto.

“Pode-se afirmar que a ação penal pública incondicionada é mais gravosa ao acusado, enquanto a ação privada é menos gravosa, estando a ação pública condicionada à representação em posição intermediária”, ponderou o relator.

“Parece notório que o parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal, inserido pela Lei 13.694/2019, é norma mais benéfica em relação ao regime anterior. E, pelo caráter misto, alcança casos anteriores à sua vigência”, declarou.

Todavia, no entender do relator, não é possível conferir à norma do Pacote Anticrime um efeito de extinção da punibilidade. Segundo ele, o legislador, ao alterar a natureza da ação penal do crime de estelionato, não pretendeu em nenhum momento criar uma hipótese de abolitio criminis.

Omissão legislativa

Sebastião Reis Júnior afirmou que houve uma omissão legislativa em relação aos conflitos decorrentes da lei no tempo, os quais podem ser resolvidos pela interpretação.

Ele lembrou que a Lei 9.099/1995, em seu artigo 91, disciplinou questão semelhante ao tratar da ação penal nos crimes de menor potencial ofensivo, transformando-a de ação pública incondicionada em pública condicionada à representação, com determinação de que o ofendido seja intimado para oferecer representação em 30 dias, sob pena de decadência. Para o relator, é possível a aplicação da mesma ideia ao caso em julgamento.

O ministro rebateu a conclusão do TJSC de que o oferecimento da denúncia seria um ato jurídico perfeito e por isso estaria fora do alcance da mudança legislativa.

“O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do artigo 5º da Constituição Federal”, afirmou. Para o relator, “considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão”.

Ao conceder parcialmente o habeas corpus, Sebastião Reis Júnior determinou a aplicação retroativa do parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal – combinado com a aplicação analógica do artigo 91 da Lei 9.099/1995 –, para que a vítima seja intimada e manifeste seu interesse na continuação da persecução penal, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência.

O recurso ficou assim ementado:

HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI N. 13.964⁄2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N. 9.099⁄1995 POR ANALOGIA.
1. As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva.
2. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa.
3. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu.
4. A retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099⁄1995 por analogia.
5. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão.
6. Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.964⁄2019, devendo ser a vítima intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do art. 91 da Lei n. 9.099⁄1995.

Leia o acórdão.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): HC 583837

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