Para a 4ª Turma, a lei de regência é a da bandeira do navio.
A Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho afastou a aplicação da legislação trabalhista brasileira e julgou improcedente a reclamação trabalhista ajuizada por uma assistente de garçom contratada para trabalhar em navios de cruzeiro internacional da MSC Crociere S.A e da MSC Cruzeiros do Brasil Ltda. De acordo com a decisão, independentemente do local da contratação ou do país onde os serviços foram executados, aplica-se a regra geral de que o trabalho de tripulante de embarcação é regido pela lei territorial da nacionalidade do navio.
Temporada nacional
Na reclamação trabalhista, a assistente disse que tinha sido contratada por meio de processo seletivo intermediado pela agência de recrutamento Rosa dos Ventos, de Fortaleza (CE), e que recebeu o contrato de trabalho por email. Cumpridas as formalidades para o embarque, iniciou o serviço a bordo do navio MSC Magnífica em janeiro de 2015 no Rio de Janeiro, como assistant waiter (assistente de garçom), com salário mensal em dólares.
Mesmo com contrato para trabalhar em cruzeiros internacionais, ela sustentou que prestou serviços em território brasileiro durante a temporada nacional de cruzeiros, entre novembro e abril. Segundo afirmou, a embarcação havia ancorado em novembro de 2014 em Recife (PE) e deixado o país em março de 2015. Demitida em agosto daquele ano, pedia a condenação das empresas ao pagamento das verbas rescisórias e dos depósitos do FGTS.
Pré-contratação
O juízo da 5ª Vara do Trabalho de João Pessoa (PB) concluiu que se aplicava ao caso a legislação trabalhista brasileira e, com isso, condenou as empresas ao pagamento das parcelas pedidas. Ao manter a sentença, o Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região (PB) entendeu que a empregada havia sido pré-contratada no Brasil, pois havia feito exames admissionais e curso preparatório em Fortaleza (CE) e recebido o contrato de trabalho antes de embarcar, além de ter recebido das empresas passagem até o local de embarque.
Tratados internacionais
No recurso de revista, as empresas sustentaram que o contrato havia sido celebrado dentro do navio e que a MSC Crociere, real empregadora, não tinha domicílio no Brasil. Segundo a argumentação, a aplicação da legislação brasileira aos empregados brasileiros a bordo violaria os tratados internacionais ratificados pelo país.
Isonomia
O relator, ministro Alexandre Luiz Ramos, observou que a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a fim de promover a uniformização das normas sobre trabalho marítimo, editou, em 2006, a Convenção Internacional de Trabalho Marítimo, ainda não ratificada pelo Brasil. Diante da ausência de ratificação, ele entende que se deve aplicar a casos dessa natureza a Convenção de Direito Internacional Privado (Código de Bustamante), promulgada no Brasil pelo Decreto 18.871/1929.
“Nas relações de trabalho dos marítimos, cujos serviços são executados, na maior parte, em alto mar, o Direito Internacional reconheceu como elemento de conexão a lei do pavilhão ou da bandeira do navio, estabelecendo a observância da normatização existente no país em que se encontra matriculada a embarcação”, afirmou. Essa regra está prevista nos artigos 274, 279 e 281 do Código de Bustamante.
Relação ímpar
Na avaliação do relator, os trabalhadores em navios de cruzeiro que navegam em águas internacionais e nacionais mantêm uma “relação ímpar”, em razão da prestação de serviços perante diversos países e da coexistência de tripulantes de múltiplas nacionalidades em um mesmo navio. Caso prevalecesse a legislação do local de contratação, como pretendido pela assistente de garçom, haveria risco de tratamento diferenciado da tripulação, “em flagrante violação das normas de direito internacional privado e do artigo 178 da Constituição da República”.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO POR PARTE DAS RECLAMADAS. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DAS LEIS Nº 13.015/2014 e 13.105/2015.
1.NULIDADE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ACÓRDÃO REGIONAL. ADMISSIBILIDADE. DEMONSTRAÇÃO DE PREQUESTIONAMENTO. ART. 896, § 1º-A, I, DA CLT. NÃO CONHECIDO.
I) O pressuposto intrínseco de admissibilidade previsto no art. 896, § 1º-A, I, da CLT, consistente na exigência de demonstração do prequestionamento, no caso de preliminar de nulidade, por negativa de prestação jurisdicional, é atendido mediante a exposição das razões dos embargos de declaração e do acórdão proferido no julgamento dos respectivos embargos de declaração. Somente dessa forma é possível comprovar-se que, não obstante instado a pronunciar-se acerca de determinado tema, o Tribunal Regional do Trabalho quedou-se silente a respeito. II) Entendimento majoritário prevalecente na Sessão de Dissídios Individuais do TST, em sua composição plena, no julgamento do processo nº E-RR-1522-62.2013.5.15.0067. III) Se o recurso de revista ressente-se de expor as omissões alegadas em embargos de declaração, não comporta conhecimento no tocante à preliminar de nulidade, por negativa de prestação jurisdicional. IV. Recurso de revista de que não se conhece , no particular.
2. PRELIMINAR. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. CONTRATO CELEBRADO E EXECUTADO NO EXTERIOR. NÃO CONHECIDO.
I) É certo que o acórdão não enfrenta especificamente a questão da competência da Justiça do Trabalho brasileira para apreciação da questão ora posta, tangenciando a discussão, mas definindo, de qualquer forma, a matéria relativa ao mérito da demanda, especificamente a aplicabilidade da lei que rege o contrato. II) A competência da Justiça do Trabalho está vinculada à natureza da pretensão deduzida e a jurisdição brasileira impõe-se ainda que haja necessidade de aplicação de direito estrangeiro. III) A Reclamada, por sua vez, a despeito de interpor embargos de declaração, não cuidou de sanar eventuais omissões de que padeceria o v. acórdão regional. Ausente, portanto, no particular, o necessário prequestionamento da matéria, consoante entendimento consolidado na Súmula nº 297 do TST. III) Recurso de revista de que não se conhece , no particular.
3. TRABALHO EM NAVIO DE CRUZEIRO SOB BANDEIRA ESTRANGEIRA. PRÉ-CONTRATAÇÃO NO BRASIL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS NA COSTA BRASILEIRA E EM ÁGUAS DE OUTROS PAÍSES. GENTE DO MAR. CONFLITO DE LEIS NO ESPAÇO. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. LEI DO PAVILHÃO (CÓDIGO DE BUSTAMANTE).
I) A indústria do transporte marítimo internacional, inclusive de cruzeiros turísticos, tem caráter global, seja quanto à nacionalidade dos navios (pavilhão), seja quanto à diversidade de nacionalidades da tripulação, impondo-se que a gente do mar tenha proteção especial e uniforme numa mesma embarcação. A concepção de aplicação da legislação brasileira aos tripulantes brasileiros contratados por navios estrangeiros não se sustenta diante da realidade da atividade econômica desenvolvida pelas empresas estrangeiras de cruzeiros marítimos, pois, se assim fosse, em cada navio haveria tantas legislações de regência quanto o número de nacionalidades dos tripulantes. Num mesmo navio de cruzeiro marítimo, todos os tripulantes devem ter o mesmo tratamento contratual, seja no padrão salarial, seja no conjunto de direitos. Reconhecer ao tripulante brasileiro – contratado para receber em dólar – direitos não previstos no contrato firmado, conduziria à quebra da isonomia e subversão da ordem e da autoridade marítima, uma vez que os próprios oficiais poderiam questionar suas obrigações à luz da legislação de sua nacionalidade, em desrespeito à lei do pavilhão. Daí porque ser imperativo a aplicação , para todos os tripulantes , da lei do pavilhão, como expressamente prescreve o art. 281 da Convenção de Direito Internacional Privado (Código de Bustamante, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 18.791/1929): ” As obrigações dos oficiais e gente do mar e a ordem interna do navio subordinam-se à lei do pavilhão “. II) As tratativas preliminares para a contratação de trabalhador , iniciadas em território brasileiro por empresa de agenciamento e arregimentação de trabalhadores para prestar serviço a bordo de embarcação estrangeira com trânsito pela costa brasileira e em águas internacionais, não permitem concluir que a contratação se deu em solo brasileiro, pois a efetivação do contrato somente ocorre com a convergência de vontades das partes envolvidas. Agência de recrutamento atua na aproximação das partes contratantes, sem que se torne parte nas relações de trabalho daí decorrentes (Convenção 181 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, Art. 1º, 1, a. III) Inaplicável a Lei nº 7.064/82, cujo pressuposto é a contratação de trabalhadores no Brasil ou transferidos por seus empregadores para prestar serviço no exterior, hipótese não revelada pelas premissas fáticas constantes no Acórdão Regional, de forma que a legislação brasileira não pode ser invocada sob o fundamento de ser mais benéfica ao trabalhador brasileiro que atua no exterior. O art. 3º da referida Lei se aplica na situação de empregado transferido para o exterior, hipótese que não se ajusta ao caso dos autos. A própria Lei nº 7.064/82 prevê a inaplicabilidade da legislação brasileira para o empregado contratado por empresa estrangeira (artigos 12 e seguintes). IV) Assim, a legislação brasileira não é aplicável ao trabalhador brasileiro contratado para trabalhar em navio de cruzeiro, (1) por tratar-se de trabalho marítimo, com prestação de serviços em embarcação com registro em outro país; (2) porque não se cuida de empregado contratado no Brasil e transferido para trabalhar no exterior. O fato de a seleção e atos preparatórios terem ocorrido no Brasil não significa, por si só, que o local da contração ocorreu em solo brasileiro; (3) o princípio da norma mais favorável tem aplicação quando há antinomia normativa pelo concurso de mais de uma norma jurídica validamente aplicável a mesma situação fática, o que não é a hipótese do caso concreto, pois não há concorrência entre regras a serem aplicáveis, mas sim conflito de sistemas . V) Ademais, independentemente do local da contratação ou do país no qual se executam os serviços, é inafastável a regra geral de que a ativação envolvendo tripulante de embarcação é regida pela lei do pavilhão ou da bandeira, e não pela legislação brasileira (Código de Bustamante, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 18.791/1929). VI) Demonstrado que a prestação de trabalho ocorreu em embarcação estrangeira, independentemente de ter navegado em todo ou em parte em águas brasileiras, não há falar em aplicação da lei brasileira. Assim, não há incidência do princípio do centro de gravidade ( most significant relationship ), o que levaria a situações limítrofes da prevalência do tempo de navegação em águas nacionais, internacionais ou estrangeiras, com risco de tratamento diferenciado da tripulação, em flagrante violação das normas de direito internacional privado e do art. 178 da Constituição Federal .
VII) O Supremo Tribunal Federal firmou tese em repercussão geral (Tema 210) no sentido de prevalência, com arrimo no art. 178 da Constituição Federal, de tratados internacionais sobre a legislação brasileira, especificamente no caso de indenização por danos materiais por extravio de bagagens em voos internacionais, caso em que devem ser aplicadas as convenções de Varsóvia e Montreal em detrimento do Código de Defesa do Consumidor. A tese firmada restou assim editada: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.” A ratio desta tese de repercussão geral deve ser aplica ao presente caso, pois diz respeito a conflito de legislação nacional com aquelas previstas em acordos internacionais, essencialmente a discussão ora travada.
VIII) Recurso de revista provido para afastar a condenação com base na legislação trabalhista nacional e, consequentemente, julgar improcedentes os pedidos formulados na reclamação trabalhista .
A decisão foi unânime.
Processo: RR-1829-57.2016.5.13.0005