Apesar de os contratos de alienação fiduciária de veículos independerem da tradição para transferência da propriedade, seu aperfeiçoamento somente se concretiza com a efetiva entrega do bem ao consumidor final.
O entendimento foi da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar o caso de uma concessionária de veículos que vendeu dois carros para uma agência, mas recebeu os pagamentos em cheques sem fundos.
Apesar de a concessionária ter cancelado as notas fiscais de venda e de não ter havido tradição, tomou conhecimento de que a agência já havia alienado os veículos a terceiros. Os veículos foram financiados por instituições bancárias distintas, em alienação fiduciária.
A concessionária pediu que fosse declarada a nulidade do contrato de compra e venda firmado entre ela e a agência em razão do dolo na emissão de cheques sem fundos. Os bancos apresentaram oposição, pedindo a declaração de propriedade dos veículos financiados.
Existente e válido
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) considerou que, apesar de não ter havido a entrega dos bens, o contrato de compra e venda existiu e foi plenamente válido. Afastou, ainda, a alegação de dolo, ao afirmar que não decorreria automaticamente da emissão de cheques sem fundos.
Após os embargos de divergência apresentados por um dos bancos, o TJDF manteve a sentença que declarou a validade do contrato de alienação fiduciária entre a instituição financeira e o consumidor, determinando também a liberação da verba correspondente à venda do veículo.
No STJ, o ministro Marco Aurélio Bellizze explicou que o contrato firmado entre a concessionária e a agência foi mesmo válido. Ele esclareceu que esse contrato “tem natureza jurídica pessoal, e não real, aperfeiçoando-se, portanto, com mero concerto das vontades contrapostas”. Dessa forma, a transferência da propriedade do bem não interfere na existência e validade do ato jurídico.
Entrega
Com relação às oposições apresentadas pelos bancos, Bellizze afirmou que, no contrato de compra e venda final (consumidor-agência), “somente a tradição ao adquirente final consolidará a cadeia de transações anteriores”.
De acordo com o ministro, o contrato de alienação fiduciária é “essencialmente vinculado à sua finalidade”. Nesse caso, a finalidade é a aquisição de veículo novo pelos consumidores. Entretanto, apesar de o capital ter sido disponibilizado pelos bancos à agência, os veículos jamais chegaram às mãos dos clientes, sendo inválido o contrato de alienação fiduciária.
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSO CIVIL. 1. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE VEÍCULO. TRADIÇÃO. MERO INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. ANULAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO. INVIÁVEL. 2. FINANCIAMENTO COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. OPOSIÇÃO. AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE. BEM OBJETO DA GARANTIA. CONCRETIZAÇÃO DO NEGÓCIO EM RELAÇÃO AO CONSUMIDOR CONTRATANTE. IMPRESCINDIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE CONTRATO VÁLIDO. 3. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.1. Debate-se acerca da titularidade da propriedade de bem móvel objeto de dois sucessivos contratos de compra e venda, em que existiu, no segundo instrumento, contrato de alienação fiduciária em garantia, mas nunca houve tradição do bem.2. O contrato de compra e venda, de natureza pessoal, não se subordina à transferência de domínio do objeto contratado, aperfeiçoando-se com o mero concerto de vontades entre as partes capazes. Desse modo, a ausência de pagamento e de tradição configuram inadimplemento contratual e não dão causa à anulação do negócio jurídico. Precedentes.3. O contrato de alienação fiduciária é um contrato típico, essencialmente vinculado à sua finalidade, concebido e desenhado com o nítido intuito de atender às necessidades de proteção ao crédito em face do risco de inadimplemento.4. A propriedade fiduciária em garantia, em exceção legal à necessidade de tradição do bem, é transmitida com o registro do contrato de alienação fiduciária. Para tanto, é imprescindível que participe do contrato parte capaz e dotada de pleno domínio sobre o bem objeto da garantia.5. No caso dos autos, a ausência da tradição de bem em contrato de compra e venda prévio, impõe o reconhecimento de que o proprietário do bem móvel não participou do contrato de alienação fiduciária. Por consectário lógico, não houve a constituição da propriedade fiduciária em favor da instituição financeira.6. Recurso especial parcialmente provido.
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