Em apelação ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, um homem condenado por aliciar mulheres para trabalho em casas de Prostituição na Europa conseguiu a extinção de punibilidade pelo crime tráfico de pessoas. A ação foi movida a partir de denúncia do Ministério Público.
Informações dos autos mostram que o apelante foi condenado em 2013 com base no artigo 231 do Código Penal pelo crime de tráfico de pessoas por promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro. O processo também apresenta o depoimento de uma mulher atestando que saiu do Brasil consciente de que trabalharia em uma casa noturna na Espanha e que viajou por livre e espontânea vontade.
Ao analisar o caso, o relator, desembargador federal Néviton Guedes, destacou que a Lei 13.344/2016 revogou expressamente o art. 231 do CP, introduzindo novo tipo penal mais abrangente no Código Penal. De acordo o artigo 149-A da norma, o crime de tráfico de pessoas fica caracterizado nos atos de agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo, submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo ou a qualquer tipo de servidão, adoção ilegal ou exploração sexual.
“Como se vê, pela nova tipicidade penal, a configuração do crime de tráfico de pessoas passou a exigir que a sua prática se dê mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso. Consoante a nova lei (Lei 13.344/16), como se pode ver não se considera mais criminosa, como era na lei anterior, a conduta de simplesmente promover ou facilitar a entrada ou saída de mulher do território nacional para exercer a prostituição (sem violência, ameaça, coação, abuso ou fraude). No caso, da leitura da denúncia não se verifica a presença dos elementos “ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, pois a suposta vítima declarou que sabia que trabalharia numa casa noturna na Espanha como garota de programa”, afirmou o relator.
Em seu voto, o magistrado ressaltou, ainda, que “o Superior Tribunal de Justiça já assentou que após o advento da Lei 13.344/16, somente haverá tráfico de pessoas com a finalidade de exploração sexual, em se tratando de vítima maior de 18 anos, se ocorrer ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade, num contexto de exploração do trabalho sexual”.
O recurso ficou assim ementado:
PENAL. PROCESSO PENAL. TRÁFICO DE PESSOAS. ART. 231 DO CÓDIGO PENAL. CRIME DE FORMAÇÃO DE QUADRILHA OU BANDO. ART. 288 DO CÓDIGO PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES PARA FIM DE EXPLORAÇÃO SEXUAL. ART. 231 DO CP. REVOGADO PELA LEI N. 13.344/16. ABOLITIO CRIMINIS. SUPERVENIÊNCIA DO ART. 149-A DO CP. APELAÇÃO DA DEFESA PROVIDA e APELAÇÃO DO MPF PREJUDICADA.
- Apelações criminais interpostas pelo Ministério Público Federal e pelo réu contra a sentença que condenou o réu à pena de 01 (um) ano e 06 (seis) meses de reclusão e 03 (três) anos de reclusão, respectivamente, pela prática dos crimes previstos nos artigos 288 e 231 do Código Penal.
- Narra a denúncia que o réu Carlos Manuel Gonçalves Garcia, cidadão português, em concurso de vontades, agindo de forma habitual, estável e reiterada com outras sete pessoas, promoveu a saída do território nacional de diversas brasileiras para fins de prostituição em casas noturnas localizadas em Portugal e na Espanha. Afirma a inicial acusatória que Carlos Manuel era um dos responsáveis por recepcionar as brasileiras em território europeu e oferecê-las para a atividade de prostituição em casas noturnas espanholas e portuguesas. Tais delitos teriam sido cometidos ente junho de 2004 e março de 2005.
- Pelo que consta dos autos Ednamar Lemes dos Santos foi aliciada por Neiva Inês Jacoby (ou Gaúcha), a pedido do recorrente Carlos Manuel, para trabalhar em casas noturnas na Europa. No caso, cabia ao réu Carlos Manuel a solicitação e o financiamento da viagem das mulheres para o exterior para o exercício da prostituição. Assim, Carlos Manuel respondeu pela ação de promover a saída de mulher do Brasil para exercer a prostituição no estrangeiro.
- Preliminarmente, é preciso analisar se a Lei 13.344/2016, que revogou o tipo penal do art. 231 e o reinscreveu no art. 149-A do Código Penal com nova capitulação, operou ou não abolitio criminis para a conduta imputada ao réu, qual seja, facilitar a saída de mulher para exercer a prostituição no estrangeiro. Além disso, ainda que não tenha se operado abolitio criminis, deve ser definido se a aplicação da novel legislação seria mais benéfica ao réu.
- Pela nova tipicidade penal, a configuração do crime de tráfico de pessoas passou a exigir que a sua prática se dê mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, elementares do tipo primário, inexistentes no dispositivo penal revogado.
- Se a nova lei acrescenta elementar ao tipo penal não existente na legislação anterior, o caso é de revogação da conduta delituosa como descrita na lei revogada, não se podendo questionar a conduta praticada ao tempo da lei anterior em consonância com os novos elementos do tipo penal. Em outros termos, se considerada a conduta em abstrato, subsumindo-a aos novos elementos acrescidos na lei nova, não se pudesse afirmar a prática de conduta delituosa, há de se afirmar a abolitio criminis.
- Anteriormente, o emprego de violência, grave ameaça ou fraude constituíam apenas causas de aumento de pena (art. 231, § 2º). Para o novo art. 149-A, porém, referidos fatores constituem elementares do tipo penal. Consoante a nova lei (Lei 13.344/16), não se considera mais criminosa, como era na lei anterior, a conduta de simplesmente promover ou facilitar a entrada ou saída de mulher do território nacional para exercer a prostituição (sem violência, ameaça, coação, abuso ou fraude).
- No caso, da leitura da denúncia não se verifica a presença dos elementos “ameaça, violência, coação, fraude ou abuso”. Além disso, em seu depoimento Ednamar Lemes dos Santos, suposta vítima, declarou que sabia que iria trabalhar numa casa noturna na Espanha como garota de programa e que era a segunda vez que viajava para a Espanha para trabalhar nestes termos.
- O Superior Tribunal de Justiça e este Tribunal já decidiram que após o advento da Lei 13.344/16, somente haverá tráfico de pessoas com a finalidade de exploração sexual, em se tratando de vítima maior de 18 anos, se ocorrer ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade, num contexto de exploração do trabalho sexual.
- Ausente norma penal tipificadora da conduta prevista no art. 231, caput, do Código Penal, ante a revogação do referido dispositivo pela Lei 13.344/16, é forçoso reconhecer a extinção da punibilidade do réu nos termos do art. 107, III, do Código Penal.
- Também não pode subsistir a condenação pelo crime do art. 288 do Código Penal, pois, se foi realizada a abolitio criminis em relação ao delito de tráfico de pessoas, não se pode falar em associação para promover o tráfico de pessoas.
- Apelação da defesa a que se dá provimento para declarar extinta a punibilidade de Carlos Manuel Gonçalves Garcia, pela prática da conduta prevista no art. 231 do Código Penal, nos termos do art. 107, III, do Código Penal (abolitio criminis) e absolvê-lo da prática do delito previsto no art. 288 do CP; e julgar prejudicada a apelação do MPF.
O caso foi analisado pela 4ª Turma do TRF1 que acompanhou o relator de forma unânime.
Processo 0009169-70.2010.4.01.3500