O interesse em conhecer, interpretar e transformar o mundo ao redor caminha com a humanidade desde tempos imemoriais. Enquanto os primeiros indícios de um método científico de pesquisa datam do Egito Antigo e da Grécia Antiga, o desenvolvimento de ferramentas úteis ao homem nasce ainda na Idade da Pedra – na chamada pré-história humana, de onde se originam os mais antigos registros da confecção de instrumentos pontiagudos e da capacidade de dominar o fogo.
De forma ininterrupta, era após era, a humanidade atravessou diversas fases do conhecimento científico e das inovações em tecnologia: evoluímos da pedra lascada aos carros autônomos, das lanças de madeira aos lançamentos de naves ao espaço. Entretanto, da mesma forma que é possível crer que as primeiras ferramentas rudimentares ampliaram as disputas entre grupos humanos – por alimentos, território e abrigo –, também agora, a cada passo científico e tecnológico, novos conflitos continuam a surgir, alterando as relações humanas e modificando conceitos como poder, privilégio, ética e sobrevivência.
Ainda que os estudos científicos e tecnológicos contemporâneos estejam assentados em algumas bases éticas e de conduta, a criação e a inovação ocorrem, por óbvio, antes que sejam claros os seus impactos e que seja debatida a necessidade de regulamentação de seus usos.
Como o processo normativo no âmbito do Legislativo e do Executivo é geralmente complexo e demorado, muitos conflitos relacionados às inovações chegam primeiro ao Judiciário, responsável por analisar os casos concretos e aplicar um ordenamento jurídico que, não raro, nem chegou a fixar normas mínimas sobre criações que acabaram de sair dos laboratórios.
Exatamente por essa dinâmica, para decidir sobre um litígio relacionado a uma inovação científica ou tecnológica, o Judiciário precisa, primeiro, compreender melhor as nuances que envolvem cada tema, de forma a proferir uma decisão justa e tecnicamente embasada. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) é a corte responsável por debater em última instância vários desses temas, como ocorreu nas discussões sobre o congelamento do corpo humano em busca da imortalidade e o mercado de criptomoedas.
Criogenia
Entre os desejos mais antigos da humanidade, a imortalidade é um dos mais perseguidos ao longo dos tempos. Atributo creditado aos deuses e prometido pelas religiões, a vida eterna – ao menos do ponto de vista físico – ainda não foi atingida, o que não impede as pessoas de esperarem que, algum dia, a evolução científica a torne possível.
Mas como aguardar pela imortalidade diante da presença da morte? Para os antigos, a solução passava por técnicas como a mumificação de corpos; para os atuais, a ciência estuda procedimentos como a criopreservação, técnica de congelamento do corpo humano, em baixíssima temperatura, com o propósito de reanimação futura, caso sobrevenham novas descobertas capazes de ressuscitar o indivíduo e curar sua doença.
No REsp 1.693.718, a Terceira Turma precisou entender o processo de congelamento de corpos ao analisar litígio que dividiu uma família: enquanto uma das filhas do falecido pretendia mantê-lo em criogenia nos Estados Unidos – defendendo ser esse o desejo manifestado pelo pai em vida –, as suas irmãs buscavam realizar o sepultamento tradicional.
O relator do caso, ministro Marco Aurélio Bellizze, apontou que, embora o sepultamento seja o destino da maior parte dos corpos no Brasil, existem outras formas previstas pela legislação, como a cremação (artigo 77 da Lei 6.015/1973) e a entrega do corpo para estudos médicos ou científicos (artigo 14 do Código Civil e Lei 8.501/1992).
Com base em parecer juntado aos autos, o ministro explicou que, na criogenia – forma de destinação de corpo não prevista na legislação brasileira –, quando um paciente é declarado morto, os médicos tentam evitar a deterioração do corpo, injetando-lhe medicamentos e utilizando máquinas que mantêm a circulação do sangue e a oxigenação. Depois, o paciente é encaminhado a uma clínica especializada, tratado com outras substâncias e colocado em um cilindro com nitrogênio líquido, onde é permanentemente monitorado.
Segundo o ministro, embora já exista no Brasil a criopreservação de alimentos, sêmen, cordão umbilical e óvulos fertilizados, o caso dos autos seria o primeiro do país no qual foi utilizada a técnica da criogenia (o processo começou em território nacional, logo após a morte, e foi concluído nos Estados Unidos).
Corpo, não patrimônio
Entretanto, o relator lembrou que a discussão dos autos não consistia em saber se seriam válidos os efeitos da criogenia sobre o corpo do pai, mas sim a validade da manifestação de sua última vontade, e se essa manifestação poderia afrontar o ordenamento jurídico brasileiro.
Bellizze também destacou que, na ausência de previsão legal sobre o procedimento de criogenia pós-morte, o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prevê que o juiz deve decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Nesse cenário, o ministro entendeu que, além de não haver norma que proíba a submissão de corpos à criogenia, não há ofensa à moral ou aos bons costumes, já que não há a transformação do corpo em uma espécie de “patrimônio”. De igual forma, não há exposição pública do cadáver – o que seria incompatível com as normas sanitárias e de saúde pública.
Além disso, ressaltou, o procedimento é realizado com respeito aos restos mortais, pois o corpo é acondicionado em local preservado, sem impedir a visitação pela família.
“A solução da controvérsia perpassa pela observância ao postulado da razoabilidade, porquanto, a par do reconhecimento de que o de cujus realmente desejava ser submetido ao procedimento da criogenia após a morte, não se pode ignorar, diante da singularidade da questão discutida, que a situação fático-jurídica já se consolidou no tempo, impondo-se, dessa forma, a preservação do corpo do pai da recorrente e das recorridas submetido ao procedimento da criogenia”, finalizou o ministro.
Aplicativo de transporte
No universo das inovações tecnológicas, a mobilidade sempre representou um ponto central de interesse humano. Para encurtar distâncias e agilizar a movimentação de cargas e pessoas, desenvolveu-se uma complexa rede de transportes no mundo, que, hoje, está acessível a partir de um simples toque no celular, como nos sistemas de transporte por aplicativo.
Nesse modelo de transporte, novas relações foram estabelecidas entre clientes e prestadores de serviço, e também entre os prestadores e as empresas responsáveis pelos aplicativos – relações que também não escapam aos conflitos. No CC 164.544, a Segunda Seção analisou a eventual existência de relação empregatícia entre um motorista e a Uber, no contexto de um pedido do prestador de serviços para reativação de sua conta.
O ministro Moura Ribeiro, relator do conflito, destacou que a atividade desenvolvida pelos motoristas de aplicativos foi reconhecida pela Lei 13.640/2018 como sendo de caráter privado, realizada por meio de sistema informatizado conhecido como peer-to-peer platforms ou peer platform markets – ou seja, um mercado que se baseia no compartilhamento de serviços entre particulares.
Nesse novo sistema de requisição individual de transporte, Moura Ribeiro apontou que os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma.
“Em suma, tratando-se de demanda em que a causa de pedir e o pedido deduzidos na inicial não se referem à existência de relação de trabalho entre as partes, configurando-se em litígio que deriva de relação jurídica de cunho eminentemente civil, é o caso de se declarar a competência da Justiça estadual”, concluiu o ministro.
Espelhamento do WhatsApp
Se a comunicação, para o homem, nasce com o próprio início da vida em sociedade, o desenvolvimento dos sistemas de comunicações também tem origens ancestrais. Da comunicação verbal à escrita, das pinturas rupestres à impressão, da carta ao telefone celular, novas maneiras de trocar informações foram progressivamente surgindo na história, tendo hoje entre os seus principais representantes os aplicativos de mensagens instantâneas, a exemplo do WhatsApp.
Como nem todo uso dos sistemas de comunicação tem finalidade lícita, os métodos de investigação criminal também se voltaram para a obtenção de informações trocadas nesses meios – a interceptação telefônica é um de seus exemplos mais conhecidos. Entretanto, com a multiplicidade de novas formas de trocas de mensagens, quais são as possibilidades e os limites da intervenção policial para finalidades investigatórias?
O tema foi analisado recentemente pela Sexta Turma, em caso no qual o juiz autorizou que a polícia apreendesse o celular de um suspeito de tráfico de drogas e fizesse o espelhamento, via QR Code, das mensagens recebidas e enviadas por ele. Após a obtenção das informações, o magistrado decretou a prisão preventiva do investigado.
Relatora do habeas corpus, a ministra Laurita Vaz explicou que, por se tratar de medida vinculada a recente evolução tecnológica, a solução jurídica do caso exigia a compreensão prévia das características do espelhamento das informações do aplicativo, da forma de operacionalização dessa prática e das possibilidades abertas ao investigador criminal.
A ministra lembrou que o espelhamento das mensagens do WhatsApp ocorre no site da própria empresa, no qual é gerado um QR Code – lido pelo celular do usuário que pretende usufruir do serviço. Por isso, explicou, foi necessária a apreensão, ainda que por um breve período de tempo, do celular do investigado.
Segundo a relatora, a leitura do código pode ser realizada com a opção “mantenha-me conectado”, hipótese em que o emparelhamento entre o celular e o computador será feito por tempo indeterminado, até que o usuário decida encerrar o espelhamento.
Analogia impossível
No caso dos autos, a ministra esclareceu que, após ter apreendido o celular e realizado o espelhamento, a polícia teve acesso às conversas que já estavam registradas no WhatsApp do suspeito e, ainda, às novas mensagens trocadas a partir dali, iniciadas por ele ou por algum de seus contatos.
Além disso, Laurita Vaz enfatizou que, tanto no aplicativo quanto no navegador, é possível, com total liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de informações antigas ou recentes (após o espelhamento).
“A meu ver, a análise acerca de como funciona o espelhamento do WhatsApp demonstra ser impossível, tal como pretendido no acórdão impugnado, proceder a uma analogia entre o instituto da interceptação telefônica (artigo 1º da Lei 9.296/1996) e a medida que foi tomada no presente caso”, apontou a ministra.
De acordo com a relatora, enquanto nas interceptações telefônicas o investigador policial atua como mero observador das conversas de terceiros, no espelhamento via WhatsApp, a polícia tem a possibilidade de atuar como participante dos diálogos. Adicionalmente, ao contrário da investigação telefônica – em que as conversas registradas são apenas aquelas existentes após a autorização judicial –, o espelhamento via QR Code viabiliza ao investigador o acesso a qualquer comunicação realizada antes da ordem judicial.
Ao anular a decisão judicial que autorizou o espelhamento, a ministra ainda ressaltou que a interceptação telefônica é feita sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar para a apreensão do telefone, ao passo que, na hipótese do espelhamento, é necessária a apreensão do celular e posterior devolução “desacompanhada de qualquer menção, por parte da autoridade policial, à realização da medida constritiva, ou mesmo, porventura, acompanhada de afirmação falsa de que nada foi feito” (processo sob segredo judicial).
Criptomoedas
Além da circulação de pessoas, mercadorias e informações, a civilização aprimorou progressivamente os sistemas de trocas e movimentação de valores, partindo de formas como o escambo e as moedas de ouro ou prata para chegar ao papel-moeda e, finalmente, às operações com cartões de crédito e outras transações virtuais.
Entre os meios virtuais, em 2009, foi criado o sistema de criptomoedas, tecnologia baseada na criptografia e na descentralização das operações financeiras com o dinheiro eletrônico, que tem no bitcoin seu principal expoente. Ao lado dos diversos benefícios com a sua utilização, também surgiram vários questionamentos sobre a confiabilidade e a segurança dessas transações financeiras.
No CC 161.123, por exemplo, a Terceira Seção analisou o juízo responsável por julgar supostos crimes cometidos por um homem que captaria pessoas para investimentos em bitcoins, em troca da promessa de rentabilidade fixa e elevada. Essas operações, segundo o Ministério Público, não teriam sido declaradas à Receita Federal e não teriam respeitado as exigências da Lei 9.613/1998.
A ação penal teve início da Justiça estadual de São Paulo, mas o Ministério Público questionou a tramitação por entender que os elementos apurados indicavam crimes de competência da Justiça Federal. Posteriormente, a própria Justiça Federal suscitou o conflito de competência.
O ministro Sebastião Reis Júnior destacou que as empresas que negociam ou guardam as chamadas moedas virtuais em nome dos usuários não são reguladas, autorizadas ou supervisionadas pelo Banco Central, em razão da ausência de base legal ou regulatória que integre tal mercado ao Sistema Financeiro Nacional.
No mesmo sentido, o ministro apontou que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem interpretado que a negociação de criptomoedas está fora de seu perímetro regulatório, pois não as considera valor mobiliário.
“Com efeito, entendo que a conduta investigada não se amolda aos crimes previstos nos artigos 7º, inciso II, da Lei 7.492/1986, e 27-E da Lei 6.385/1976, notadamente porque a criptomoeda, até então, não é tida como moeda nem valor mobiliário”, afirmou o ministro ao afastar a competência da Justiça Federal e determinar a remessa dos autos à Justiça estadual.
Em caso também relacionado ao mercado de bitcoins, no REsp 1.696.214, a Terceira Turma concluiu que o encerramento de conta-corrente utilizada para a comercialização da criptomoeda não configura prática abusiva por parte do banco.
No julgamento, ao afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor – já que a empresa de criptomoedas realiza a abertura da conta com o objetivo de intermediação, e não de consumo –, o colegiado considerou lícito que a instituição bancária, no exercício de sua autonomia privada, encerrasse a conta-corrente da empresa, sendo necessária apenas a prévia notificação antes do rompimento do vínculo contratual.