A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a indenização de R$ 25 mil a título de danos morais que uma empresa de transportes públicos terá de pagar a um cadeirante que precisava se esconder para poder embarcar no ônibus, já que os motoristas evitavam parar se soubessem que ele estava no ponto.
Segundo os autos do processo, o acesso ao cadeirante era dificultado de forma deliberada. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) considerou que a negativa de prestação do serviço público foi comprovada pela ocorrência de sucessivas falhas, tais como o não funcionamento do elevador do ônibus e a recusa dos motoristas a parar no ponto.
A relatora do caso no STJ, ministra Nancy Andrighi, disse que as provas colhidas no processo comprovam o dano moral indenizável.
Cidadania
“A renitência da recorrente em fornecer o serviço ao recorrido é de tal monta que se chegou à inusitada situação de o usuário ‘precisar se esconder e pedir a outra pessoa para dar o sinal, pois o motorista do ônibus não pararia se o visse no ponto’, conforme destacou o acórdão recorrido”, afirmou a relatora.
A ministra lembrou que a acessibilidade no transporte coletivo é fundamental para a efetiva inclusão social das pessoas com deficiência, pois lhes propicia o exercício da cidadania e dos direitos e liberdades individuais, interligando-as a locais de trabalho, lazer e serviços de saúde, entre outros.
“Sem o serviço adequado e em igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, as pessoas com deficiência ficam de fora dos espaços urbanos e interações sociais, o que agrava ainda mais a segregação que historicamente lhes é imposta”, resumiu.
Direito local
A transportadora alegou que o elevador deixou de ser usado para embarque do passageiro no ônibus somente no período em que ele utilizava muletas, o que afastaria qualquer ilegalidade do comportamento dos funcionários da empresa, pois, conforme lei municipal, o acesso por meio do elevador é exclusivo para cadeirantes.
Segundo a ministra, a tese da empresa não pode ser apreciada, já que, a teor do disposto na Súmula 280 do Supremo Tribunal Federal, aplicável analogicamente no âmbito do STJ, é inviável a análise de direito local em julgamento de recurso especial.
“Assim delimitado o cenário fático-probatório dos autos, observada, ainda, a inviabilidade de análise das normas locais invocadas pela recorrente, é inequívoca a má prestação do serviço público de transporte ao recorrido, tendo por causa determinante o fato de ser ele usuário de cadeira de rodas, do tipo motorizada”, declarou a ministra.
Nancy Andrighi observou ainda que talvez fosse o caso de majorar o valor da indenização por danos morais, mas não houve pedido nesse sentido por parte do cadeirante.
O recurso ficou assim ementado:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE PÚBLICO MUNICIPAL. PESSOA COM DEFICIÊNCIA USUÁRIA DE CADEIRA DE RODAS MOTORIZADA. FALTA DE ACESSIBILIDADE. TRATAMENTO DISCRIMINATÓRIO PELOS PREPOSTOS DA CONCESSIONÁRIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE OU ERRO MATERIAL. AUSÊNCIA. ANÁLISE DE DIREITO LOCAL. INVIABIALIDADE. VIOLAÇÃO DO DIREITO AO TRANSPORTE E MOBILIDADE DO USUÁRIO DO SERVIÇO. DANO MORAL CONFIGURADO. VALOR FIXADO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. ADEQUAÇÃO. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. MAJORAÇÃO.1. Ação ajuizada em 02⁄12⁄2015. Recurso especial interposto em 22⁄05⁄2017 e distribuído ao Gabinete em 23⁄01⁄2018.2. O propósito recursal, para além da negativa de prestação jurisdicional, consiste em avaliar a razoabilidade do quantum fixado pelo Tribunal de origem a título de compensação por danos morais ao recorrido, por ter sido negligenciado e discriminado enquanto pessoa com deficiência física motora, na utilização de ônibus do transporte coletivo urbano.3. Ausentes os vícios de omissão, contradição, obscuridade ou erro material no acórdão recorrido, não há se falar em violação do art. 1.022 do CPC⁄2015.4. É inviável a análise de direito local em sede de recurso especial, ante a aplicação analógica da Súmula 280⁄STF.5. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – incorporada ao ordenamento pátrio com status de emenda constitucional – alçou a acessibilidade a princípio geral a ser observado pelos Estados Partes, atribuindo-lhe, também, o caráter de direito humano fundamental, sob a visão de que a deficiência não se trata de um problema na pessoa a ser curado, mas de um problema na sociedade, que impõe barreiras que limitam ou até mesmo impedem o pleno desempenho dos papeis sociais (o denominado “modelo social da deficiência”).6. Nessa linha, a Lei 13.146⁄2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – LBI) define a acessibilidade como “possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida” (art. 3º, I). E mais, dispõe expressamente tratar-se a acessibilidade um direito da pessoa com deficiência, que visa garantir ao indivíduo “viver de forma independente e exercer seus direitos de cidadania e de participação social” (art. 53).7. A acessibilidade no transporte coletivo é de nodal importância para a efetiva inclusão das pessoas com deficiência, pois lhes propicia o exercício da cidadania e dos direitos e liberdades individuais, interligando-as a locais de trabalho, lazer, saúde, dentre outros. Sem o serviço adequado e em igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, as pessoas com deficiência ficam de fora dos espaços urbanos e interações sociais, o que agrava ainda mais a segregação que historicamente lhes é imposta.8. Hipótese em que a recorrente, enquanto concessionária de serviço público e atora social, falhou bruscamente no seu dever de promoção da integração e inclusão da pessoa com deficiência, indo na contramão do movimento social-jurídico que culminou na promulgação da Convenção e, no plano interno, na elaboração da LBI.9. Consoante destacou o acórdão recorrido, houveram sucessivas falhas na prestação do serviço, a exemplo do não funcionamento do elevador de acesso aos ônibus e do tratamento discriminatório dispensado ao usuário pelos prepostos da concessionária. A renitência da recorrente em fornecer o serviço ao recorrido é de tal monta que se chegou à inusitada situação de o usuário “precisar se esconder e pedir a outra pessoa dar o sinal, pois o motorista do ônibus não pararia se o visse no ponto”.10. Nesse cenário, o dano moral, entendido como lesão à esfera dos direitos da personalidade do indivíduo, sobressai de forma patente. As barreiras físicas e atitudinais impostas pela recorrente e seus prepostos repercutiram na esfera da subjetividade do autor-recorrido, restringindo, ainda, seu direito à mobilidade.11. Não há se falar em redução do quantum compensatório, estimado pelo Tribunal de origem em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), diante da gravidade da agressão à dignidade do recorrido enquanto ser humano.12. Recurso especial conhecido e não provido, com majoração dos honorários advocatícios de sucumbência.
Leia o acórdão.