A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a sociedade empresária de factoring, embora não constitua instituição financeira, pode celebrar contrato de mútuo feneratício (empréstimo de dinheiro com cobrança de juros), devendo apenas respeitar as regras dessa espécie contratual aplicáveis aos particulares.
No caso analisado pelo colegiado, discutiram-se a natureza jurídica do contrato celebrado entre as partes e a possibilidade de empréstimo em tais circunstâncias.
Dois clientes da faturizadora, em embargos à execução, sustentaram a invalidade das confissões de dívida que deram origem à cobrança, por derivarem – conforme alegaram – de contrato de factoring.
Ao analisar o caso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) descaracterizou o contrato celebrado entre as partes para contrato de mútuo feneratício, sob o fundamento de que houve empréstimo de dinheiro pela faturizadora e que essa prática, em si mesma, não é vedada pelo ordenamento jurídico nacional.
Ao STJ, os executados alegaram que a faturizadora não poderia celebrar contrato de mútuo, atividade que seria privativa de instituições financeiras, de acordo com os artigos 17 e 18 da Lei 4.595/1964.
Empréstimo não é atividade privativa de instituição financeira
Em seu voto, a relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, destacou que a autonomia privada predomina no direito civil brasileiro, de forma que se confere, em regra, total liberdade negocial aos sujeitos da relação obrigacional.
Entretanto, ela ponderou que, na hipótese de contratos típicos – aqueles expressamente previstos em lei, como o de mútuo (artigos 586 a 592 do Código Civil) –, além das regras gerais, incidem as disposições legais previstas especificamente para tal modalidade de contrato, sendo nulas as cláusulas em sentido contrário quando se tratar de direito indisponível.
“Pela leitura dos dispositivos que regulamentam o tema, verifica-se não haver vedação no Código Civil brasileiro referente à estipulação de mútuo feneratício, tampouco restrições quanto aos sujeitos que podem integrar os polos da relação contratual”, afirmou a ministra.
A ministra destacou que o artigo 17 da Lei 4.595/1964 “delimita o conceito de instituições financeiras, mas não veda a prática de mútuo feneratício entre particulares” e, “na realidade, a importância de definir se o sujeito que efetua o empréstimo de dinheiro, de forma onerosa, é ou não instituição financeira consiste em apurar qual é o regime jurídico aplicável em relação aos juros e a capitalização”.
Cobrança de juros é limitada a 12% ao ano para não integrantes do SFN
A relatora observou que, para as pessoas físicas ou jurídicas não integrantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN) – a exemplo das sociedades de fomento mercantil (factoring) –, além do respeito aos artigos citados, os juros não podem ultrapassar a taxa de 12% ao ano, conforme a Lei de Usura (Decreto 22.626/1933), sendo permitida apenas a capitalização anual. Segundo a magistrada, esse também é o entendimento da Quarta Turma do STJ.
“Em que pese não seja usual, não é vedado à sociedade empresária de factoring celebrar contrato de mútuo feneratício com outro particular”, concluiu a ministra. Como o TJRS, analisando as provas e as cláusulas contratuais, reconheceu que o contrato assinado foi de mútuo, e não de factoring, Nancy Andrighi entendeu que essas conclusões não podem ser alteradas em julgamento de recurso especial, por imposição da Súmula 5 e da Súmula 7 do STJ.
Quanto à taxa de juros cobrada no caso em julgamento, a ministra apontou que não cabe ao STJ analisar eventual abuso, pois isso não foi alegado no recurso especial, e nem mesmo perante o tribunal de origem houve pedido de revisão dos encargos para, eventualmente, limitá-los a 12% ao ano. Além disso, qualquer discussão a respeito também esbarraria nas referidas súmulas.
“Mesmo havendo a descaracterização do contrato de factoring para o de mútuo feneratício, não há que se falar em invalidade, porquanto o negócio jurídico será conservado, respeitadas as regras relativas a esta espécie contratual”, concluiu.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EMBARGOS À EXECUÇÃO. NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO. FACTORING. DESCARACTERIZAÇÃO PARA MÚTUO FENERATÍCIO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 5 E 7 DO STJ. AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE DE CONTRATAR. CONTRATO TÍPICO. OBSERVÂNCIA ÀS REGRAS ESPECÍFICAS. EMPRÉSTIMO DE DINHEIRO (MÚTUO FENERATÍCIO) ENTRE PARTICULARES. POSSIBILIDADE. JUROS DE 12% AO ANO E CAPITALIZAÇÃO APENAS ANUAL. ART. 591 DO CC⁄2002. LEI DA USURA. INCIDÊNCIA. EMPRÉSTIMO CONCEDIDO POR SOCIEDADE EMPRESÁRIA DE FACTORING QUE NÃO É INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. NULIDADE. AUSÊNCIA. ANÁLISE DE EVENTUAL ABUSIVIDADE DA TAXA DE JUROS. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ALEGAÇÃO NAS RAZÕES DO RECURSO ESPECIAL.1. Ação de embargos à execução, ajuizada em 24⁄8⁄2018, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 28⁄7⁄2021 e concluso ao gabinete em 10⁄3⁄2022.2. O propósito recursal é decidir se (I) a natureza jurídica do contrato entabulado entre as partes é de factoring ou de mútuo, a fim de avaliar a validade de cláusula que prevê direito de regresso; e (II) a sociedade empresária de fomento mercantil, a despeito de não ser instituição financeira, pode celebrar contrato de mútuo feneratício com outro particular.3. No direito civil brasileiro, predomina a autonomia privada, de modo que se confere, em regra, total liberdade negocial aos sujeitos da relação obrigacional. Todavia, na hipótese de contratos típicos, além das regras gerais, incidem as disposições legais previstas especificamente para aquela modalidade de contrato, sendo nulas as cláusulas em sentido contrário quando se tratar de direito indisponível.4. Não há proibição legal para empréstimo de dinheiro (mútuo feneratício) entre particulares (pessoas físicas ou jurídicas não integrantes do Sistema Financeiro Nacional). Nessa hipótese, entretanto, devem ser observados os arts. 586 a 592 do CC⁄2002, além das disposições gerais, e eventuais juros devidos não podem ultrapassar a taxa de 12% ao ano, permitida apenas a capitalização anual (arts. 591 e 406 do CC⁄2002; 1º do Decreto nº 22.626⁄1933; e 161, § 1º, do CTN), sob pena de redução ao limite legal, conservando-se o negócio. Precedentes.5. Assim, embora não constitua instituição financeira, não é vedado à sociedade empresária de factoring celebrar contrato de mútuo feneratício, devendo apenas serem respeitadas as regras dessa espécie contratual aplicáveis aos particulares.6. Hipótese em que (I) foi celebrado contrato intitulado como sendo de factoring entre duas pessoas jurídicas, dentre elas uma sociedade empresária de fomento mercantil; (II) o contrato foi descaracterizado pelo Tribunal de origem para o de mútuo feneratício; (III) não há que se falar em invalidade do contrato em razão do empréstimo não ter sido concedido por instituição financeira; (IV) as razões do recurso especial se limitam a discutir a validade do negócio, sem alegar abusividade da taxa de juros e sem indicar dispositivos legais eventualmente violados referentes a esse tema, sendo inviável a sua análise no presente julgamento.7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido.
Leia o acórdão no REsp 1.987.016.